Prisões do novo ano: a verdade do aquém

Por Clarisse Gurgel* – Blog da Boitempo

O novo ano se inicia com o registro de 3 rebeliões de presos, em sua primeira semana: no dia 1º de Janeiro, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, no dia 4, no Complexo Penitenciário de Itaitinga, em Fortaleza, e no dia 6, na Penitenciaria Agrícola Monte Cristo, no Ceará. Duas delas já tendo como resultado o massacre de 56 e 38 presos, respectivamente. Assim, o desejo do Secretário Nacional da Juventude, Bruno Julio, é realizado: mata-se mais. E se os desgovernados já são bem governados, realizando o sonho do carniceiro, fica a questão sobre a que tipo de prisão estão submetidos.

Nas manchetes de jornal, um aparente diagnóstico: os presídios não possuem equipamentos básicos. Diante de um balanço, que por sua evidente obviedade me parecia tardio, surpreendi-me com o fato de que a mencionada falta de equipamentos basilares não estava relacionada à ausência de condições razoáveis para os penitentes: celas com camas e com banheiros, por exemplo. E não estou aqui me filiando àqueles que se dedicam a reivindicar a humanização dos presídios. Tal reivindicação soa um tanto ingênua ou, até mesmo, cínica. Afinal, como humanizar o espaço em que se deposita o resto de um sistema baseado na desumanização das pessoas e fincado no fetiche da mercadoria? Entretanto, em um modo de produção social em que é a coisa que tem vida própria, cobrar condições mínimas de existência é exigir de volta, na esteira das lutas por direitos, parte da prosperidade proporcionada pela riqueza por nós produzida. Na esteira do que Marx defendia acerca da luta aparentemente restrita e até economicista pelo aumento do salário, qualquer reivindicação de direitos para os trabalhadores, presos diretamente ou indiretamente, tem efeito na redução da mais-valia, permite um fôlego das necessidades imediatas e possui potencial, a depender de nós lutadores, de transformação das consciências.

Ainda muito jovem, trabalhei no presídio Edgard Costa, no Rio de Janeiro. Lá, dava aula de teatro para dezenas de homens. Nunca me esqueci do cheiro da sala de aula: de umidade nauseabunda. Certa vez, fui desafiada por meus alunos a almoçar no presídio: o gosto de água suja. Ríamos dadesgraça, tal como somos ensinados à resiliência como guia para a emboscada da sobrevivência. Era comum esbarrar com defensores públicos a xingarem os presos de vagabundos. Os mesmos presos que, mais do que interessados em técnicas de construção de personagens ou em confecções de bonecos mamulengos, vinham ávidos até a mim, pedindo-me que eu descobrisse o mistério kafkaniano do tempo de pena que ainda faltavam cumprir. Eu, uma menina, ia até o Fórum, preenchia os dados de meus alunos, nos portais de andamentos, e descobria, algumas vezes, que Marco Aurélio, Edgard… já estavam lá, na cela, esquecidos, com suas penas cumpridas e seus tempos de prisão ultrapassados.

O atual Ministro da Justiça, em um curioso combate ao simplismo, afirmou que não poderíamos tratar os massacres como guerra entre facções. Em face disto, a grande mídia segue narrando os fatos como conflito entre uma tal FND e o PCC, responsabilizando, ademais, o próprio ministro, por negligência, em face de alertas pretéritos dos Estados. Assim como se repetiram os massacres de Carandiru, de Benfica, de Urso Branco, de Pedrinhas, o que os presos parecem buscar é justamente melhores condições de sobrevivência, onde, em Manaus, por exemplo, 1.825 infelizes espremem-se nas celas de 592 condenados. Uma cova grande pra seus poucos defuntos.

O filósofo Slavoj Žižek nos chama atenção para o fenômeno da reificação das relações sociais, para além da objetivação dos sujeitos. O que os presos fazem é repetir a mesma fórmula: utilizando a relação entre seus colegas detentos como forma de chamarem atenção para seu estado de putrefação em vida. Em guerra, seriam vistos. Trata-se do caso preciso de um “acting out”, em que, deslocados do livre mercado do crime, repetem o ato de seu script, fora do set, dirigindo-se àqueles que lhes negam audiência. Mal-ouvidos são rebeldes. E, na condição em que estão, seguem reféns das narrativas do Grande Outro. A sequência dos motins guarda uma periodicidade regular de 3 dias. Uma repetição que nos lembraria ensaios insistentes, porém sem qualquer grande virada. Narrados por seus carcereiros, os presos são performers. Reféns do empresariado, servem de garotos-propaganda para “Gestores Associados”, que já oferecem instalações modernas, a preço de custo, para “usuários do serviço prisional”, imprimindo valor de troca ao resíduo social da crise do capital: uma modalidade marginal de mercadoria, a pirataria de homens. A repetição exitosa, pois, é aquela que transforma estruturas públicas em sucata para depois privatizar barata: a habilidade de que Marx fala que o capital tem de se reciclar, transformando ameaça em oportunidade.

Imediatamente depois do primeiro massacre do ano, a ministra do STF, Carmem Lúcia, anunciou, de sua torre, que solicitaria um censo carcerário. Tal como se cutuca uma ferida, a ilustríssima não admite que o que falta é senso e não censo. Nesta falta, o governo Temer, da PEC 55, já estuda medidas de descontingenciamento de fundos para compra de equipamentos de segurança. Os jornais alardeiam a circulação nas cadeias de microcelulares, com cerca de 6 centímetros, e Secretários de Estado buscam parceria com operadoras de telefonia para um melhor bloqueio das ligações entre internos e externos. Eis as contradições da lógica que busca conciliar produtividade, a permanente geração de demanda pelo consumo, a garantia de taxas de lucro e as tensões sociais dela derivadas. A solução não poderia ser outra que não transformar as próprias mazelas em mercadoria. Descontingenciar fundos pra saúde e educação públicas é impensável para aqueles que impedem o pensamento estrutural e julgam que o que falta são mais celas.

A estrutura do problema está na especularidade entre margem e centro, entre o presídio e a vida aqui fora, nos métodos comuns de acumulação que unem os chamados bandidos daqueles que, sob o nome de guerra “empresários”, expoliam o povo: trabalho-escravo, trabalho sem direitos… A face primitiva da acumulação por meio do trabalho-tripallium… Este último, por si só, já como a contra-face do castigo. Para os que trabalham, detidos ou vendidos, a lei é a da sobrevivência. (Recordo-me agora de um restaurante da Zona Sul do Rio, o Belmonte, que segue lotado, cujos donos desviaram carne do SUS, vendida, em suas receitas, fora do prazo de validade. Lembro-me também do envolvimento do diretor do Presídio Edgard Costa no roubo do estoque de alimentos dos presos…). Arrisco aqui mobilizar o agudíssimo florentino, Nicolau Maquiavel, só recordado pelo Príncipe, que, em seus “Comentários”, cita ninguém mais do que o tirano Lourenço de Médici: “Os povos têm os olhos sempre voltados para os governantes: o seu exemplo é para eles uma lei”. Não é estranho que esta proposição encontre eco em nosso mundo, onde a ideologia dominante é a da classe dominante.

Na tentativa de identificar o corpo de seu filho, em Manaus, a doméstica Rosana Pereira Cardoso, facilmente encarnada no arquétipo da Mãe, esforçava-se pra lembrar das tatuagens de Wendel. Uma delas dizia: “tudo posso naquele que me fortalece”. Há uma frase de Marx muito disseminada pelo mundo, em que ele diz que a “religião é o ópio do povo”. Esquecem-se, porém, do que antecede tal expressão: “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos.” (Karl Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, p.151)

Para as tantas mães e esposas que aguardam notícias de seus parentes presos, o Estado nada oferece de amparo. Apenas aquela que encarna o mais novo modelo de ONG, o empreendimento substitutivo da política pública, a Igreja Evangélica, é que fornece refrigerantes, água e pães aos aflitos. Algo que nos faz repensar as tarefas do partido revolucionário.

A nós, lutadores, é renovado o dever que nos ensina Marx, de abandonarmos as ilusões acerca de nossa condição. Para isto, é preciso que abandonemos uma condição de sobrevida que necessita de ilusões. Assim, repetindo Marx, desaparecido o além da verdade, estabeleceremos a verdade do aquém. Será o momento em que as bandeiras das facções e suas palavras de ordem, tais como “Fé em Deus, que Ele é justo!” poderão ser substituídas por humanos fortes, regressados de sua ausência de fé em si mesmos, como os justos.

*Doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos – IESP-UERJ, com graduação em teatro e direito, é autora da tese Espelho do Invisível, em que desenvolve o conceito de Ação Performática, articulando teoria psicanalítica, arte, marxismo e teoria da ação.

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