Por: João Flores da Cunha – IHU On-Line
O fim do boom das exportações de commodities alterou o cenário na América Latina e inaugurou um período de incertezas. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-line, o pesquisador Decio Machado aborda o panorama político e econômico da região e o cenário conjuntural do Equador, cuja população irá às urnas no dia 19-02 para escolher o sucessor de Rafael Correa na presidência do país.
Ele alertou que “os lucros derivados do auge do preço das commodities durante os anos anteriores já desapareceram” e “o crescimento da dívida externa volta a ser uma realidade inquietante”. Analisando o ciclo dos governos progressistas na América Latina, afirmou que o “déficit [desses governos] no que diz respeito à falta de mudanças estruturais em nossas respectivas economias nacionais advém do fato de que combinaram sua radicalidade discursiva com a convivência junto ao poder das elites econômicas que historicamente dominaram nossos países”.
Machado tece críticas ao modelo de desenvolvimento baseado na exportação de matérias-primas, e defende que esse seja superado. Para ele, “temos de superar o falso dilema ‘extrativismo ou pobreza’” implementado na América Latina, e “não deixa de causar rubor que o planejamento estratégico dos governos latino-americanos para superar o extrativismo esteja baseado em implementar cada vez mais extrativismo”.
O pesquisador abordou as relações econômicas da região com a China, e afirmou que “se a América Latina, apesar da assimetria existente na sua relação comercial com a China, quer seguir sendo competitiva ante esse país, está obrigada a diversificar e modernizar a sua estrutura produtiva”. Para ele, as medidas protecionistas que devem ser implementadas pelo governo de Donald Trump nos Estados Unidos irão causar um “aprofundamento ainda maior das relações comerciais, econômicas e militares que já vêm se estabelecendo entre a América Latina e a zona Ásia-Pacifico”.
Decio Machado é consultor internacional em Políticas Públicas, Análise Estratégica e Comunicação. Pesquisador associado em Sistemas Integrados de Análise Socioeconômica e diretor da Fundação Alternativas Latino-americanas de Desenvolvimento Humano e Estudos Antropológicos (ALDHEA). É membro da equipe fundadora do periódico Diagonal, assim como colaborador habitual em diversos meios de comunicação na América Latina e na Europa.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o atual cenário político e econômico no Equador?
Decio Machado – O país vive um momento de transição política. Depois de dez anos de mandato, Rafael Correa abandonará seu cargo no próximo dia 24-05, data na qual será investido o próximo presidente da República do Equador. Além de quem ganhe as eleições do dia 19-2, isto significará uma mudança na política institucional do país, pois o correísmo, para o bem ou para o mal, na prática se transformou em uma proposta de concentração de poderes em torno de um líder carismático que dificilmente terá continuidade sem a sua presença no Palácio de Carondelet.
Com respeito à economia, depois de um prolongado período de bonança derivado do chamado “boom das commodities” o país tem sido fortemente golpeado pela queda do preço do petróleo, a apreciação do dólar e o encarecimento do financiamento externo. A soma dessas circunstâncias fez com que a economia equatoriana feche o ano de 2016 com uma contração de 1,7%, enquanto o déficit fiscal tem sem mantido embora a dívida pública (interna e externa) tenha se incrementado notavelmente. Indicadores sociais positivos alcançados durante grande parte do período correísta no âmbito da luta contra a pobreza, a diminuição do desemprego, as melhorias nas condições laborais dos trabalhadores, e o crescimento da capacidade aquisitiva da população, encontram-se neste momento em franca deterioração.
IHU On-Line – Como você define o governo de Rafael Correa? Qual é o legado do seu governo?
Decio Machado – Considero que quem melhor definiu este período foi o próprio presidente Rafael Correa quando disse aquilo de que “basicamente estamos fazendo melhor as coisas com o mesmo modelo de acumulação”. Na pratica, trata-se de um governo que impulsionou a modernização do sistema capitalista no Equador por meio do fortalecimento do papel do Estado. Para isso foram impulsionadas políticas sociais compensatórias que foram o eixo dessa nova governabilidade, ao mesmo tempo em que se exacerbou o modelo de exploração extrativista de recursos naturais e se fomentou amplamente a construção de obras de infraestrutura no país.
O seu legado combina a estabilização política com o desenvolvimento de um modelo de Estado-controle, o que implica a desarticulação e neutralização do tecido social organizado que antigamente tinha sido protagonista de grandes lutas sociais. Para isso, o correísmo se empenhou em controlar a vida coletiva a partir do aparato do Estado por meio da judicialização do protesto social. Desde essa perspectiva, o regime correísta é altamente involucionista, pois entende o Estado-nação como limite do pensamento e das práticas emancipatórias dos distintos povos e nacionalidades que formam o Equador.
Na atualidade, com a chegada da crise econômica fruto do fim da “década dourada das commodities”, ficou evidente que aquilo que foi construído em matéria de melhoramento dos indicadores sociais ao longo desse período tem pilares frágeis demais. Isso nos faz refletir sobre o fato de que não é possível melhorar estruturalmente a situação dos pobres sem tocar nos privilégios das elites econômicas e dos grandes grupos de poder.
IHU On-Line – Qual é a sua expectativa para as eleições presidenciais? Você acredita que Lenín Moreno será eleito?
Decio Machado – O fato de que Rafael Correa não está na cédula de votação, somado a que o país se encontra numa recessão econômica, gerou amplas expectativas nos setores de oposição ao regime. No entanto, foram os próprios erros deles que os levaram a se situar em condições desfavoráveis durante esta contenda eleitoral.
No âmbito conservador, a rivalidade entre distintas facções da direita não permitiu que apresentassem uma candidatura de unidade frente ao regime; e no caso das dissidências pela esquerda ao correísmo, àqueles que sim conseguiram se unificar em torno de uma candidatura presidencial comum faltou o valor para desenvolver um programa de ruptura que fosse além da pregação sobre a recuperação da democracia e das liberdades.
O discurso das diversas candidaturas de oposição, independentemente de sua sensibilidade política, acabou convergindo numa narrativa comum que se baseia na má gestão econômica do regime durante os últimos anos e a corrupção institucional que existe, fazendo muito difícil distinguir suas diferentes propostas programáticas ante a cidadania.
Por sua parte, a campanha eleitoral do oficialismo está baseada em evidenciar a obra pública e o investimento social realizados durante esta década, posicionando o seu candidato presidencial como mudança de estilo na hora de governar dentro da continuidade do regime.
As pesquisas sérias sobre a intenção de voto no Equador indicam que o partido oficial abaixa a sua intenção de voto em função de que vêm aparecendo diferentes escândalos de corrupção durante o mandato do presidente Correa, enquanto os partidos de oposição não crescem na mesma proporção. Enquanto a Aliança PAÍS [partido de Rafael Correa e Lenín Moreno] mantenha uma vantagem superior a 10 pontos percentuais sobre seus diferentes rivais eleitorais, a disputa está em que a candidatura de Lenín Moreno obtenha 40% dos votos válidos para ganhar no primeiro turno. Se não for assim, quer dizer, no caso de que exista um segundo turno, a coisa poderia se complicar para o partido governista, dado que estaríamos em um cenário de rearticulação de alianças entre as forças opositoras.
IHU On-Line – Do ponto de vista da esquerda, quem é o melhor candidato para a presidência do Equador?
Decio Machado – Eu considero que se alguma coisa as esquerdas temos que aprender deste período definido como “ciclo progressista” na América Latina é que, mais além de que com determinadas políticas sociais se melhore de maneira conjuntural os números da desigualdade, são necessárias políticas reais de redistribuição da riqueza que transformem o modelo de acumulação desigual herdado do neoliberalismo.
O déficit dos governos progressistas no que diz respeito à falta de mudanças estruturais em nossas respectivas economias nacionais advém do fato de que combinaram sua radicalidade discursiva com a convivência junto ao poder das elites econômicas que historicamente dominaram nossos países. Isso implicou que a crise hegemônica neoliberal derivasse em um modelo pós-neoliberal carente de projeto anticapitalista.
Voltando ao caso equatoriano, não vejo na candidatura presidencial governista nem na candidatura aglutinadora das esquerdas dissidentes do correísmo nenhuma reflexão a esse respeito. Não encontro nem em um nem no outro programa a capacidade de imaginar o fim da depredação capitalista.
IHU On-Line – No Equador, Correa teve desgastes por conta do fracasso da iniciativa Yasuní-ITT. Na Bolívia, o presidente Evo Morales teve problemas por causa do projeto da estrada no Parque Tipnis. Como você vê a relação entre esses governos e os movimentos sociais e indígenas desses países?
Decio Machado – O problema de fundo entre os chamados governos progressistas e os movimentos sociais é que nesses países tem sido registrado um aumento da repressão contra os protestos sociais. Tanto no Equador como na Bolívia temos visto como se adotaram medidas administrativas contrárias às organizações sociais que explicitaram sua rejeição ao modelo extrativista, ao mesmo tempo que se aplicaram lógicas de criminalização dos protestos sociais sobre líderes comunitários, organizações de mulheres e comunidades indígenas em resistência.
Esses fatos são um reflexo da involução desses processos políticos, em que a dissidência social foi acusada de rebelião, sabotagem e inclusive de terrorismo. Assistimos a nível planetário a implementação de uma nova tecnologia de poder por parte dos Estados, e para isso é preciso colocar em andamento medidas de disciplinamento que normalizem a sociedade e descomponham seus indivíduos, fixando procedimento de adestramento progressivo e controle permanente sobre a sociedade civil. O que surpreende no caso dos países progressistas é que ditas políticas sejam assumidas com naturalidade por parte dos governos que dizem falar em nome de seus povos e movimentos sociais.
IHU On-Line – O desenvolvimento econômico da América Latina nos anos recentes foi em grande parte impulsionado pela exportação de commodities. Quais são os impactos desse modelo extrativista para os países do continente?
Decio Machado – Durante esta última década e meia o modelo de desenvolvimento latino-americano aprofundou a sua inserção internacional dependente como provedor de matérias primas. Isto implicou numa maior vulnerabilidade dessas economias, subordinando-as às flutuações erráticas dos mercados globais.
Além disso, o impacto ambiental é inquestionável no âmbito do desmatamento, da contaminação e da deterioração da saúde pública nos territórios afetados. Semelhante também é o impacto na política, motivo pelo qual não é casualidade que em todos os países sul-americanos tenham sido identificados casos de corrupção vinculados à gestão de setores estratégicos e empresas extrativistas.
Junto a todo o anterior vem um processo de aceleração de lógicas vinculadas à acumulação por desapropriação, produzindo desalojamentos, transformação violenta das formas tradicionais de vida nas comunidades diretamente afetadas, deslocamentos de setores campesinos e indígenas de seus territórios históricos, militarização, criminalização dos protestos sociais, violência estatal e paraestatal.
Extrativismo
Os defensores do extrativismo entendem esse modelo como um mecanismo para capitalizar o Estado, para posteriormente implementar políticas destinadas à transformação da matriz produtiva e impulsionar o desenvolvimento endógeno nos seus respectivos países. No entanto, esses processos extrativistas se caracterizam por serem economias de enclave, não geram atividades econômicas novas através do encadeamento produtivo e nem se integram no mercado laboral, orientando a exploração de recursos naturais no sentido das necessidades do mercado global. Em todo caso, não deixa de causar rubor que o planejamento estratégico dos governos latino-americanos para superar o extrativismo esteja baseado em implementar cada vez mais extrativismo.
IHU On-Line – Você acredita que é possível reverter 500 anos de colonialismo e extrativismo na America Latina? Existe alguma alternativa para este modelo?
Decio Machado – Como falei anteriormente, a superação do modelo primário exportador no subcontinente baseia sua urgência em questões de índole econômicas, políticas, ambientais e inclusive de saúde democrática. Para isso temos de superar o falso dilema “extrativismo ou pobreza” implementado pelos governos latino-americanos e especialmente pelos que tomam a bandeira de progressistas.
Para isso é necessário gerar uma série de medidas que seriam complexas de desenvolver na sua integridade durante esta entrevista, mas sobre as quais vou apontar algumas ideias gerais já esboçadas por outros autores: frente à reprimarização das economias latino-americanas é urgente pôr em andamento medidas eficazes focadas na diversificação da produção nacional e incorporar o valor interno do retorno; o processo de integração regional, hoje paralisado, deve ser a base para a busca de complementaridades econômicas entre os países da região, reduzindo dependência em relação aos mercados do norte; os países latino-americanos devem buscar um novo perfil de especialização que lhes permita outra forma de inserção no mercado global; é necessário gerar políticas econômicas eficientes no âmbito da cadeia de produção, fiscal e de demanda; e por último devemos, sob um critério de sustentabilidade planetária, harmonizar economia e sociedade com a natureza sob os princípios do Bem Viver, passando do antropocentrismo ao biopluralismo.
Estamos obrigados, pelo bem comum e pela sobrevivência planetária, a mudar o atual paradigma civilizatório.
IHU On-Line – No âmbito desse modelo econômico extrativista, como você vê a relação da América Latina com a China? Você diria que a economia latino-americana depende das matérias primas que exporta para China?
Decio Machado – Os principais beneficiários do auge do comércio entre a China e a América Latina têm sido os exportadores de matérias-primas. Veja que durante o período compreendido entre 2001 e 2010 as exportações dos produtos de mineração e combustíveis fósseis para a China cresceram em um ritmo de 16% ao ano. Tirando o México, as cinco principais exportações de bens primários de todos os países da região representam no mínimo 80% do valor total das exportações para a China, sendo as matérias-primas seu eixo motor. Isto fez com que a região sofresse uma forte reprimarização das suas economias.
Porém, na atualidade a China está passando por um programa de reajuste do seu modelo de desenvolvimento para algo que pretende ser mais sustentável no futuro. Isso implicará em um menor dinamismo no seu crescimento econômico e em uma maior dependência do seu consumo interno, junto ao impulso das indústrias com maior valor agregado e serviços.
Projeções
Voltando ao expressado na pergunta anterior, se a América Latina, apesar da assimetria existente na sua relação comercial com a China, quer seguir sendo competitiva ante esse país, está obrigada a diversificar e modernizar a sua estrutura produtiva. Segundo projeções da CEPAL pertencentes ao âmbito das reformas que estão tendo lugar na China na atualidade, em 2030 o crescimento médio das exportações latino-americanas de metais e minerais para esse país poderia cair dos 16% na década anterior aos 4%, e os mesmos indicadores de redução são previstos no caso dos combustíveis.
Porém, a China terá em 2030 uma cifra superior a 1,4 bilhões de habitantes. Enquanto a população chinesa equivale a 19% da população global, o país dispõe tão somente de 7% da terra cultivável e de 6% das reservas hídricas mundiais. Com base na recomposição do consumo que se está dando na China (cai a demanda de arroz e trigo enquanto aumenta o consumo de açúcar e carne de vitela), a América Latina deveria estar desenhando políticas proativas de desenvolvimento produtivo nesses setores, potencializando a associatividade dos pequenos produtores e cooperativas para que tenham um papel destacado na exportação de produtos agropecuários, com um modelo de produção respeitoso com o entorno natural e com políticas de dignificação do emprego e dos salários.
Turismo
Para dar apenas outro exemplo, no caso do turismo, em que a China tem se convertido em um grande mercado exportador de visitantes ao Exterior, a situação da América Latina também continua sendo marginal sem que estes governos tenham até o momento a capacidade de mudar substancialmente esta realidade. Os gastos dos turistas chineses no exterior foram no ano de 2015 de 215 bilhões de dólares, 53% a mais que no ano anterior. No entanto, destes mais de 120 milhões de embarques internacionais protagonizados pela população chinesa, tão somente 0,7% chega à América Latina, hospedando-se além de tudo em instalações cuja propriedade é de grandes holdings hoteleiros internacionais, no lugar de potencializar o turismo comunitário, a economia social e solidária, assim como as economias dos habitantes das localidades afetadas.
IHU On-Line – Como você vê as perspectivas econômicas para a América Latina? As projeções do FMI e do Banco Mundial indicam um baixo crescimento em 2017.
Decio Machado – Como já demonstrou Thomas Piketty, desde 1700 até 2012 a economia mundial cresceu em média 1,6% ao ano, enquanto a taxa de retorno do capital esteve entre 4 e 5%, o que implica que a riqueza global terminou em pouquíssimas mãos – e no caso da América Latina estes indicadores foram de ainda maior concentração.
Apesar da redução dos indicadores de pobreza a que temos assistido durante os últimos anos na região, fruto da não intervenção nos pilares estruturais da desigualdade, na América Latina hoje os 10% mais ricos da população concentram 71% da riqueza regional. O próprio Banco Mundial tem relatórios nos quais se indicam que se essa tendência continuar, em menos de dez anos, o 1% mais rico da região terá mais riqueza que o 99% restante.
Desde essa perspectiva, o problema não é tanto o indicador de crescimento prognosticado pelas instituições de Bretton Woods, mas como é repartida a riqueza em nossa região. É um fato que os lucros derivados do auge do preço das commodities durante os anos anteriores já desapareceram e que o crescimento da dívida externa volta a ser uma realidade inquietante sem que por isso se estejam aplicando políticas fiscais claramente progressivas que busquem modelos comprometidos com a igualdade social.
Desigualdade
Isso não significa deixar de reconhecer que estamos ante a primeira recessão bianual em mais de três décadas na região, o que implica também o risco de que parte dos setores que se incorporaram às classes médias nesses últimos anos possam reverter a sua condição em um futuro imediato. Segundo a CEPAL, já em 2015 se incrementou em sete milhões de pessoas o número de pobres na América Latina, o que representa um retrocesso sobre os indicadores de diminuição da pobreza obtidos no período imediatamente anterior.
Mas falemos claramente: apesar de tudo aquilo explicitado anteriormente, os governos da América Latina e entre eles também os de perfil progressista, seguem outorgando um tratamento favorável às companhias multinacionais em matéria fiscal. Um estudo recente realizado pela Oxfam revela que a carga impositiva para as empresas nacionais latino-americanas equivale ao dobro da carga efetiva suportada pelas companhias transnacionais, o que não pode fazer-nos sentir mais do que vergonha em uma região que é considerada como a mais desigual do planeta.
IHU On-Line – Quais são as perspectivas para América Latina no governo Trump, e para o México em especial?
Decio Machado – Nem na sua campanha eleitoral nem no seu discurso de posse Donald Trump deu maior importância à América Latina. Para além das especulações, no que se refere ao subcontinente existem tão somente dois anúncios claros: a ratificada proposta de ampliar o muro já existente na fronteira sul estadunidense e a renegociação do Tratado de Comércio da América do Norte (TLCAN) que teria um impacto sobre o México, assim como a vontade de “dar marcha a ré” nas medidas de normalização das relações diplomáticas com Cuba impulsionadas pelo governo Obama.
Começando pelo México, cabe indicar que os problemas da sua economia nacional vêm de antes, e são fruto de uma moeda que se desvalorizou mais de 50% nos últimos anos, de uma inflação crescente por conta dos aumentos da gasolina e da energia elétrica, de uma dívida pública que chega já a 48% do PIB e de uma série de periódicos cortes do gasto público que diminuíram a capacidade aquisitiva da sua população. Para além do anterior, o “efeito Trump” está fazendo com que os cinco setores que concentram 60% do PIB mexicano (manufatura, comércio, setores imobiliários, construção e mineração) estejam registrando uma importante desaceleração em relação ao último ano. A instabilidade econômica que o país atravessa está provocando a fuga de capitais, há o risco de suas exportações para os Estados Unidos sofrerem uma taxação de 35% e a indústria maquiladora que se situa na fronteira poderia inclusive chegar a desaparecer.
Parte do que sucede hoje no México é consequência de que o país foi incapaz de diversificar suas exportações, fato que determina que 80% delas tenham como destino os Estados Unidos. Entendo que, na atual conjuntura, o governo mexicano está obrigado a modificar essa realidade e reposicionar com urgência o seu olhar sobre o mercado asiático. Apesar da importância adquirida pela China na região, as vendas de produtos mexicanos para esse país não somaram mais que 1,5% do total das suas exportações durante o ano passado.
A respeito de Cuba, os benefícios econômicos que a normalização das relações diplomáticas com os Estados Unidos trouxe para a ilha são evidentes e agora poderiam estar também em risco. Em um momento no qual as economias dos países solidários com o povo cubano, como é o caso da Venezuela, se deteriorando, Cuba alcançou o ano passado a cifra recorde de quatro milhões de turistas. Isso implica num crescimento de 13% do setor turístico cubano com respeito ao ano anterior (segunda fonte de ingressos do país) e isso tem muito a ver com que o número de visitantes estadunidenses tenha aumentado em 80%.
IHU On-Line – Como as eventuais mudanças geopolíticas geradas pela eleição de Trump podem impactar América Latina? No caso de se concretizar um cenário de maior proximidade entre os Estados Unidos e a Rússia, o que isso significaria para o nosso continente?
Decio Machado – As lógicas protecionistas que foram o eixo fundamental do discurso de campanha do hoje já presidente Donald Trump pressupõem um cenário no qual o acesso dos produtos de exportação latino-americanos para o mercado estadunidense possivelmente caia de forma notável. Isso implicará num aprofundamento ainda maior das relações comerciais, econômicas e militares que já vêm se estabelecendo entre a América Latina e a zona Ásia-Pacifico. Não acho que a coisa vá para além disso, dado que considero que a centralidade geopolítica que em algum momento chegou a ter a América Latina tem se deslocado nos últimos anos para outras zonas do planeta.
Com relação à sua segunda pergunta, considero que o surpreendente novo marco de relações entre os Estados Unidos e a Rússia não gerará tampouco grandes mudanças na nossa região. O interesse principal da Rússia – verdadeira vencedora das eleições estadunidenses – está nas zonas geográficas que correspondem às repúblicas que outrora formaram parte da extinta União Soviética, nas rotas de gasodutos do sul por onde se transporta o gás para a Europa, em estabelecer uma rede de alianças com as repúblicas centro-asiáticas, em estreitar seus vínculos militares e comerciais com a China, e em corroer a capacidade operativa da OTAN. Como potência mundial que é, a Rússia não ignora a América Latina, mas não vejo que neste momento faça parte de suas prioridades geopolíticas.
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Tradução: Juan Luis Hermida