Reparações aos povos originários ocupantes tradicionais no Brasil, segundo a CIDH

Por Konstantin Gerber, no Justificando

Havendo violação de direito protegido pela Convenção Americana, cabe ao Estado brasileiro reparar as consequências da situação configuradora de vulneração e pagar indenização. Dita reparação deve contemplar o fortalecimento da identidade cultural do povo originário, com garantia de controle de suas instituições, tradições, territórios e definição de prioridades para o processo de desenvolvimento como etnia[1].

Esta reparação pode derivar de um acordo amigável com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em não havendo acordo, pode a comissão remeter à Corte de Costa Rica.

Para os casos de ocupação tradicional, deve haver devolução de terras, com delimitação, demarcação e entrega de título coletivo de propriedade, com revisão, desapropriação ou compra dos títulos de terras adquiridos por terceiros. Deve-se estipular prazo (de um ano) ao Estado brasileiro para que a devolução de terras ocorra (para não seguirem vivendo em beira de estrada, mesmo com a condenação internacional do Estado brasileiro). Devem estar asseguradas formas de proteger os recursos naturais[2], por exemplo contra a contaminação de rios.

Para que este processo não tarde, o território deve estar suficientemente bem descrito, devendo-se juntar documentos legíveis, laudo antropológico, mapas, vídeos e depoimentos a comprovar a ocupação tradicional e o vínculo espiritual com a terra.

Quando da devolução de terras, deve-se solicitar política de reparação no sentido de recuperação de flora e fauna, com designação de prazo. Para tanto, deve ser instituído fundo de desenvolvimento comunitário com comitê gestor composto por originário da comunidade, outro pelo Estado e outro em comum acordo de ambos, para desenvolvimento de agricultura de subsistência sustentável, com recuperação de nascentes e florestas (no prazo de dois anos). Na implementação do acordo amigável ou da sentença interamericana, é a União Federal que deve encontrar por meio de decreto ou convenio meios de cooperação com os demais entes federativos, até que sobrevenha lei que discipline o cumprimento de decisões de organismos internacionais.

O processo de devolução de terras deve seguir o tramite de demarcação, sem delonga, pois a Corte Interamericana considerou que onze anos e oito meses para o processo de reivindicação de terras comunais (caso Caso Comunidad YakyeAxa vs. Paraguay) e que o prazo de treze anos (caso Caso Comunidad indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay) ambos não são razoáveis e violam as garantias judiciais dos membros das comunidades.

Na impossibilidade de demarcação de terras, o vetusto Estatuto do Índio prevê terras inalienáveis da União (Reserva Indígena, Parque Indígena, Colonia Agrícola Indígena e Território Federal Indígena), mas estas, ressalte-se, não se confundem com terras tradicionalmente ocupadas nos termos do art. 231 da Constituição Federal. Ademais, existe a possibilidade de propriedade comunitária indígena, esta sim alienável e arrendável.

Se inúmeras foram as viagens de lideranças a Brasília, deve-se solicitar reparação pecuniária de danos materiais às lideranças das comunidades. Para reparação de danos imateriais pela demora e sofrimento decorrente da falta de demarcação, deve-se solicitar quantia de dinheiro para fins de reparação a cada membro da comunidade, devendo esta ser ouvida para a melhor distribuição dos recursos conforme costumes e tradições. A indenização deve ocorrer no prazo de um ano[3].

Em caso de massacres, muito comuns, pode ser solicitada perícia psicológica, pois o crime de genocídio é tipificado pelo grave dano à integridade psíquica de grupo. Ainda que a Corte Interamericana não julgue crimes de genocídio, cabe a esta determinar reparações, bem como obrigar a investigar e punir. Nestes casos envolvendo o direito à terra tradicional, pode ser solicitada reparação psicológica em respeito a costumes e tradições para lidar com traumas. Isso se o caso chegar à Corte Interamericana, pois pode ser resolvido antes no âmbito da Comissão por meio de acordo amigável com o Estado brasileiro. A Corte pode determinar diligencias de ofício, bem como realizar diligencias in situ e recolher provas documentais, testemunhais, periciais, declarações das vítimas, demais declarações a título informativo e ainda provas indiciárias, como notas de imprensa que contenham declarações de funcionários do Estado[4].

Para os casos em que houve expulsão da terra combinada de massacre, existe um direito de voltar à terra, com os correspondentes deveres estatais de garantir a segurança dos retornados, bem como de delimitar, demarcar e atribuir titularidade sobre territórios tradicionais, com participação e consentimento informado das vítimas[5]. Nestes casos de expulsão com massacre, deve-se pedir reparação por danos materiais, pelo deslocamento forçado e a consequente situação de pobreza e privação de acesso a recursos naturais. E sempre que possível, deve-se arrolar as vítimas que serão beneficiárias da indenização.

Em caráter subsidiário, em caso de inundação por hidrelétrica, em que a demarcação se mostra impossível, pode ocorrer a restituição de terras de igual qualidade e extensão, sempre com a obtenção do consentimento prévio, conforme tradição de deliberação dos povos originários. A restituição de terras deve ocorrer para assinalar respeito do Estado para com sua identidade e forma de organização social. Até que sobrevenha a aprovação do projeto de lei que versa sobre o Estatuto das Sociedades Indígenas, deve-se contar com os mecanismos existentes no direito interno. Repita-se: é o Estado que deverá adotar medidas legislativas, administrativas ou de outra índole para tornar efetivo o exercício de direitos previstos na Convenção Americana.

Este pedido de restituição de terras de igual qualidade e extensão deve ocorrer somente se inviável o pedido de demarcação de terras, como no caso de inundação. É dizer, se por motivos objetivos e fundamentados, a devolução de terras por meio do procedimento de demarcação de terras não for possível, o Estado deve entregar terras alternativas, escolhidas de modo consensual com a comunidade afetada, conforme seus meios de consulta e decisão. A extensão e a qualidade destas terras alternativas devem ser suficientes para garantir a manutenção e desenvolvimento da forma de vida da comunidade[6].

Juntamente com o fundo de desenvolvimento comunitário, deve ser solicitado construção e manutenção de centro cultural do povo originário para salvaguarda de seus saberes ancestrais, para gestão de seu patrimônio cultural imaterial.

Ademais, é urgente um pedido de políticas de educação intercultural nas cidades das proximidades da comunidade com a finalidade de combater o preconceito e o racismo (um pedido de políticas específicas de combate ao ódio racial nas escolas). Enfim, deve-se dar cumprimento à lei brasileira que estabelece obrigatoriedade no ensino de conteúdo afro-indígena e, se possível, em diálogo com o entorno.

Para casos em que se vive situação de vulnerabilidade, devem ser também garantidos posto de saúde com respeito a tradições, escola bilíngue e provisão de água potável e atenção médica em favor dos membros da comunidade, em especial, crianças e anciões[7].

A depender da gravidade da situação sobre um direito convencional decorrente de ação ou omissão estatal, se constatada ameaça iminente apta a ocasionar dano irreparável, normalmente em casos de risco à vida, pode ser solicitada a medida cautelar na Comissão Interamericana para beneficiários identificados ou identificáveis pela localização geográfica ou pertencimento à comunidade.

Existem precedentes de medidas cautelares concedidas para impedir invasão de terceiros (MC 105 de 2011, povos Kuna de Madungandí e Emberá de Bayano vs. Panamá) e para garantir assistência integral durante o processo de reivindicação de terras (MC 204-01, Caso 12.313, Comunidad Indígena YakyeAxadel Pueblo Enxet-Lengua vs. Paraguai). O que dizer em casos de iminência de despejo em terras tradicionalmente ocupadas.

Quanto ao acordo amigável ou à sentença interamericana, deve-se pedir além da publicação no Diário Oficial, divulgação pública, inclusive na imprensa local dos pontos resolutivos e, inclusive, no idioma da comunidade reparada em rádio a que tenham acesso.

Por fim, para garantias de não repetição, deve-se: solicitar a imediata conclusão de todos os processos demarcatórios no Brasil; garantir o direito de consulta sobre projetos de desenvolvimento ou unidades de conservação que os afetem; e determinar a realização de cursos de capacitação para a magistratura brasileira sobre direito internacional dos direitos humanos dos povos originários. Para os casos em que o Brasil será condenado, deverá haver um ato público de desculpas com reconhecimento da responsabilidade internacional, bem como construção de monumentos em memória das vítimas de massacres.

Konstantin Gerber é advogado consultor em São Paulo, mestre e doutorando em filosofia do direito, PUC SP, onde integra os grupos de pesquisa direitos fundamentais e filosofia política do direito. Professor convidado do curso de especialização em direitos humanos.

[1] CIDH, Caso Pueblos Kaliña y Lokono vs. Surinam, Sentença de 25 de novembro de 2015 (Fondo, Reparaciones y Costas), páragrafo 272, p. 75

[2] BERISTAIN, Carlos Martín. Diálogos sobre reparación. Qué reparar enlos casos de violaciones de derechos humanos. IIDH, San Jose: 2010, p. 433

[3]CIDH, Caso comunidad indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay, parágrafo 244 In: RAMÍREZ, Sergio Garcia (Coord.) La jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos Vol. IV, UNAM, Mexico: 2008, p. 241

[4] CHAVARRÍA, Ana Belem García. La prueba em la función jurisdiccional de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. CNDH, México: 2016, pp. 32-35

[5] CIDH, Caso de la comunidad moiwana vs. Suriname In: RAMÍREZ, Sergio Garcia (Coord.) La jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos Vol. III, UNAM, Mexico: 2008, págrafo 212, P. 169; parágrafo 19, p. 180.

[6]CIDH, parágrafo 212, 2008, Op. Cit.p. 232

[7]CIDH, parágrafos 229 e 230, 2008, Op. Cit. Pp. 236-237

Imagem: Nas fronteiras de commodities, os índios. Criança da etnia Xikrin em aldeia na beira do rio Bacajá –  Foto: Felipe Milanez

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