Luta por igualdade de gênero tem uma dimensão fiscal: só justiça tributária assegura serviços públicos de qualidade e impede penalização social das mulheres
Por Global Alliance for Tax Justice | Tradução INESC – Outras Palavras
Por meio da agenda dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), governos de todo o mundo comprometeram-se com um futuro melhor até 2030. O propósito é que todas as desigualdades sejam enfrentadas; todas as formas de violência contra as mulheres e meninas sejam eliminadas; e os trabalhos não remunerados de cuidados e domésticos sejam reconhecidos e valorizados, por meio da garantia de direitos e serviços públicos acessíveis e de qualidade.
Mas tais metas só serão alcançadas se tivermos um financiamento adequado, por meio de um sistema tributário justo. A política fiscal é uma das ferramentas mais poderosas que temos para reduzir as desigualdades entre pobres e ricos, entre mulheres e homens, dentro de um país e entre países.
Os tributos que pagamos de variadas formas são a fonte mais sustentável de receitas que um governo pode ter. Eles bancam a maioria dos serviços públicos dos quais as sociedades dependem, especialmente as mulheres. É por isso que defendemos a justiça fiscal com arrecadação e alocação orçamentárias sensíveis a gênero. Outros elementos, como a questão racial e diversidade étnica devem ser consideradas ao se pensar em justiça fiscal, uma vez que para o alcance dos direitos humanos é necessário que os orçamentos sejam não discriminatórios.
No entanto, ainda estamos longe de alcançar essa desejada justiça fiscal. Grandes empresas promovem evasão fiscal e ganham isenções fiscais que, somadas, custam bilhões de dólares por ano aos países em desenvolvimento. Só no Brasil, a evasão fiscal chegou a R$ 500 bilhões e as exonerações tributárias a R$ 270 bilhões em 2016.
Quando os serviços públicos deixam de receber um financiamento adequado, e quando os impostos não são arrecadados e alocados de forma justa, são as mulheres que pagam o preço mais alto. E entre as mulheres, são as negras que arcam com a carga mais pesada, uma vez que são elas que pagam proporcionalmente mais impostos que os demais segmentos sociais no Brasil, conforme estudo do Inesc.
As mulheres precisam de JustiçaFiscal porque…
1. Justiça Fiscal melhora os níveis de educação
A educação é um direito fundamental para todas as crianças e poderoso instrumento para redução das desigualdades. As estimativas são de que se todas as mulheres completassem o ensino primário, haveria uma diminuição de 2/3 das mortes maternas bem como uma redução de 15% da mortalidade infantil.
Um sistema tributário progressivo acompanhado de despesas redistributivas pode gerar receitas significativas para o País. Por exemplo, o Equador triplicou sua despesa com educação passando de U$ 225 milhões em 2003-2006 para US $ 941 milhões em 2007-2010 por meio de políticas eficazes de mobilização de arrecadação tributária.
A educação financiada e provida com recursos públicos tem maior potencial de transformação, ao contrário da educação privada, que pode piorar a mobilidade social e minar o potencial de redução das desigualdades advindas da educação.
2. Justiça Fiscal reduz a carga sobre as mulheres em decorrência dos trabalhos e cuidados não remunerados
O trabalho não remunerado de mulheres subsidia o crescimento econômico. Estima-se que se o tempo que as mulheres gastam realizando cuidados não remunerados e trabalho doméstico fosse monetarizado, equivaleria a US$ 10 trilhões por ano, em torno de 13% do PIB mundial.
Quando os Estados não dispõem de receitas suficientes para prestar serviços públicos essenciais, é frequente que sejam as mulheres que preencham essa lacuna, dedicando importante parte do seu tempo, corpo e vida às atividades que o Estado deveria executar ou suprir. As mulheres gastam 2,5 vezes mais tempo realizando trabalho doméstico e cuidados com os familiares dos que os homens. É sobre elas que recai o peso dessas atribuições, limitando suas possibilidades de realizar outras atividades essenciais para a vida como, educação e formação, trabalho remunerado, descanso e lazer, entre outras. Da mesma forma, à medida que mais mulheres entram no mundo do trabalho sem o devido apoio de serviços públicos essenciais, como creches, escolas públicas ou asilos, o peso do cuidado não remunerado recai sobre outras mulheres membros da família. O que reforça o círculo vicioso da exclusão de gênero.
O Estado não é o único responsável. Os homens também têm – tanto quanto as mulheres – a responsabilidade de cuidar de seus filhos, casa e parentes. Mas os serviços públicos financiados por tributos, especialmente creches, são medidas eficazes para a efetiva realização dos direitos das mulheres ao trabalho decente, à educação, à participação política e ao descanso. Globalmente, uma em cada duas crianças está matriculada em uma creche. Muitos países têm dedicado fundos públicos para o cuidado da primeira infância, mas o financiamento ainda é muito limitado para cobrir as necessidades existentes.
3. Justiça Fiscal possibilita o acesso das mulheres a serviços de saúde que salvam vidas
A gravidez e o parto aumentam a necessidade de cuidados de saúde para salvar vidas, assim como a natureza endêmica da violência contra mulheres e meninas em todo o mundo. Todos os dias, mulheres de todo o mundo morrem em decorrência de complicações da gravidez e do parto. Muitas dessas complicações são facilmente preveníeis com políticas públicas adequadas. Quase todas as mortes maternas ocorrem em locais com poucos recursos e a maioria poderia ser evitada. Os países africanos com receitas fiscais extremamente baixas sofrem com as maiores taxas de mortalidade materna.
No Brasil, há ainda o problema do racismo institucional na rede pública de saúde: de acordo com a Secretária de Política para Mulheres, de 2000 pra 2012 as mortes por hemorragia entre mulheres brancas caíram de 141 casos por 100 mil partos para 93 casos; entre mulheres negras aumentou de 190 para 202.
4. Justiça Fiscal reduz a violência contra mulheres
Globalmente, um terço das mulheres e meninas sofre violência, sendo que pouco menos da metade das mulheres que são assassinadas são mortas por parceiros ou membros da família.
As mulheres que vivem em situação de pobreza nos países em desenvolvimento são as que estão mais expostas à violência sexual nas ruas. O transporte público, em particular, é um grande desafio. Nas cidades brasileiras, dois terços das mulheres dizem ter medo de se deslocar sozinhas, seja a pé ou por meio de transporte público. É relatado que em São Paulo, uma mulher é assaltada em um espaço público a cada 15 segundos; o quadro se agrava quando essas mulheres são pobres, negras, lésbicas ou trans.
As políticas públicas elaboradas com a participação das mulheres podem melhorar a sua segurança em espaços públicos e privados, oferecendo serviços como delegacia da mulher, abrigos, melhor policiamento, banheiros públicos seguros, iluminação pública, entre outros.
Combater a violência contra a mulher não é tarefa fácil, pois o patriarcalismo e o sexismo reinantes inviabilizam a efetiva realização dos direitos da mulher. Faltam recursos e políticas apropriadamente desenhadas para promover a igualdade entre mulheres e homens. Esse é o caso no Brasil: em apenas em um ano, entre 2016 e 2017, o programa “Políticas para as Mulheres: Enfrentamento à Violência e Autonomia” tem previsão de corte orçamentário de 52%, o equivalente a R$ 5,5 milhões, conforme dados do Siga Brasil e análise do INESC. É esse Programa que deveria garantir, por exemplo, o atendimento as mulheres em situação de violência.
Os governos devem investir em serviços públicos financiados por impostos para cumprir seus compromissos internacionais e nacionais em eliminar todas as formas de violência contra as mulheres e as meninas. Devem ainda apoiar organizações de direitos das mulheres que estão cronicamente subfinanciadas e que cumprem papel central na promoção da igualdade de gênero em todas as partes do mundo.
5. Quando as multinacionais e os muito ricos não pagam seus tributos devidos, dói mais nas mulheres
Globalmente, 9 dos 10 maiores bilionários são homens brancos. Transferir e redistribuir a riqueza por meio da tributação tem o potencial de enfrentar a discriminação sistêmica baseada em gênero, raça/cor, idade, orientação sexual, deficiências e situação socioeconômica.
Os países de baixa renda arrecadam cerca de 2/3 de suas receitas tributárias por meio de impostos indiretos, como tributos sobre o consumo e serviços, que são regressivos e penalizam proporcionalmente mais os pobres. Nos países de rendimento elevado, estes impostos desempenham papel muito menor, representando, em média, 1/3 da arrecadação tributária. Os impostos indiretos não possuem o poder redistributivo que os impostos sobre a renda têm e, consequentemente, penalizam desproporcionalmente as mulheres mais pobres.
Quando os países não arrecadam de forma progressiva o imposto de renda, não tributam a renda decorrente de lucros e dividendos, favorecem as grandes corporações por meio de benefícios fiscais sem monitoramento do retorno social, ou “fecham os olhos” à elisão e evasão fiscal: a absoluta maioria desses recursos que deixam de ser arrecadados pelo Estado é acumulada por homens.
Os paraísos fiscais que desempenham papel central nesta drenagem de recursos públicos também abrigam fluxos financeiros ilícitos resultantes do tráfico de mulheres. Como nosso sistema financeiro continua a oferecer oportunidades para esconder e lavar dinheiro produto do crime, e majoritariamente são os homens brancos os arquitetos desse sistema, são as mulheres e as meninas que acabam pagando o mais alto preço dessa arquitetura.
6. Justiça Fiscal garante o acesso à água limpa que mantém as mulheres mais seguras e constrói sua emancipação econômica
A água é reconhecida como um direito humano básico, todos os cidadãos devem ter acesso a ela em quantidades adequadas. Assim, as regiões que experimentam escassez aguda de água ou má distribuição devem realizar investimentos em programas que melhorem o acesso à água e, entre outras medidas, reduzam a distância média até um ponto de água.
Onde não há serviços públicos que viabilizem a obtenção de água, as mulheres e as meninas carregam o fardo de ter que buscar água para as suas casas, tornando-as vulneráveis à violência, sobrecarregando sua saúde e mantendo-as longe das oportunidades de educação, de trabalhos remunerados, de atividades políticas e de lazer, entre outras.
No Brasil, apesar dos avanços na última década com políticas públicas de construção de cisternas em áreas rurais, especialmente no Nordeste, o problema de abastecimento de água tem se tornado crítico nos grandes centros urbanos, onde as populações periféricas, onde estão as mulheres e meninas negras, sofrem mais com os racionamentos e a falta de saneamento básico. O acesso à água pública é vital para a autonomia econômica das mulheres.
7. JustiçaFiscal oferece proteção social para mulheres
As políticas públicas de promoção e de proteção social contribuem para a realização dos direitos das mulheres. No Brasil, até recentemente, a cobertura do Sistema Nacional de Assisténcia Social era universal e até bem capilarizada e estruturada (CRAS, CREAS, com especificidades para indigenas, quilombolas, pop rua e pop LGBTI).
Entretanto, as políticas de austeridade, de corte de gastos, como as adotadas no momento no Brasil, quase sempre afetam essas políticas, penalizando ainda mais as mulheres. O caminho para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) voltado para a igualdade de gênero ainda é longo: segundo a ONU Mulheres cerca de 90% dos Planos Nacionais de Ação para a Igualdade de Gênero que analisaram não contam com previsão de financiamento necessária.