As estranhas terras do ministro Padilha (2): Os últimos capítulos da disputa jurídica para decidir o destino da Serra de Ricardo Franco

Na segunda reportagem da série, a batalha judicial travada entre Ministério Público e governo estadual – e uma entrevista em vídeo com Regiane Soares de Aguiar, a promotora de Justiça que enquadrou na lei mais de 50 fazendeiros

Por Bruno Abbud, de Pontes e Lacerda, em O Livre

Em 17 de março, uma sexta-feira, o site do governo estadual divulgou a notícia de que era iminente um acordo com o Ministério Público a respeito do imbróglio travado entre uma jovem promotora, o poder público e mais de 50 fazendeiros apontados pelo MP como responsáveis pelo desmatamento de quase 20 mil hectares de Cerrado e floresta amazônica dentro do Parque Estadual da Serra de Ricardo Franco, em Vila Bela da Santíssima Trindade.

“O Governo do Estado e o Ministério Público Estadual estão muito próximos de um acordo para colocar fim às demandas jurídicas relativas à regularização e implantação definitiva do parque”, informava a reportagem. “Ficou definido na reunião que em até 10 dias será assinado um termo de acordo judicial definindo prazos e medidas que serão tomadas para a implantação do parque”. A realidade, contudo, é diferente.

A sede do Ministério Público em Pontes e Lacerda, a 483 quilômetros de Cuiabá, é vigiada por dois agentes da Polícia Judiciária Civil (PJC) à paisana que portam pistolas automáticas na cintura. Um corredor com piso de granito cinza e paredes brancas imaculadas leva ao gabinete da promotora Regiane Soares de Aguiar. Aos 34 anos, é ela quem conduz do município de 43 mil habitantes as 50 ações civis públicas que pedem a aplicação de multas aos proprietários de terras autuados dentro do parque – entre eles está Eliseu Padilha, ministro-chefe da Casa Civil.

“O governo anunciou que está em negociação um acordo judicial para fixar prazos para a fiscalização ostensiva e a retirada do rebanho de dentro do parque, mas esse acordo ainda não foi fechado”, contou Regiane. Nesta entrevista, concedida ao LIVRE em 20 de março, a promotora diz que não tem pressa para assinar um compromisso. “Estamos negociando, caminhando para uma solução, mas ainda não existe um termo de acordo que possa ser divulgado”.

O Parque Estadual da Serra de Ricardo Franco, cujo nome faz referência ao militar e desbravador português morto em 1809, foi criado em 4 de novembro de 1997 pelo decreto 1.796, do governador Dante de Oliveira. À época, segundo o MP, o Estado recebeu um empréstimo de US$ 250 milhões do Banco Mundial para regularizar a área. Em 2013, dezesseis anos depois, o promotor Augusto Lopes Santos, de Vila Bela da Santíssima Trindade, instaurou um inquérito para investigar o motivo pelo qual não houve regularização fundiária, elaboração de plano de manejo nem a instalação de cercas no perímetro definido pelo decreto. Pela lei, é ilegal existirem fazendas dentro de uma unidade de conservação.

Em setembro de 2015, Santos entrou com uma ação civil pública, a primeira de duas iniciativas do MP para resguardar o parque, que obrigava o Estado a regularizar a área. Em fevereiro do ano seguinte, o juiz Leonardo de Araújo Costa Tumiati concedeu uma liminar que pedia, entre outras coisas, a contratação de um gerente, um técnico e um guarda no prazo de três meses; a disponibilização de uma caminhonete 4X4 e um barco a motor pelo mesmo período; a elaboração de um plano de fiscalização ostensiva e a retirada de todo o rebanho bovino de dentro do parque em 30 dias; a reforma da infraestrutura existente em nove meses; a instalação de placas informativas no prazo de um ano; e a elaboração, também em um ano, do plano de manejo. A liminar começou a ser cumprida no início de 2016, e os fiscais da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) conseguiram autuar 50 fazendas entre as mais de 120 que ocupam o parque irregularmente.

A partir das autuações, a promotora Regiane elaborou, em novembro de 2016, 50 ações civis públicas pedindo a aplicação de multas a cada um dos proprietários. As liminares foram concedidas pela Justiça no mesmo mês, pedindo o bloqueio de R$ 949,5 milhões e multas de mais de R$ 270 milhões como maneira de compensar o desmatamento de 19 mil hectares na Unidade de Conservação. O valor da compensação ambiental, calculada pelo MP a partir dos custos de aberturas de covas de 30 centímetros de profundidade, fertilizantes, mudas e mão de obra para replantar espécies arbóreas, foi fixado em R$ 51.996,90 por hectare de Cerrado desmatado.

Quase todos os fazendeiros entraram com recurso na segunda instância. “A maioria dessas propriedades conseguiu o desbloqueio dos seus bens”, diz Regiane. “O mérito ainda não foi julgado, estou entrando com as contrarrazões. Temos chance de resgatar os efeitos dessas liminares”. Os desembargadores José Zuquim Nogueira e Antônia Siqueira Gonçalves Rodrigues suspenderam os efeitos da liminar para cerca de 40 fazendeiros. O resto dos processos, entre os quais o que se refere à fazenda Cachoeira, da qual Padilha é um dos proprietários, foram parar na mesa do desembargador Luiz Carlos da Costa, que manteve a decisão da primeira instância.

Em dezembro passado, um mês depois da instauração das ações, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) entrou com um recurso pedindo, a princípio, a anulação do item “c” da primeira liminar concedida pelo juiz Tumiati – justamente o que pedia a fiscalização ostensiva no parque e que, consequentemente, municiaria o MP nos processos contra os proprietários. “Os autos de infração são documentos imprescindíveis que preciso para entrar com as ações contra os responsáveis diretos por esse desmatamento”, explicou a promotora Regiane.

Em janeiro deste ano, o procurador de Justiça Luiz Alberto Esteves Scaloppe, da procuradoria especializada em Defesa Ambiental e Ordem Urbanística, recorreu contra a suspensão da liminar e acusou o governo de defender interesses de proprietários de áreas irregulares dentro do parque, em especial do ministro-chefe da Casa Civil: “O ministro Eliseu Padilha é uma pessoa de muito peso para influenciar o governo”, disse Scaloppe numa reportagem publicada pelo LIVRE em janeiro. “O que vemos é a estrutura estatal sendo posta a serviço de particulares, como o ministro Padilha”. Segundo Scaloppe, o governo chegou a pressionar a promotora Regiane Soares de Aguiar durante uma reunião no gabinete do governador Pedro Taques. “O Fávaro chegou a perguntar, de forma ríspida, se Regiane queria governar no lugar deles”, contou, em referência a Carlos Fávaro, vice-governador, secretário estadual de Meio Ambiente e ex-presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja). A promotora confirmou a conversa.

A PGE rebateu o procurador com uma nota esclarecendo que o órgão não recorrera em favor de particulares, mas contra as determinações impostas ao Estado, alegando que os prazos eram curtos demais, e a multa – de R$ 5.000 ao dia –  muito alta. Além disso, a ação pedia a condenação do Estado para que pagasse R$ 50 milhões. O dinheiro seria depositado em um fundo voltado às ações de preservação do parque. “O Estado tem a obrigação de fiscalizar e impedir esse dano ambiental sob a pena de responder por omissão”, observou Regiane. Em um evento público, Taques afirmou: “Scaloppe é meu amigo, foi meu professor, não vou bater boca com ele”.

Quando estourou na imprensa a decisão que pediu o bloqueio de R$ 38.222.921,19 das contas de Eliseu Padilha e de suas empresas, a resposta do peemedebista demorou quinze dias para ser divulgada, e veio em forma de nota: “Diferentemente do que está sendo noticiado, não foi bloqueada dita importância em minha conta corrente bancária, até porque o saldo dela era de R$ 2.067,12”, escreveu o ministro. Embora a informação estivesse correta, o ministro fingiu desconhecer a existência de uma conta corrente no Banco do Brasil, em nome de sua mulher, Maria Eliane Aymone Padilha, que continha R$ 3,1 milhões.

O Ministério Público acionou na Justiça duas fazendas de Padilha, a Cachoeira e a Paredão I, que estão localizadas dentro do parque e abrigam ao menos 1.912 cabeças de gado. Há outras na região: a Agropecuária Jasmim, também em nome de Padilha, e a Palmital e a Barra Mansa que, embora estejam em nome de Marcos Antonio Assi Tozzatti, assessor de Padilha enquanto o peemedebista esteve à frente do Ministério dos Transportes (entre 1997 e 2001) são chamadas pelos moradores de “fazendas do ministro”. A vizinhança inclui terras de outros poderosos, como Sidney Gasques Bordone, dono do grupo City Lar, Wagner Vicente da Silveira, prefeito de Vila Bela da Santíssima Trindade, Leonardo Zem, empresário que controla o transporte público em Curitiba, e a família Sanchez, proprietária da construtora Sanchez Tripoloni, que toca obras federais em diversas paragens do país.

A maior parte dos proprietários de terras dentro do parque chegou depois da sua criação, o que é ilegal, conta Regiane. “Em 1997, já existiam alguns, mas eram poucos”, disse a promotora. “Os proprietários que tiverem título idôneo têm direito a indenizações, agora os posseiros e os que entraram depois estão ali irregularmente”. Segundo Regiane, todas as fazendas do ministro Padilha dentro da unidade foram adquiridas após a criação do parque. “Dá para ver isso pelas imagens de satélite que mostram a evolução do desmatamento”, diz. “Na verdade, ninguém poderia estar explorando essa área e causando esse dano ambiental”.

De acordo com Regiane, não falta recurso financeiro para proteção e regularização da unidade de conservação. “Falta interesse do governo”, diz ela. “O ministro é só um dos 50 proprietários acionados entre os mais de 120 fazendeiros que estão ali. É preciso ressaltar a relevância ecológica desse parque. Estamos falando do bioma amazônico, que recebe proteção do governo federal e incentivo financeiro mundial, mas mesmo assim as ações para sua proteção deixam a desejar”.

Nesta semana, lideranças partidárias da Assembleia Legislativa de Mato Grosso assinaram uma proposta que susta os efeitos do decreto 1.796/97, que criou o Parque Estadual da Serra de Ricardo Franco. Uma comissão foi criada especialmente para tratar do assunto. A ideia encabeçada pelos deputados Wancley Carvalho (PV), Professor Adriano (PSB) e Oscar Bezerra (PSB) é redefinir o perímetro da unidade de conservação.

Na terceira reportagem da série “As estranhas terras do ministro Padilha”, saiba como Marcos Antonio Assi Tozzatti, sócio e ex-assessor do ministro-chefe da Casa Civil, desmatou mesmo depois de ter sido autuado.

Regiane Soares de Aguiar, promotora de Justiça em Vila Bela da Santíssima Trindade. Foto: Ednilson Aguiar/O Livre

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As estranhas terras do ministro Padilha (1)

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