Na mira do MPF, irregularidades na CTNBio vêm à tona com a cana transgênica

Se confirmadas, ligações do comando do órgão com canavieiros e a indústria de sementes e agrotóxicos podem respaldar ação do MP para anular sessão que aprovou a planta geneticamente modificada

Por Cida de Oliveira, da RBA

São Paulo – Os conflitos de interesses envolvendo integrantes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) estão na mira dos procuradores da Câmara de Meio Ambiente do Ministério Público Federal (MPF). Entre outras coisas, eles apuram ligações de ex e atuais integrantes com entidades voltadas ao lobby pró-transgênicos, com indústrias de sementes, de agrotóxicos e de alimentos que terão lucros com a biotecnologia, bem como posicionamentos públicos em desacordo com a função que ocupam na comissão. É o caso de componentes que assinam cartas abertas à comunidade científica em defesa desses organismos geneticamente modificados (OGM).

Querendo mais transparência, o MPF enviou ofício à CTNBio no dia 15 de maio. O coordenador da Câmara de Meio Ambiente, o subprocurador-geral da República Nívio de Freitas, que assinou o ofício, elenca medidas a serem tomadas no órgão criado para assessorar o governo federal em tema por natureza tão complexo, que são os transgênicos.

Entre elas, dar mais objetividade e especificidade ao regimento, inclusive com hipóteses expressas para a conduta ética dos seus integrantes, para que interesses públicos e particulares não sejam confundidos em prejuízo da sociedade brasileira. Do mesmo modo, criar mecanismos para a distribuição equânime, equilibrada e impessoal dos eventos submetidos a análise na comissão e dar publicidade às reuniões. Tudo isso à luz das leis 12.846/13, mais conhecida como “lei anticorrupção”, e a 12.813/13, que caracteriza a presença do conflito de interesses sempre que a atribuição no exercício do cargo proporcionar informação privilegiada capaz de trazer vantagem econômica para o agente público.

No entanto, esse princípio estabelecido pela legislação que dispõe sobre essas relações no poder executivo ainda não é adotado no órgão. Pelo regimento interno, o conflito é reduzido, de maneira genérica, à participação de membro na análise de processo na unidade operativa da instituição proponente com a qual possua vínculo institucional, assim como a vinculação do membro à comissão interna de biossegurança da instituição onde trabalha. A CTNBio afirma já estar discutindo alterações em seu regimento, que preveem ampla revisão da legislação vigente. O tema estará na pauta da próxima reunião, em agosto.

Assédio econômico

O conhecido assédio econômico das grandes corporações transnacionais, comum em todo o mundo, encontraria terreno fértil também em falhas normativas internas. Especialmente a ausência de critérios claros e objetivos para a distribuição isenta dos processos para liberação de transgênicos e para definir impedimentos e até a suspeição de determinados componentes em relação a procedimentos. Ou mesmo para a escolha dos pedidos de liberação que serão analisados e colocados em votação. Outro aspecto destacado pelos procuradores é a dificuldade de acesso da sociedade civil às reuniões, principalmente aquelas que liberam, para pesquisa ou comercialização, novos transgênicos. A comissão, por sua vez, argumenta que todas as reuniões são públicas, exceto aquelas para discussões referentes às informações sigilosas.

As irregularidades comuns desde que a CTNBio foi criada, em 2005, estariam associadas à aprovação de todos os processos de liberação desses organismos submetidos à comissão formada por especialistas em diversas áreas, todos com título mínimo de doutor, cujos mandatos de dois anos podem ser renovados por mais duas gestões conforme as indicações de seus respectivos segmentos.

Em outras palavras, até hoje a ampla maioria desses doutores, muitos deles na área de saúde, com larga experiência inclusive em câncer e outras doenças diretamente associadas aos agrotóxicos e, indiretamente, aos transgênicos, aprovaram e continuam aprovando os OGMs apesar da insuficiência e falhas das pesquisas científicas a respeito. Nessa maioria estão nomes reconhecidos mundialmente e até representantes de entidades sindicais de empresas estatais, em descompasso com os sindicatos cada vez mais convergentes na defesa da saúde pública, ambiental e do princípio da precaução.

Preocupação

“Outra preocupação que temos é com a falta de clareza dos critérios para colocação dos pedidos de liberação em pauta de votação. Não sabemos quais definem o que vai ser colocado em votação, o que não vai. É importante que isso fique claro para que as pessoas saibam quais são os processos que vão entrar em votação”, afirma o coordenador do grupo de trabalho Agrotóxicos e Transgênicos da Câmara de Meio Ambiente do MPF, o procurador Marco Antônio Delfino.

Em 8 de junho passado, pouco mais de um mês após receber as recomendações do MPF, a CTNBio aprovou a liberação comercial da cana de açúcar modificada geneticamente para a inserção de toxinas inseticidas, que a princípio seriam capazes de matar a broca da cana, sua praga mais comum. O pedido, protocolado no final de dezembro de 2015, tramitou em regime de urgência.

Em 17 meses o OGM estava aprovado. E isso apesar das falhas apontadas por um parecer a respeito dos testes apresentados pelo Centro de Tecnologia Canavieira (CTC). Para especialistas, essas pesquisas estão longe de atender às próprias regras da comissão. Muito menos de garantir a segurança da biotecnologia em questão quanto à saúde e ao meio ambiente. Tampouco sua eficácia, que será minimizada com o aumento da resistência das pragas conforme demonstrado em pesquisas de longo prazo realizadas nos Estados Unidos, apresentadas à comissão na única audiência pública realizada, em outubro passado. Não é à toa que novas canas geneticamente modificadas, dessa vez resistentes a herbicidas, estão na fila.

Liberação

Segundo integrantes da CTNBio, que ainda não divulgou ata da sessão de 8 de junho, entre os que 15 doutores que votaram pela liberação da cana transgênica está o presidente da comissão, Edivaldo Domingues Velini. Professor da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp de Botucatu desde 1985, e seu diretor de 2009 a 2013, o agrônomo dedicou a grande parte de seu tempo a pesquisar plantas daninhas, herbicidas e a cana.

Em seu currículo Lattes, disponível na base de dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Velini declara que, além das agências oficiais de fomento, como a Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp) e o próprio CNPq, indústrias de agrotóxicos e de sementes transgênicas têm financiado boa parte de suas pesquisas – o que levanta indícios de conflito de interesses.

A Arysta Lifescience, empresa de atuação global, detentora de mais de 200 ingredientes ativos utilizados em fungicidas, herbicidas, inseticidas e tratamento de sementes, está entre os maiores financiadores de pesquisa conduzidas por ele em parceria com outros colaboradores, entre eles alunos e sócios em seus negócios privados.

A parceria com a indústria começou em 2005, para o desenvolvimento de aplicação de herbicida contra ervas daninhas da cana, e continua por meio de um estudo iniciado em 2008, para avaliar mecanismos para determinar condições de seletividade de herbicidas inibidores da fotossíntese da cana de açúcar. Nesse meio tempo, foram financiados outros três, geralmente envolvendo agrotóxicos e cana.

Com atuação no mercado de agrotóxicos e sementes transgênicas, a alemã Basf financiou dois estudos. Um de longa duração, entre 2003 e 2008, em busca de informações quanto ao melhor uso de um de seus herbicidas em cana de açúcar, e outro entre 2008 e 2011 para instalação de ensaio de eficácia biológica em cana e eucalipto.

De 2008 para cá, a concorrente Syngenta tem pago pela avaliação do desempenho de herbicidas em cana de açúcar. E de 2004 a 2007, outra gigante do setor, a Dow Agroscience, financiou testes de Velini para o desenvolvimento de método para estimativas para aplicações comerciais de agrotóxicos.

Outra ligação

O presidente da CTNBio tem outra ligação com o mundo dos herbicidas e da cana. De acordo com a Junta Comercial de São Paulo (Jucesp), até março passado ele era sócio da empresa de consultoria Agro-Analítica. Empresa, aliás, que financiou algumas de suas pesquisas com herbicidas e cana no período de 2005 a 2007, e de 2008 a 2010.

Outra coincidência seria o foco da atuação da Agro-Analítica no setor canavieiro. Desde 2007, a consultoria é responsável pela organização do Encontro Tecnológico da Cultura da Cana de Açúcar – Tecnocana, grande evento do segmento. A Tecnocana deste ano, realizada nos dias 15 e 16 de março, enquanto Velini ainda era sócio da consultoria, obteve patrocínio da Arysta, Basf, Bayer, Dow, Du Pont e Syngenta, entre outras.

Para Marco Antônio Delfino, do MPF, a CTNBio sempre mereceu atenção – e preocupação – dos procuradores da Câmara de Meio Ambiente. Questionado sobre os dados levantados pela reportagem, ele destaca a necessidade de mais elementos a serem apurados. Mas adianta: “Falando de maneira objetiva, Velini não poderia ter colocado o processo em votação e nem votado. Então, se ele votou, é possível ser anulada a sessão que liberou a cana porque haveria um conflito de interesses manifesto.”

 

 

 

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