Quatro meses após inauguração dos canais, não há qualquer prazo para que a água chegue às milhões de pessoas que vivem no entorno
Por José Eduardo Bernardes* – Outras Palavras
A transposição das águas do São Francisco para banhar o sertão deve alcançar 4,5 milhões de pessoas em 168 municípios afetados pela seca somente no Eixo Leste, segundo o Ministério da Integração Nacional. A estimativa é que nos seus eixos Leste e Norte, o projeto beneficie cerca de 12 milhões de pessoas nos estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.No último dia 19 de março, Dia de São José, ocorreu a “Inauguração Popular da Transposição do São Francisco”, no seu Eixo Leste, com a presença dos ex-presidentes Lula e Dilma e de cerca de 50 mil pessoas, segundo o PT. Reza a tradição que, se não chover neste dia, o inverno será ruim e o agricultor não vai ter boa colheita.
Na mesmo data, durante o evento no município de Monteiro, o governador da Paraíba, Ricardo Coutinho (PSB), prometeu que a água chegaria às torneiras dos paraibanos “em 40, 60 dias”. A promessa, porém, ainda não se concretizou.No destino final do Eixo Leste da transposição, apesar de a água começar a mudar a paisagem ressequida, a falta de tratamento ainda impede sua captação. Vale ressaltar que tanto o tratamento como a distribuição da água são de responsabilidade dos estados; no caso da Paraíba, da Companhia de Águas e Esgotos da Paraíba (Cagepa). Ao governo federal, cabe fazer chegar a água aos açudes e rios.O problema é grave para os sertanejos que moram às margens do canal da transposição. Para eles, desde o início das obras foram feitas promessas de chegada da água, ainda que sem comprovação documental e em reuniões esparsas com engenheiros do consórcio responsável pelo Eixo Leste. No entanto, a água para consumo humano e irrigação permanece apenas como um sonho.
Falam os moradores
Joaquim Cordeiro de Sá, 82 anos, e sua companheira, Sonia Maria da Silva Cordeiro, 74 anos, moram a menos de cem metros do canal da transposição. O casal tem dez filhos. Com exceção de um – que ainda mora no terreno dos pais, onde tem um pequeno bar –, os outros já deixaram a casa e estão espalhados pelo município de Floresta, em Pernambuco, e em localidades próximas.
Parte da terra onde está a casa de Cordeiro foi apropriada para as obras: uma faixa de terra de 200 metros – cem de um lado do canal e cem do outro. A área foi indenizada e o agricultor acompanhou de perto a construção. Hoje, de sua janela, ele vê a água passar, mas não sabe quando poderá bebê-la.“Nós ainda não entendemos se vamos poder usar a água. Um engenheiro, quando a obra estava no início, disse que quando funcionasse o canal, a água era para todo mundo beber, e os animais também”, lembra o pequeno produtor.A água para consumo do casal e do filho, que precisa ser compartilhada com os animais, é advinda de um poço nos fundos do terreno. Quando esta água não supre a demanda, a cisterna abastecida pelos caminhões-pipa é utilizada.“Já veio uma pessoa [engenheiro do consórcio responsável pela construção do Eixo Leste], mediu de lá para cá, toda a casa, para encanar. Mas não sei quando”, afirma Cordeiro. “Eu perguntei: ‘E a irrigação?’ Ele disse que depois de quatro anos eles iriam ver se tem possibilidade de irrigar. Aí, cada morador teria direito a um hectare, plantar um capinzinho para o cabrito, um pouco de feijão e de milho”, relata.Esta também é a situação dos moradores do Assentamento Serra Negra, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que fica na área rural do município de Floresta, a cerca de 65 quilômetros da cidade. A área, habitada pelos sem-terra há cerca de 26 anos, é subsistente: além das casas, tem um posto de saúde, uma escola, comércio local, uma igreja e terrenos onde é possível plantar leguminosas e verduras, além de coqueiros, entre outras árvores frutíferas.
O assentamento, que ainda não tem água encanada, é um dos locais que mais foram afetados pelas obras da transposição do São Francisco. Os canais cortaram ao meio a área e afetaram o prédio do posto de saúde e algumas residências. Carmélio de Souza Guerra, 48 anos, no quarto mandato como presidente da associação de moradores do local, tem quatro filhos e todos moram no assentamento. O sem-terra aponta que, até agora, os moradores só podem assistir à água passar. “Nós precisamos da água para o consumo, para plantar alguma coisa. E, por enquanto, o governo anuncia que está levando água para não sei quantos milhões de pessoas e a gente sem usar água, só vendo passar”, afirma.O último contato que os assentados tiveram com o ministério da Integração Nacional, ou mesmo com o consórcio responsável pela obra, sobre a questão da água foi em 2010. “O ministério disse que cada assentado receberia um hectare de gotejo, já preparado e com micro aspersor. Mas, depois que concluiu a obra, não apareceu mais o ministério”, relata Guerra.“A gente procura alguém do ministério, pelo menos para ver se seria possível tirar a água com um motor, mas até agora não tivemos nenhum contato”, completa o presidente do assentamento.De acordo com o Ministério da Integração Nacional, apenas “os moradores das Vilas Produtivas Rurais do Projeto de Integração do Rio São Francisco [projeto de reassentamento de atingidos feito pelo governo federal] receberão os lotes irrigados assim que o sistema entrar em operação definitiva. Atualmente, o empreendimento está em fase de testes”, notificou. No município de Sertânia, no sertão pernambucano, mais um cortado pelo canal da transposição, Marcia Maria Freire Araújo, 37 anos, também não sabe se terá acesso à água do “Velho Chico”, que passa a cerca de cem metros de sua propriedade. Há oito anos na região, Araújo cria animais para sobreviver. A seca que castiga o sertão há cinco anos e é a mais severa dos últimos cem, tem obrigado a agricultora a contar com a sorte.
“A gente perdeu muitos animais aqui por conta de estar muito seco. E os animais ficam precisando de mais vitaminas, porque as plantinhas que podiam alimentar eles não nascem sem chover. Mas, graças a Deus, aqui e acolá, dá uma chuvinha”.“Eles não falam como a água vai chegar para a gente. O prefeito da cidade fez um debate na rádio de Sertânia, mas a gente não sabe, não deu aquela certeza”, diz.O ex-ministro da Integração Nacional Ciro Gomes destaca que “a distribuição de um hectare de água para irrigação não estava no projeto inicial”. Gomes lembra, no entanto, que “isso imediatamente acontece, porque a necessidade de água é crítica e diária. Se você não tem água, os governos têm, por obrigação, mandar carro-pipa. E, evidentemente que onde tiver água bruta, eles vão fazer a distribuição rapidamente”, explica.
Indenizações
As áreas atingidas pelo canal da transposição do Rio São Francisco foram desapropriadas e indenizadas pelo governo federal, em parceira com as defensorias públicas locais nos estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Segundo o Ministério da Integração, as indenizações foram realizadas “de acordo com a legislação vigente”.
Os desapropriados, contudo, se queixam dos valores concedidos no processo. Em relação a isso, existia também a expectativa de que as terras fossem render mais dinheiro aos seus detentores, como lembra Severino Gomes de Lima, conhecido como Bidóia, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sertânia.“Todas as famílias foram indenizadas onde o canal passou. Onde foi feito reservatório, foi indenizado. Uns com mais, outros com menos, mas foi todo mundo indenizado. Às vezes a pessoa morava em um pedaço de terra onde ia passar o canal e pensava que iria apurar milhões e milhões de dinheiro. Mas o governo, a gente sabe, tem seus cálculos, tem seus técnicos para trabalhar, ele vai pagar dentro do valor legal”, avalia.Porém, André Monteiro, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que apurou uma série de violações relacionadas com a megaobra, destaca que as indenizações foram “irrisórias”. “Em todos os locais a gente identificou essa indenização muito baixa, que eu acho que é a forma que o Estado brasileiro trata as populações mais pobres. Tem o caso de um senhor que teve uma proposta de R$ 150 mil para a propriedade dele e a indenização foi de R$ 9.800”, denuncia.Outro caso é o do assentamento do MST em Serra Negra, no sertão pernambucano, que foi cortado ao meio pelos canais da transposição do São Francisco. As negociações para indenizar as quatro residências e o posto de saúde atingidos foram realizadas pelo Ministério da Integração e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).Segundo o presidente da associação do assentamento, Carmélio de Souza Guerra, o senso coletivo dos moradores impediu supostas injustiças. “No início, o ministério queria pagar um valor que não dava para pagar, que seria R$ 6 mil e pouco para construir outra casa, em outro canto. O posto de saúde era R$ 22 mil. Eles trouxeram três propostas e a associação não aceitou”, conta. A associação só voltou a receber propostas em 2014, quando as obras do canal na região foram retomadas. Na negociação, os moradores pediram que, caso fosse necessário desapropriar, que o governo federal ficasse responsável pela obra.“Negociamos junto com o Incra e o ministério da Integração para eles construírem as casas e o posto de saúde. O posto que eles queriam pagar R$ 22 mil, gastaram R$ 300 mil, e as casas, que eles iriam pagar R$ 6 mil, gastaram R$ 50 mil em cada uma”, lembra Guerra.
Segundo o ministério da Integração, foram produzidos laudos de avaliação patrimonial com base em tabelas de preços elaboradas a partir de pesquisas locais e regionais dos valores por hectare na região, de acordo com “tipologia de solo, vegetação e benfeitorias edificadas nas propriedades”.
A pasta ainda informa que é “importante ressaltar que, havendo discordância dos valores da indenização, o expropriado pode recorrer à perícia judicial. Após a entrega do laudo pericial, o juiz decide a justa indenização pela desapropriação”, completa.
Reassentamentos coletivos
Em alguns casos, onde os moradores das áreas atingidas não aceitaram as indenizações, o governo federal propôs que os atingidos fossem realocados em vilas coletivas. É o caso da VPR Lafayete, em Sertânia, no sertão da Paraíba. Agnaldo Freitas da Silva é o presidente da Associação de Moradores da VPR Lafayete. Silva conta que a realocação dos atingidos “foi feita com certo cuidado, certa calma, nós fomos preparados para isso”. “Eles vieram na comunidade, passaram fazendo cadastramento. Fizeram a medição das propriedades, o valor da indenização. Só depois disso começaram as desapropriações”, lembra.
Contudo, segundo o presidente da associação, “a transposição não deixou de ser um transtorno na vida da gente. Nós tínhamos nosso lazer, nosso habitat, nossa casa, nosso sítio e, de repente, a gente teve que sair. Chegou o pessoal do ministério e disse: ‘Vocês vão ter que sair, porque aqui vai passar o canal; vocês vão ser indenizados, o ministério vai pagar um aluguel para vocês’”. Ao todo, vivem na Vila Produtiva cerca de 61 famílias, que constituem mais de 200 pessoas. “Quando a vila foi construída, em 15 de março de 2016, acabou o processo de aluguel e a verba passou a ser transferida. Deixou de ser um aluguel para ser uma verba. O governo nos dá essa assistência de um salário e meio para cada família, enquanto a gente se organiza e, segundo eles, é até a gente ter os lotes irrigados”. A promessa de irrigação também ronda os moradores da VPR. Araújo, que era agricultor e plantava milho, feijão, palma forrageira para o gado, capim bufo e capim elefante, espera que a verba que os moradores recebem seja substituída pela água que irrigará as próximas plantações.“O governo se comprometeu a dar esses lotes, que é um hectare de terra irrigada, aqui mesmo na VPR, nos 61 lotes. E quando estes lotes estiverem irrigados e produzindo, aí sim o governo cortará a verba”, confia.
Segurança nos canais
Em toda a extensão dos canais da transposição do São Francisco serão construídas cercas de proteção. Em alguns locais, as estruturas já foram erguidas; em outras, não há qualquer barreira que impeça a aproximação de pessoas e animais da obra. É comum encontrar pessoas se banhando nas águas do canal. Os animais, principalmente as cabras, já descobriram como se equilibrar nas gigantescas paredes de concreto para beber a água do rio. Os reservatórios, que estão posicionados em diversos pontos do canal, são utilizados para lazer de pessoas das comunidades. Placas indicam que é proibido nadar no reservatório, mas os avisos são constantemente ignorados. A negativa aos avisos custou a vida de diversos animais e de pelo menos duas pessoas.Uma delas, o jovem Uéslei Silva França, 16 anos, do povo indígena Pipipã, no município de Floresta. Ele estava acompanhado do tio e de amigos e, segundo testemunhas, foi arrastado pela correnteza que se formou perto de uma das estações de bombeamento, a BV-3, que eleva o nível da água para transpor desníveis.“É uma obra feita sem segurança, tanto para os animais quanto para as pessoas. Inclusive a gente já perdeu pessoas da gente, porque não tem segurança”, afirma Edjalva Xavier da Silva, uma das lideranças do povo Pipipã e tia de Uéslei. A indígena afirma que não existiam placas de aviso do perigo de nadar nas águas do reservatório. “Nem uma placa de aviso tinha. Hoje tem, mas a verdade é que foi só depois do acidente que eles colocaram, porque a gente cobrou”, relata Silva.O ministério da Integração Nacional afirma, em nota, que “campanhas de conscientização para alertar a população sobre os riscos de nadar nos canais e reservatórios do Projeto de Integração do Rio São Francisco são veiculadas”. A pasta explica ainda que “fez uma parceria com a Polícia Militar do estado para ajudar na tarefa de fiscalizar a entrada ilegal nos canais e reservatórios”.
Ainda segundo o ministério, as placas – que, como lembrou Edjalva Xavier, foram colocadas após a morte do jovem pipipã – “advertem sobre a proibição de entrada nos locais”. O órgão não deu um prazo para que sejam erguidas as cercas que vão impedir a aproximação de pessoas e animais ao canal.
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* Publicado originalmente no Brasil de Fato. Reproduzido em Outras Palavras com autorização especial do autor.