Relatório do Cimi enxerga fortalecimento do ‘integracionismo’, que contraria a Constituição; audiências na Câmara discutiram produção agrícola em território indígena
Por Izabela Sanchez – De Olho nos Ruralistas
“Integracionismo à vista”. Esse é o título de apresentação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no relatório ‘Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil 2017’. O documento mostra que o número de assassinatos de indígenas, em 2016, diminuiu em comparação à 2015 e 2014, mas não a abrangência da violência. Pulverizados, os ataques contra os direitos das etnias mostram um setor ruralista mais organizado, estruturado e com forte lobby junto ao governo.
Mudanças legislativas, que antes demoravam anos para serem construídas, agora são levadas à frente por meio de canetadas. É o caso da produção agrícola em terras indígenas, que ganha destaque nas pautas da bancada ruralista do Congresso. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) mobilizou uma audiência pública sobre o tema, na Câmara, solicitada pelo presidente da organização, deputado Nilson Leitão (PSDB-MT).
A audiência ocorreu no dia 18 e foi marcada pela violência: indígenas que tentaram entrar na Câmara foram impedidos e detidos pela segurança da Casa, que se intitula Departamento de Polícia Legislativa (Depol), e devem responder a investigações.
Quando anunciou a discussão, Leitão comentou sobre a “preocupação” de que os indígenas não estão enriquecendo nas terras onde estão, e comentou sobre as “valiosas jazidas minerais” que incidem nos territórios, conforme publicou o jornal O Livre:
– Nós vamos trazer lideranças indígenas para Brasília, a fim de debater a produção dos índios em suas comunidades. Vamos debater o direito de eles explorarem suas terras e também o minério. Muitas aldeias indígenas estão em cima de jazidas — da esmeralda, do ouro, da prata. Muita gente está enriquecendo com isso, menos o índio.
AGRONEGÓCIO EM TERRAS INDÍGENAS
Durante o encontro, parlamentares da bancada divulgaram que as etnias “manifestaram o desejo de serem também produtores rurais ou de arrendar essas áreas para poder usufruir do solo, utilizando o manejo adequado”. O portal ‘Notícias Agrícolas‘ destacou a cidade de Campo Novo do Parecis (MT) onde, segundo a publicação, “há indígenas que foram estudar agronomia e dominam as boas práticas agrícolas, bem como fazem uso de agricultura de precisão”.
Ocorre que no próprio Mato Grosso há denúncias de que as terras indígenas já foram invadidas pelo agronegócio. Informações obtidas pelo De Olho nos Ruralistas indicam que o cenário não é recente e avança em larga escala. A ideologia de produção agrícola dos ruralistas alcança etnias Brasil afora, mas não é unânime. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) relatou ter sido surpreendida, por email, com um convite para compor as discussões.
Dias depois do anúncio da audiência, jornais publicaram que o presidente Michel Temer (PMDB) pretendia regularizar o arrendamento de terras indígenas por meio de uma Medida Provisória (MP), o que o Planalto ‘desmentiu’ rapidamente, conforme publicou o Instituto Sociambiental (ISA). A tentativa não é nova e está presente em projetos de lei da bancada, conforme publicou o De Olho nos Ruralistas.
‘FORÇAS ANTI-INDÍGENAS’
Secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário, Cleber César Buzatto pontuou que 2016 foi o ano das “forças anti-indígenas”. Já instaladas no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e nos governos anteriores, elas se associaram a grupos ainda mais conservadores, fundamentalistas e financistas. O resultado? Uma pauta positiva – do ponto de vista dos ruralistas – para o biênio 2016-2017:
– Às vésperas da votação do impeachment, a bancada ruralista e cerca de 40 associações de envergadura nacional e regional do agronegócio e representantes de produtores de commodities agrícolas destinadas fundamentalmente à exportação acertaram os ponteiros em torno do documento “Pauta Positiva – Biênio 2016-2017”.
No relatório, o Cimi fala do crescimento do paradigma “integracionista”. Ele enxerga os indígenas como parte que não se encaixa no projeto de Estado, pautado pelo agronegócio e pelos interesses privados. Essa perspectiva também não é novidade do governo Temer. Ela foi a amarra invisível que coordenou as ações do Estado brasileiro antes da Constituição de 1988.
O documentário “Índio Cidadão?” do cineasta Rodrigo Siqueira, mostra como a luta dos povos indígenas articulou a Constituinte. O resultado foi a perspectiva de Estado Pluriétnico, regulamentado pelo Estatuto do Índio. É com esse entendimento que a Constituição normatiza o vínculo das etnias com os territórios que tradicionalmente ocupam, muito além da ideia de propriedade estabelecida por outras legislações. Ele leva em conta a memória, a oralidade e os costumes que ligam um povo à determinado território.
O Estado Pluriétnico, alertam juristas, é hoje ameaçado pela tese do Marco Temporal, com origem no julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 2009, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento, mesmo sem efeito vinculante, deu a brecha para que o governo conseguisse esticar a tese. Entre 2016 e 2017 o assunto foi prioridade para a base aliada de Temer. E também preocupa o Cimi, que publicou um artigo específico sobre o tema no relatório.
AGENDA DE RETROCESSOS
A assessora antropológica Lucia Helena Rangel e o coordenador do Regional Cimi Sul, Roberto Antonio Liebgott, relataram, no documento, como as disputas pelo poder político do país causam aumento da violência contra os povos. Eles explicam que a abertura para o setor sempre existiu, mas se transformou, de forma gradual, em ideologia dominante no governo federal.
A bancada ruralista foi responsável, conforme publicou o De Olho nos Ruralistas, por segurar Temer no cargo durante a votação do primeiro pedido de investigação enviado pelo então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot. Na quarta-feira (25), dia em que Temer foi novamente blindado, não foi diferente: 54,58% dos votos a favor do presidente saíram de integrantes da FPA.
Dias antes da votação o presidente esteve no Pantanal sul-mato-grossense, em Miranda, a 201 km de Campo Grande, onde assinou medidas que alteraram as regras de legislação ambiental para empresas privadas. As Medidas Provisórias e um decreto renegociam dívidas de multas ambientais, oferecem descontos e criam um fundo público para compensação ambiental.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) sofreram cortes e reduções. O Cimi também mostrou, no relatório, um retrato caótico das pastas responsáveis pela assistência e garantia aos direitos dos povos indígenas, sucateadas. A Funai, segundo o Cimi, tem o menor orçamento em 10 anos. Para os integrantes do Cimi há uma tendência “de que haverá mudanças ainda mais severas”.
ARRENDAMENTOS NO SUL
Apesar de mostrar mais força, essa agenda é gestada pela bancada há anos. O “integracionismo à vista” esteve presente na fala de um representante da pasta de Blairo Maggi (PP), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Pedro Alves Correia Neto participou de uma audiência sobre o assunto em dezembro de 2016, no Senado. Ele afirmou que os índios “não podem ficar à margem da tecnologia e têm que ser integrados”.
O sucateamento da Funai também não começou durante o governo Temer. A falta de assistência, que deixa comunidades indígenas sem projeto de futuro em todo o Brasil, foi exemplificada pela fala de um dos indígenas durante a audiência do Senado. Cacique da Terra Indígena (TI) Nonoai, no Rio Grande do Sul, José Orestes é vereador em Gramado (RS). Ele declarou que a seca e a epidemia assolam a comunidade onde vive há anos. “Meus índios muitas vezes passam até fome”, disse.
Segundo o Senado, o cacique teria se queixado de recomendação expedida pelo Ministério Público Federal (MPF), que pediu o fim dos arrendamentos na TI. Na Terra vivem os povos Guarani, Guarani Mbya, Guarani Ñandeva e Kaingang, segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA). A recomendação foi expedida em setembro de 2016 e afirma que um inquérito civil confirmou a existência de arrendamento sob intermédio da Cooperativa Agrícola e Ambiental.
O MPF declarou, por meio da assessoria de imprensa, que a cooperativa, na condição de intermediária dos arrendamentos, “se apropriava de parcela dos recursos e não adota quaisquer medidas de transparência acerca da destinação dos valores”.
Forte representante da bancada ruralista, o senador Waldemir Moka (PMDB-MS) criticou o MPF, durante a audiência. “Essa parceria, não tenho dúvida, só vai trazer benefício, e que me desculpe o procurador, agora peço vênia, ele tá equivocado”, afirmou.
‘NÃO SOMOS PRODUTORES RURAIS’
Advogado e pesquisador em Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Brasília (UNB), o coordenador executivo da Apib, Dinamam Tuxá, representante da etnia Tuxá, da Bahia, conversou com o De Olho nos Ruralistas antes que a FPA agendasse a discussão. Ele destacou que o objetivo da audiência é explorar, de forma predatória e “nada sustentável”, as terras indígenas.
Ele defende que o modo tradicional de produzir a terra, para as etnias, não se pauta pelo latifúndio, mas sim pela sustentabilidade:
– Entendemos que essa audiência foi proposta no intuito de tentar desconfigurar, de tentar alocar, aos povos indígenas, uma postura que não é dos povos indígenas, ou seja, nós não somos produtores rurais, nós não praticamos o latifúndio, nós trabalhamos a agricultura tradicional e a forma de produção indígena vem em comum acordo com a sua sustentabilidade. Prova esta que os 13% do território nacional que estão sob a posse dos povos indígenas, é público e notório isso, são áreas altamente preservadas.
Tuxá diz que a discussão da Câmara tem o intuito de impor, aos povos indígenas, “o modelo de produção agrícola ligado ao agronegócio, ao latifúndio, e ao modelo capitalista”. O pesquisador afirma que a audiência tenta macular a tradicionalidade da relação com a terra e com o meio ambiente. Ele reclama que muitos representantes dos povos indígenas, à exemplo da Apib, não foram consultados:
– É preocupante quando uma audiência desse porte coloca segmentos, setores do governo, e até o próprio movimento, que não foi consultado, para fazer parte dessa audiência. Eles colocaram uma pauta, mas não houve o devido convite, não houve sequer o devido repasse das informações para que nós possamos dizer se queríamos participar ou não. Não é de interesse dos povos indígenas ter esse tipo de debate. É de interesse dos povos indígenas discutir a sustentabilidade dentro das terras indígenas.
A reportagem enviou perguntas sobre a audiência, para o deputado Nilson Leitão e para a FPA. Os questionamentos não foram respondidos.