Indígenas denunciam a comissário da OEA crescente violência contra suas comunidades e exigem do Governo andamento nas demarcações

Por Guilherme Cavalli, da assessoria de comunicação – Cimi 

“O Estado brasileiro tem claras obrigações com vocês, povos indígenas”. Em reunião com lideranças indígenas ontem, domingo (12), o comissário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) James Cavallaro apresentou-se, e após poucas palavras, se postou em escuta. “Venho até vocês para ouvir suas demandas e leva-las as instâncias internacional, além de apresentar questionamentos ao governo brasileiro”. 

O encontro de Cavallaro com os indígenas integra a agenda iniciada no último 23, quando uma delegação de indígenas do Brasil esteve em Montevideu, Uruguai, para o 165º Período de Sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O grupo de indígenas participou da Audiência Pública sobre as Violações dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas no Brasil. Por não comparecer alegando problemas no voo, a sabatina ao governo brasileiro ocorrerá hoje a tarde. Entre 2013 e 2015 – últimos dois períodos de sessões da Comissão Interamericana -, o Brasil se comprometeu a enfrentar as fontes das ameaças aos povos indígenas – o que significaria a demarcação dos territórios. Contudo, o Estado não avançou nos processos de demarcação.

Na reunião de ontem, Luis Salvador, liderança Kaingang do Rio Grande do Sul, questionou a omissão das políticas governamentais diante eclosão da violência contra comunidades tradicionais e do campo. “Vivemos um eterno massacre, violências que duram 517 anos. O atual governo mostra-se hábil em conduzir iniciativas contra nós, povos indígenas”, ressaltou. Cacique da Terra Indígena Rio dos Índios, município de Vicente Dutra (RS), Luis apresentou a morosidade do Estado na demarcação dos territórios tradicionais.

“Aguardamos 32 anos para que nossa terra seja demarcada. Enquanto esperamos, vivemos sob ameaça e racismos de deputados que não cansam de dizer que somos “tudo o que não presta”, comentou ao recordar dos frequentes discursos do deputado estadual Luis Carlos Heinze (PP/RS).

Marco Temporal, parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), Proposta de Emenda a Constituição (PEC) 215, desmonte da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), constantes violências, massacres e criminalizações das lideranças indígenas. As violações de direitos humanos contra os povos indígenas trazidas a pauta na reunião de domingo serão abordadas hoje (13) na presença da presidência da FUNAI e do Governo brasileiro. Participaram da reunião lideranças dos povos Guarani Kaiowá e Ñhandeva (MS), Kaingang (RS), Pataxó e Tupinambá de Olivença (BA), Akroá-Gamella (MA) e Karipuna (RO).

Estado Genocida

“Os povos indígenas, principalmente os que estão no Mato Grosso do Sul (MS), vivem em estado de calamidade. Sem demarcação, crianças, idosos, muitas famílias estão na beira da estrada, cobertos por lonas pretas”. A dura realidade que seu povo enfrenta no MS devido à desigualdade territorial foi um dos principais eixos da fala da liderança Eliseu Lopes. São 74 terras tradicionais sem providência no estado. O integrante da Aty Guasu, grande assembleia Guarani, relatou a responsabilidade do governo federal diante da violência praticada contra os povos originários. “A política de extermínio é um projeto. O Brasil é um estado que se ergueu com sangue indígena. O Brasil precisa se responsabilizar por sua política de morte dos nossos povos”.

Os dados de violência contra povos indígenas referentes ao estado do Mato Grosso do Sul são os mais alarmantes. Em  2016 foram registrados 45 casos de violência contra indígenas, com 16 tentativas de assassinatos e 15 consumações. Por omissão e morosidade na regularização de terras, registrou-se 102 violências contra o patrimônio.

Concomitantemente a reunião, indígenas de cinco povos ocupam a sede da Funai em São Luís (MA) exigindo demarcações de terras. Caw Akroá-Gamella deixou a ocupação para, junto ao comissário da OEA, expor as sistemáticas violações que seu povo vem sofrendo. “Em abril sofremos um ataque na tentativa de nos massacrar. Hoje as investigações para condenar os responsáveis por esse ato estão paradas. É um Estado que viola e se faz omisso na hora de investigar”, denunciou.

Em 30 de abril, um grupo Akroá-Gamella acabou brutalmente atacado no Povoado de Bahias, município de Viana (MA). Enquanto se retiravam da área tradicional retomada, sofreram uma investida de dezenas de homens armados com facões, paus e armas de fogo. O caso foi denunciado na Audiência Pública na CIDH sobre as Violações dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas no Brasil.

“Mesmo sob ameaças, continuamos nos organizando para que nossos direitos sejam respeitados. Nosso território é tradicional e continuaremos na luta por ele”, comentou Caw ao garantir que a ocupação seguirá até que tenham a garantia de demarcação.

Petição entregue a OEA

No final do encontro, lideranças da Aty Guasu entregaram a James uma petição sobre e a Terra Indígena Guyraroká. O documento denuncia a decisão da 2° Turma da Corte do Supremo Tribunal Federal (STF) que anula o reconhecimento tradicional da Terra Indígena.

O Ministério da Justiça (MJ) reconheceu em 2009 a tradicionalidade da TI após relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho da Funai. Ainda sim, o posseiro da região pediu a nulidade dos atos no MJ. O Superior Tribunal Judicial (STJ) considerou inadequada a ação movida pelo fazendeiro, seguido pelo relator do processo no Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandoswski. No entanto, o ministro Gilmar Mendes contestou a decisão, acompanhado pelos ministros Celso de Mello e Carmem Lúcia.

Com três votos a um declararam que o particular tinha o direito sobre a terra. Em nenhum momento a comunidade indígena foi ouvida durante o processo. Diante o contexto, Aty Guasu, grande assembleia do povo Guarani juntamente outras organizações indigenistas encaminharam a Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma petição que pede posicionamento da corte.

A época o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entrou com embargos de declaração com pedido de concessão de efeitos modificativos contra decisão da 2ª Turma do STF. Também, o Ministério Público Federal (MPF) apontou omissão e contradição no julgamento pela não participação da comunidade indígena.

Expulsos da área em 1930 quando o Estado brasileiro começou a ceder para particulares a terra sagrado Kaiowá, os indígenas vagaram, mas nunca deixaram de ter vínculo espiritual com seu tekoha – lugar onde se é, o território tradicional Guarani Kaiowá, voltando mais tarde. Reconhecido na cosmologia Guarani como “Tempo de Direito”, os anos 2000 marcaram para o povo o momento de retornar a Guyraroká.

“Fomos expulsos de nosso território sagrado. Hoje dizem que aquele lugar não é nosso. Como não se eu nasci e caminhei toda minha vida lá? Morava lá antes mesmo de falar português”, contou Tito Vilhalva, 99 anos, cacique da aldeia Guyraroká.

Confinados em uma pequena porção do território, os indígenas vivem hoje em barracões de lona e sofrem com a falta de assistência na área da saúde, dificuldades para plantar, além das constantes ameaças e mortes promovidas por ações de fazendeiros locais.

Loteamento e retirada de madeira em TI

“Os grandes empreendimentos matam os povos indígenas. É hidrelétrica, hidrovias, ferrovias e estradas. Construções, retirada da mata para exploração da madeira e da mineração. São iniciativas que se igualam a apontar uma arma para nossa cabeça”. Adriano Karipuna, do povo Karipuna, vive sob ameaça por denunciar a realidade vivida pelo seu povo. A liderança, incansavelmente, denuncia as práticas de retirada de madeira e loteamento dentro do território indígena, localizada nos municípios de Porto Velho e Nova Mamoré, com 153 mil hectares, homologada em 1998.

“No último mês encontramos 78 loteamentos dentro de nosso território tradicional. São práticas consentidas pelo governo do estado de Rondônia”, garante. Adriano expõe atividades que advertem risco ao território, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR). O fichário online de terras, feito de maneira auto declaratória, permite acessos a financiamentos para construções. O problema é que muitos dos CARs declaram posse em terras indígenas.

Segundo Adriano, outra prática que “mascara” a exploração e o transito livre de madeira ilegal é o plano de manejo emitido pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (Sedam). Madeira é retirada das TIs e áreas de preservação ambiental da região (TIs Karipuna e Karitiana, Floresta Nacional do Bom Futuro, Resex Jaci-Paraná e Parque Estadual de Guajará-Mirim).

“Esse é o Estado que convém com a exploração e que busca políticas para flexibilizar as leis ambientais em troca de permanecer no poder. Enquanto isso, sofremos ameaças por invasores que fazem de nossos territórios um lugar de exploração”, expôs Adriano.

Criação do GIEI

Na capital uruguaia, as organizações indígenas e indigenistas signatárias da audiência solicitaram como encaminhamento a criação de um grupo interdisciplinar de especialistas independentes (GIEI) para os direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. O Requerimento pauta-se no contínuo processo de extermínio e na ineficiência das políticas indigenistas do país. Em 2014 a CIDH e o Governo mexicano criaram mecanismo semelhante para acompanhar as investigações frente ao desaparecimento de 43 estudantes no México.

Caberá ao GIEI, constituído pelo Estado brasileiro com orientação da CIDH, acompanhar os processos demarcatórios de TI; identificar e investigar obstáculos contra as demarcações; monitorar o cumprimento da plena e irrestrita participação dos Povos Indígenas nos processos que os afetam; oferecer assistência técnica internacional para capacitação dos agentes do Estado a fim de apresentar os padrões internacionais de direitos indígenas; cobrar o andamento das investigações penais relativas aos massacres e atentados contra os povos indígenas; estabelecer medidas reparatórias e cronograma de implementação para atenção as comunidades, vítimas e famílias afetadas pelas violações;

A solicitação para a criação do GIEI foi feita pela Defensoria Pública da União (DPU), Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Juízes pela Democracia, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Aty Guasu, Ordem dos Advogados do Maranhão, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIOCB) e Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Foto: Guilherme Cavalli / Cimi

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