Um dos grandes defensores do direito universal ao abastecimento denuncia: privatização fracassou, ao excluir bilhões e multiplicar desastres ambientais. Porém, prossegue — movida por oligarquia global cuja soberba ameaça o planeta
Por Riccardo Petrella, Outras Palavras*
Três razões para repensar a água:
1. A mercantilização, monetização e privatização da água e dos serviços hídricos: danos e falhas
Sob a vaga “triunfante” da chamada “terceira revolução industrial” (tecnologias da informação e da comunicação, biotecnologia, novos materiais, transportes e energias renováveis) e da globalização desregulada que emerge da economia capitalista de mercado, todas as formas de vida foram mercantilizadas noss últimos 50 anos, e tudo o que um dia foi considerado como serviço público essencial para a vida e o viver juntos, sob a responsabilidade coletiva das comunidades humanas, foi privatizado e submetido às “regras” dos mercados financeiros mundiais cada vez mais alienados da economia real.
O valor de todos os bens foi definido principalmente em relação ao seu valor mercantil. Os recursos naturais foram reduzidos unicamente a fontes de extração, até seu esgotamento, para a riqueza financeira dos mais fortes, dos mais competitivos. Tambem os bens construídos pelos seres humanos – tais como conhecimento, habitação, saúde, educação, segurança da existência e do futuro, foram monetizados, financeirizados, privatizados. Em 1980 a Corte Suprema dos Estados Unidos legalizou, pela primeira vez na história da humanidade, a privatização da vida para obtenção de lucro (patenteamento da vida) – um escândalo – incluindo a herança genética dos seres humanos, para não mencionar as espécies vivas de animais, plantas e micróbios. Pela Diretiva 98/44 / CE, a União Europeia seguiu o exemplo em 1998.
O monopólio predador da vida não poupou a água e os serviços hídricos do longo ciclo da água. As autoridades públicas “nacionais”, que ainda têm o poder formal da regulação legislativa, política, judiciária e de sanção em todos os domínios da água (doce e salgada), delegaram “a gestão dos recursos hídricos” a empresas privadas, muitas vezes grandes grupos industriais-industriais multinacionais como Suez, Vivendi, Thames Water, Águas de Barcelona…). Pior, também impuseram uma concepção de água estritamente econômica, utilitarista e mercantil, consagrada em 1993 pelo Banco Mundial em seu documento-bíblia da política da água denominado “Integrated Water Resources Management”. Essas teses são fundados sobre o princípio (dogmático) de que a água deve ser considerada essencialmente como um bem econômico, submetido às “regras” da rivalidade e da exclusão. Daí a imposição da obrigação de, para ter acesso à água e aos serviços hídricos, pagar um preço de mercado, segundo o princípio “a água financia a água”: o financiamento da infraestrutura e dos serviços hídricos é obrigatoriamente asseguradopelo pagamento de uma conta pelos consumidores, como para todos os outros bens de controle privado. Segundo essas teses, os usuários dos serviços hídricos não são cidadãos que têm direitos, mas consumidores que têm necessidades, das quais se pode tirar vantagem. Assim nossas sociedades abandonaram a visão da água enquanto um bem comum público e jogaram às urtigas o reconhecimento do direito universal à água potável e ao saneamento ainda assim consagrado em 28 de julho de 2010 por uma resolução da Assembleia Geral da ONU. Isso mostra o respeito que têm os Estados pelas decisões da ONU.
Vendidas como signos da nova era da globalização planetária de alta intensidade tecnocientífica, a mercantilização da água (e da natureza) e a privatização dos serviços hídricos são reveladas em suas grandes falhas: depois de quarenta anos conduzidos em nome dos dogmas do capitalismo mundial (selvagem e “renano”), nem os seres humanos, nem o mundo da água (rios com lençóis freáticos, lagos com zonas úmidas, água potável com águas minerais naturais) saem ganhando. As devastações ambientais e humanas são consideráveis. Estima-se que o número de pessoas sem acesso à água em bases regulares e contínuas, na quantidade e qualidade essenciais para a vida, é próximo a quatro bilhões (uma violação inaceitável do direito à vida). Há rarefação crescente da água própria para uso humano em razão dos fenômenos persistentes da poluição e da contaminação de todos os corpos hídricos. A água permanece na raiz de muitos conflitos locais como parte de uma nova conquista global pela água, liderada abertamente pela Nestlé, Danone, Coca-Cola, PepsiCola, assim como pelas empresas extrativistas (petroleiras, mineradoras…), químicas e farmacêuticas, de informática e outros grandes consumidores de água de boa qualidade. É outro fracasso do projeto do preço a pagar (as tarifas aumentam em todo o mundo) e da gestão “transparente” e “participativa” (as empresas com ações em bolsas não sabem o que essas palavras significam).
Mesmo os ingleses – que estiveram entre os mais convictos promotores da água mercadoria e rentável para o capital privado – começam a falar em remunicipalização e em tornar novamente público o recurso água. A corrida pelo “ouro branco” resulta em um claro fracasso. Mas os custos humanos, sociais e financeiros não foram pagos, e não são ainda hoje, pelos grupos que impuseram a mercantilização e privatização – mas pelas próprias vítimas (os povos indígenas, os camponeses, os estratos sociais empobrecidos das cidades, subúrbios e favelas, crianças menores de seis anos, mulheres, minorias excluídas …).
Não podemos continuar no caminho dos fracassos, dos conflitos, das desigualdades, das exclusões, dos predadores.
2. Os fundamentos do “viver juntos” questionados: o Estado, o público, o bem comum, a segurança coletiva, a democracia. O que é a humanidade?
A segunda razão que nos obriga a “repensar a água” reside no fato de que o período mencionado colocou igualmente em evidência as profundas mudanças ocorridas na concepção e papel do Estado (e dentro dele, as comunidades locais: município, províncias regiões…) e dos poderes públicos em geral. O Estado atual não é mais, ou é cada vez menos, o Estado de direito e dos direitos. Os governos nacionais demoliram em quase toda parte o Estado de bem-estar, o Estado de seguridade social generalizada. A segurança de que os Estados ainda se sentem investidos foi reduzida à segurança militar (contra os inimigos estrangeiros) e de proteção da propriedade privada dos bens e pessoas abastadas (pensemos em “gated cities” ou “cidades trancadas”). A segurança ambiental e a justiça ambiental protegendo o bom estado ecológico dos bens e serviços naturais essenciais e insubstituíveis para a vida, assim como a convivência entre grupos sociais, comunidades humanas e povos ainda são conceitos e práticas a ser concretizadas.
Depois das três grandes Cúpulas da Terra (Rio, Joanesburgo, Rio) e as 23 COPs (Conferência das Partes da Convenção do Clima) da ONU sobre as mudanças climáticas, devemos nos interrogar sobre a perda substancial do sentido que nossas sociedades dão à vida, ao conjunto da comunidade global da vida. Onde está a sacralidade da vida, a sacralidade da água? Nesses últimos anos, as justificadas críticas à abordagem antropocêntrica do mundo e da vida permitiram promover uma visão mais holística e real da vida, ecocêntrica, pós-industrialista, e desenvolver novas teorias sobre os habitantes da terra e os sujeitos titulares de direitos. Movimentos “mundiais” desenvolveram-se em favor dos “direitos da natureza”, dos direitos dos animais, das plantas, das espécies microbianas, da integridade dos genomas… Assim, é importante considerar muito positivamente a pertinência da decisão tomada pelo parlamento neozelandês em 2017 de reconhecer o rio Whanganui como uma entidade viva, com status de “personalidade jurídica”, e que o mesmo reconhecimento tenha sido atribuído depois de alguns dias na Índia a dois rios, o Ganges e a Yamuna, onde os hindus praticam regularmente suas purificações, qualificados de “entidades vivas com o status de pessoa jurídica” pela alta corte do estado de Uttarakhand no Himalaia.
Qual o sentido a ser atribuido ao conceito de “habitantes da Terra”? Hoje, os que dominam não pensam que todos têm o direito de habitar a Terra. Basta observar o tratamento dos imigrantes, os chamados “refugiados econômicos”. Em que medida e como a globalização real da condição humana, no quadro de grandes interdependências e complexificação da vida na Terra, muda as visões que se tem dos “bens coumns da humanidade”, de “bens comuns publicos mundiais”?
Que significa hoje concretamente, para bilhões de pessoas, falar de “bem comum da humanidade?” O que realmente entendemos, para além da retórica, quando a ONU fala de “nosso futuro comum” e quando, mesmo o Forum Social Mundial fala de bens comuns, de “direitos da humanidade”? Quais são as relações diretas entre “direitos humanos universais” e “bens comuns”, “direitos da humanidade” e “direitos da natureza” e “bens comuns públicos mundiais”?
Qual é, nesse quadro, o sentido que damos ao Estado: que Estado queremos para o século 21? Um Estado que se situa na continuidade com a centralidade atribuida até o presente aos Estados soberanos “nacionais” no quadro de um multilateralismo inter-estatal em escala mundial? Em alternativa, um mundo fundado sobre a auto-organização política das comunidades humanas ou, por outro lado, a auto-organização de grupos espontâneos entre portadores de interesses (os “stakeholders”), caros ao mundo da economia capitalista? Nessa última hipótese, o que seria da democracia, uma vez os que dominam a estão jogando no lixo e continuam a substituí-la pela noção e a prática da “governança”, em que os atores chave são os portadores de interesse? Podemos confiar o governo da água em nível local até o nível mundial/planetário aos jogos de concorrência e às alianças oportunistas entre os stakeholders?
Para além disso, as questões da água levantam sérias interrogações sobre o sentido do conceito de público, pois as tendências atuais vão na direção de um enfraquecimento estrutural do conceito de público estatal para favorecer o desenvolvimento do papel do público não-estatal. A água enquanto bem (e serviço) comum público pertenceria a quais “esferas” do público? Se sabemos o que pode ser um público estatal local e nacional, quem poderia dizer o que poderia significarum público estatal no plano mundial/planetário? Não podemos deixar essas questões para o jogo do mercado e das finanças. O mundo necessita definir regras comuns. É preciso “repensar a água”, conceber e praticar um novo contrato social mundial da água.
3. Finalmente, as rupturas sociais, o agravamento das grandes desigualdades diante do direito à vida, em todos os níveis. Não podemos mais fingir que tudo é “natural”.
A terceira “razão” tem uma elevada probabilidade de ser a mais convincente. Diante da amplitude dos desastres climáticos em curso e previsíveis no horizonte de 2050, tomamos consciência de que a água será a principal vítima desses desastres. Tudo indica que, mesmo se forem respeitados os compromissos (modestos) assumidos em Paris na COP21 por ações fortes e coordenadas em plano mundial, o planeta não será poupado pela intensificação em frequência e gravidade dos fenômenos ditos extremos (inundações e secas). Estes irão impactar os regimes da água em todas as regiões do mundo, provocando grandes devastações sobre a quantidade e a qualidade disponível e acessível de água própria para uso humano. Todo o mundo prevê uma intensificação dos processos de rarefação da água.
Os grupos dominantes sofrerão menos com as devastações que as populações de regiões já confrontadas com a penúria de água e a má qualidade das águas. Por isso, as soluções propostas pelos que dominam são concebidas sobretudo em função de suas aspirações, necessidades e interesses. Face à rarefação, pretende-se reduzir a segurança hídrica à segurança de suas atividades econômicas, de sua riqueza e de seu bem-estar. Os acionistas da Coca-Cola estão muito inquietos por uma situação de crescente carência global de água! Segundo os que dominam, as opções “confiáveis” que eles impuseram nos últimos anos são unicamente em favor de duas estratégias: a estratégia de resilência (aumentar a capacidade das populações de reduzir os efeitos mais catastróficos das perturbações climáticas e da água), e a estratégia de adaptação (dar a si mesmo os meios para viver bem numa situação em que a temperatura média da atmosfera terrestre subirá 2ºC).
Não é necessário ser um especialista na matéria para compreender que resolução e adaptação serão acessíveis sobretudo aos grupos sociais já favorecidos, poderosos, possuidores dos recursos financeiros colossais necessários para realizar as duas estratégias. Considere comparar o provável futuro dos habitantes dos Países Baixos e os de Bangladesh em 2050. E por essa razão, os dominantes continuam a impor uma “gestão” desigual e injusta da vida e da água, enquanto proclamam sua fé no “desenvolvimento sustentável”, dissociando a água de todas as considerações relacionadas aos direitos da e à vida, à justiça social, à boa convivência, à democracia participativa.
* * *
O que, afinal, é repensar a água?
Para nós, repensar a água é liberar o futuro da humanidade e da comunidade global da vida de desigualdades e injustiças atuais em face dos direitos; a vida; libertar a humanidade das guerras pela água tantas vezes antecipadas como inevitáveis pelos que dominam e seus intelectuais; libertar o futuro da vida da dominação predatória dos velhos e novos “senhores da água” já em ação em todo o mundo; libertar este mundo do roubo da vida representado pelo empobrecimento e a exclusão; libertar a força criativa da utopia da prisão em que o pragmatismo, o realismo e o cinismo dos atuais dominantes a encerraram.
“Repensar a água” é recomeçar a abrir novos horizontes, é construir outros futuros para a humanidade de todos os habitantes da Terra.
*Tradução: Inês Castilho.