“Eles tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes” (provérbio citado nos eventos do dia 14 de março, em luto à morte da vereadora carioca, Marielle Franco)
Por Theresa Williamson, no Rio On Watch
O tráfico de escravos no Brasil durou 60% mais tempo que o tráfico de escravos nos Estados Unidos e o país importou dez vezes mais africanos escravizados. Uma única cidade –o Rio de Janeiro–recebeu cinco vezes mais africanos escravizados do que os Estados Unidos inteiro, tornando-a o maior ponto de entrada de escravos na história. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão nas Américas, apenas algumas gerações atrás –a Lei Áurea completará 130 anos no próximo mês de maio.
A cidade do Rio, capital, vivenciava um crescimento rápido na época, e 40% de sua população era de escravos. Com o Brasil entre os países com as mais severas desigualdade de acesso à terra no mundo, não foi coincidência que comunidades informalmente estabelecidas, as favelas, emergiram como a solução para moradia há 120 anos. E não é nenhuma coincidência que no Rio elas continuam a ser a solução para moradia acessível hoje em dia, com 1.000 favelas abrigando 24% da população. Por um século, as principais políticas para essas comunidades têm sido negligência e repressão, não por causa de recursos limitados ou incapacidade técnica, mas sim através de uma política explícita de negligência e repressão. Cada uma tem sido usada para justificar a outra, em um ciclo que se tornou o padrão nacional de política pública direcionado aos pobres, especialmente negros e indígenas, com o hiper visível Rio servindo como marco zero.
Por que? Porque uma pequena elite em uma das nações mais desiguais do mundo, condicionada por gerações a se enxergar como fundamentalmente merecedores de privilégios, encontrou inúmeras maneiras de manter o controle sobre o poder. 80% do Congresso brasileiro é branco, masculino, com mais de 50 anos e, além disso, donos de enormes fortunas. Essa elite tem manipulado o sistema para manter a estrutura social escravocrata no lugar. “Favelas são boas de se ter por perto”, eu ouvi um palestrante e membro da prefeitura dizer, porque elas providenciavam “mão de obra barata por perto”. Mas, ele continuou, favelas próximas “não são mais convenientes”, em um momento de potencial especulação imobiliária e graças aos investimentos em transporte nas Olimpíadas e programas federais de habitação que possibilitaram bairros dormitórios distantes e mal servidos. Que conveniente: possibilite que a população se assente informalmente para fornecer mão de obra barata –para te servir– nas redondezas, mas não lhes forneça serviços públicos, com o argumento de que são ilegais.
É particularmente notável o triste sistema de ensino público no Brasil, que é a melhor maneira de manter o status quo. E então, quando os moradores das favelas fazem progressos resultantes de gerações –lentamente melhorando e consolidando suas comunidades, construindo um caldeirão cultural e colaborativo vibrante, apesar das probabilidades contra eles– inevitavelmente um político usa a reputação de que moradores da favela são “ilegais” e “violentos” como pretexto para os remover, forçando-os a se mudarem para as moradias públicas a duas horas de distância da anterior, fazendo-os retroceder décadas em desenvolvimento ao invés de investir em talentos e potenciais locais.
Foi isso que o Rio fez, explicitamente, durante as preparações pré-Olímpicas de 2010-2016, investindo US$20 bilhões na cidade, mas no fim das contas exacerbando a desigualdade, com nada a mostrar nas comunidades mais marginalizadas da cidade, exceto os 77.000 moradores removidos e milhares sofrendo mais repressão e controle armado violento (seja da polícia, traficantes, ou provavelmente uma sinistra e mútua reforçada combinação dos dois). Exceto por um dos poucos lados bons que adveio dos anos pré-Olímpicos: o fortalecimento da liderança comunitária.
Aí entra Marielle Franco. Assassinada provavelmente por policiais –ou “exterminada” como muitos estão dizendo agora, no dia 14 de março no Centro do Rio– a Vereadora Marielle representava uma afronta direta e poderosa ao sistema: alguém que cristalizou em uma única pessoa os grupos que deveriam “ficar em seu lugar” no Brasil.
Como o The Brazilian Report resume, no Brasil um jovem negro é morto a cada 21 minutos, uma mulher a cada 2 horas, uma pessoa LGBTQ diariamente, e um defensor dos direitos humanos a cada 5 dias. Marielle era tudo isso. Uma mulher negra e bisexual de 38 anos de uma favela no Complexo da Maré, uma mãe solteira jovem que se formou em sociologia e fez mestrado em administração pública, que coordenou a divisão de direitos humanos do governo do estado e há pouco mais de um ano venceu a eleição com o quinto maior voto da Câmara Municipal, 46.000 votos, Marielle era uma força da natureza (e ainda é, como estamos testemunhando). Ao invés de, no máximo, ter lideranças de favela sentadas nos bancos das sessões na Câmara Municipal, havia agora uma mulher negra favelada, com sua brilhante e cativante presença e sua incrível coragem atrás do pódio. E ela estava usando-a, confiantemente, diariamente e efetivamente, para chamar a atenção para o abuso policial, para confrontar violências de gênero e uma série de outros problemas enraizados.
Em seus 13 meses de mandato ela apresentou 13 projetos de lei. Uma voz considerada inconveniente o suficiente, para alguém, a ponto de justificar o ato de pôr fim à sua vida. Apenas duas semanas atrás ela havia sido selecionada para liderar a comissão especial da Câmara Municipal para monitorar a intervenção federal militar recentemente declarada no Rio. Marielle veementemente se opôs à intervenção, que coloca a segurança inteiramente nas mãos do exército, uma força até menos preparada para lidar com a realidade civil urbana que as polícias militar, civil e municipal, frequentemente associadas com corrupção e baseada em instituições seculares.
A decisão de Marielle de se candidatar se deu no Dia Internacional da Mulher de 2016, meio ano antes de sua eleição. Como uma defensora dos direitos humanos, ela estava em um painel sobre “Ser Mulher na Cidade”, apenas horas depois da casa de Maria da Penha ser demolida na icônica favela Vila Autódromo, uma pequena comunidade que lutou veementemente contra as remoções pré-Olímpicas, que teriam beneficiados vários magnatas imobiliários brasileiros. Pequena, porém avassaladora em sua fé de que ela e seus vizinhos iriam vencer, Maria da Penha se tornou um ícone internacional de resistência e cunhou a frase comumente associada à luta da comunidade–“Nem todos têm um preço”–se referindo à sua falta de vontade em considerar qualquer compensação pela sua casa, já que dinheiro não tinha nada a ver com seu valor. Maria da Penha estava programada para fazer parte do mesmo painel que Marielle, mas não compareceu devido à sua perda, embora ela tenha ganhado um prêmio naquele dia incrivelmente emocional. Foi nesse contexto que Marielle decidiu se candidatar.
As favelas do Rio são construídas pelos seus moradores desde que elas se formaram a gerações atrás. Liderança é fundamental para sua luta, com indivíduos assumindo papéis na mobilização de moradores para fazer melhorias, entrar em contato com autoridades, e além. Marielle veio da Maré, uma comunidade com uma sociedade civil muito engajada e diversa. Ela foi fruto de uma nova, excepcionalmente extraordinária emergência de lideranças na favela, centenas de novos organizadores intensamente conectados e colaborativos que estão amadurecendo e consolidando suas missões individuais e coletivas, e que só foram mais estimulados pelo seu assassinato. Eles estão, entre outras coisas, avidamente usando as redes sociais para quebrar o monopólio midiático brasileiro. Esses líderes estão convictos, assim como Marielle estava, de que “a favela não é o problema. É a solução”. A solução para moradia a preço acessível e para a marginalização, para a negligencia e repressão. As comunidades se baseiam na resiliência e na resistência, inclusive jovens líderes estão cada vez mais reivindicando com orgulho o próprio termo “favela”–tendo em vista sua origem no robusto, resiliente e espinhoso arbusto que leva este nome–dado que todas essas comunidades se desenvolveram pela auto-organização.
Um dos últimos tweets de Marielle dizia: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?” A mesma questão foi interrogada depois de sua morte na quarta-feira. Dois dias depois, a mesma pergunta foi colocada novamente, quando um menino de 1 ano e uma mulher de 58 anos foram mortos em um tiroteio envolvendo a polícia no Complexo do Alemão, uma comunidade repleta de inovação e liderança juvenil. (O papel da mídia em perpetuar mitos acerca do “problema da favela”, e portanto justificar políticas de negligencia e repressão, é outra questão que não teremos tempo para analisar aqui.)
Um coronel do exército se manifestou publicamente contra a “martirização” de Marielle, claramente alheio a quem foi essa mulher, quem e o que ela representou, a experiência e número de pessoas que se sentiram refletidos e representados por ela e a sua força da natureza para além da vida. A verdade é: algo mudou fundamentalmente. Marielle estava crescendo e infelizmente não há como saber o quão longe ela teria chegado viva. A experiência de sua morte por aqueles que aprenderam com, e se sentiram representados por ela não é nada menos que semelhante a experiência da perda de Martin Luther King Jr ou Malcolm X. (Na verdade ela morreu apenas sete meses antes de completar a idade de King em sua morte e 13 meses antes de completar a de Malcolm X). Mas agora, todos sabem seu nome. Agora há uma fome, para saber quem era essa mulher, o que ela representava, quais questões ela estava trabalhando que levaram seus assassinos a cometer tal ação.
Ela foi um ser humano iluminado e se tornou um símbolo e uma inspiração, afirmando a mulher negra da favela como uma fonte de admiração e coragem. Ela é agora uma parte de você, lendo isso, e você se tornou um pouco melhor pelo fato de sua existência. Milhões de sementes de discernimento e determinação estão sendo plantadas em cada pensamento, sentimento e compartilhamento de sua mensagem, seu rosto radiante e sua presença forte. É inevitável que o Brasil se transforme. A questão é, quantos mais vão precisar morrer?
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Theresa Williamson, urbanista, atua com favelas do Rio desde 2000. Ela é fundadora e diretora executiva da Comunidades Catalisadoras (ComCat), uma ONG de empoderamento, comunicação, centro de estudos e defensora de favelas fundada em 2000 em apoio às favelas do Rio. Ela também é editora-chefe do RioOnWatch, site bilíngue de notícias e relatos das favelas do Rio.