Transgênicos: expectativa do fim da rotulagem retoma debate

Senado está prestes a votar mudanças. Brasileiros temem a falta de segurança do consumo, mas preocupação com saúde individual pode ofuscar os grandes problemas

Por Raquel Torres, do Outra Saúde

O debate sobre alimentos transgênicos voltou a se aquecer no Brasil com a evolução da tramitação, no Senado, do projeto de lei que altera a rotulagem de alimentos. A proposta é de retirar a obrigatoriedade do selo que indica a presença de ingredientes transgênicos (aquele triângulo amarelo com a letra T) dos produtos que contenham menos de 1% deles — nos outros casos, eles continuariam aparecendo na lista de ingredientes, “em destaque, de forma legível”. E, para o símbolo existir, essa presença deverá ser comprovada por testes específicos.

O problema, segundo o site do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), é que “DNAs transgênicos não são detectáveis em alimentos processados e ultraprocessados. Ou seja, a rotulagem passa a depender de um teste que não identifica muitos dos produtos que levam transgênicos”. Como a maior parte dos produtos que levam o selo são processados, o Idec acredita que, na prática, a mudança vai levar ao fim da rotulagem. E isso feriria os direitos do consumidor, por não informá-lo sobre o que come. “Se a população está informada sobre os riscos e está disposta a consumir, tudo bem. Mas é preciso que saiba”, concorda o agrônomo Paulo Petersen, que é coordenador-executivo AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia.

O projeto de lei, que nasceu na Câmara e foi aprovado lá em 2015, está desde então no Senado (sob o número 35/2015) e já passou pela avaliação de quatro comissões. Ainda em 2015, a de Ciência e Tecnologia foi contra. Em setembro do ano passado, a de Agricultura e Reforma Agrária foi favorável; há um mês, a de Assuntos Sociais votou contra. E agora, no último dia 17, mais um parecer favorável foi aprovado na Comissão de Meio Ambiente. Vale observar que, nas duas comissões que tiveram voto a favor, o relator era o mesmo: o senador Cidinho Santos (PR/MT), que, por sinal, é vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. Agora, a matéria vai para a Comissão de Transparência, Fiscalização e Controle e, em seguida, para votação no plenário.

Sobre o medo

Sempre que se fala em transgênicos, os ânimos rapidamente se acirram. Em 2008, quando o texto começou a tramitar na Câmara, o Idec lançou uma campanha contrária que tem hoje mais de 50 mil assinaturas. Enquanto isso, nesta consulta feita pelo portal do Senado, até a data de publicação desta reportagem mais de 20 mil pessoas se haviam se posicionado contra a aprovação, e pouco menos de mil a favor.

Não dá pra saber a motivação exata de quem vota ou assina, mas, em geral, boa parte da argumentação contrária ao uso de sementes transgênicas — e também da defesa em relação a elas — se baseia em estudos que atestam ou não a segurança no consumo para animais e seres humanos.

Há dois anos, esta pesquisa encomendada pelo Conselho de Informações sobre Biotecnologias ao Ibope Conectas mostrou que um terço dos brasileiros têm medo de consumir alimentos transgênicos e quase metade considera que são submetidos a poucos testes (foram feitas entrevistas online com duas mil pessoas de todas as regiões e das classes A, B e C). A desconfiança é ligeiramente maior entre aqueles que sabem o que é transgenia.

O receio tem suas razões de ser. É que o próprio processo da transgenia é intuitivamente estranho. A tecnologia faz uma espécie de recorte e colagem com materiais genéticos, tornando possível que o DNA de um organismo receba genes específicos de  outro. Assim, plantas, animais, vírus ou bactérias podem entrar no jogo. A transgenia não é usada só na agricultura — ela está na produção de medicamentos, no desenvolvimento de animais com o propósito de fornecer cobaias para estudos científicos e na criação de armas biológicas, por exemplo. Há pouco tempo, gerou certa comoção o começo do uso de mosquitos transgênicos para o controle da dengue no Brasil.

E na produção de alimentos a polêmica nunca se esgota. Será que é mesmo possível prever todos os efeitos da introdução de material genético de um vírus ou bactéria em uma planta alimentícia?  “Em todo o mundo a natureza reage à introdução de transgênicos com vários efeitos que não estavam previstos em laboratório”, afirma Antonio Andrioli, professor do mestrado em Agroecologia da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).

Foram imprevisíveis as consequências do consumo de um suplemento alimentar com triptofano produzido por bactérias transgênicas há quase 30 anos. Em 1989, uma epidemia de síndrome de eosinofilia-mialgia matou 37 pessoas e deixou outras cinco mil doentes depois que elas usaram o suplemento nos Estados Unidos: embora testes tivessem sido feitos, ninguém conseguiu antever que essas bactérias começariam a produzir um aminoácido que provocava a doença.

De lá para cá, os protocolos foram se aperfeiçoando. Hoje, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomenda o uso de genes de substâncias que causam alergias conhecidas (como leite, ovos, crustáceos e trigo); os testes de alergia buscam analogias com sequências de aminoácidos que podem causar danos à saúde e são feitos exames específicos para buscar novas toxinas no transgênico.

A todo vapor

Com medo ou não, quase todo brasileiro tem alimentos transgênicos na rotina, e a agricultura baseada nessa tecnologia não para de avançar. O Brasil é o segundo maior produtor de transgênicos do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Aqui, já são mais de 40 milhões de hectares com esses cultivos — uma extensão que cresce a cada ano —, e cerca de 95% da soja, 85% do milho e 78% do algodão produzidos no país são transgênicos.

Mas se engana quem pensa que milho verde, fubá, cerveja com ‘cereais não maltados’ e óleo ou ‘carne’ de soja são os grandes responsáveis pelo consumo: a maior parte da soja e do milho produzidos vão para alimentação animal, segundo a Embrapa. E não há rotulagem sobre isso, como lembra Andrioli: “O DNA não consegue ser detectado no leite, nos ovos e na carne, embora se saiba que os animais foram alimentados com transgênicos. Isso é bem mais difícil de medir”.

Segundo o Isaaa (sigla em inglês para o  Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações de Agrobiotecnologia), em 1996 havia 1,7 milhões de hectares de transgênicos no mundo; em 2002, já eram 57,7 milhões e, em 2016, 185,1 milhões. Isso corresponde mais ou menos a 10% das lavouras de todo o planeta, que hoje somam 1,8 bilhões de hectares, conforme esta estimativa de um departamento do governo americano.

“É 100% seguro? Não, nada é 100% seguro”, reconhece Francisco Aragão, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. Ele ressalta que cada caso é um caso, e não se pode falar em segurança de todos os transgênicos: é preciso testar cada novo organismo produzido. “Alguns problemas podem aparecer só com o tempo. Isso não é uma característica só dos transgênicos, acontece com tudo, desde automóveis a vacinas. Mas os protocolos de segurança são constantemente aperfeiçoados”, assegura.

Sua fala é ancorada por várias pesquisas científicas. Há dois anos, manchetes em diversos jornais anunciaram o fim da questão com a publicação de um relatório da Academia Nacional de Ciências dos Estados  Unidos, que fez a maior revisão sistemática sobre transgênicos até o momento. Após a análise de 900 estudos produzidos nos últimos 30 anos, a conclusão é que não há provas de que os alimentos transgênicos já aprovados tenham impactos negativos na saúde. Mas isso não esgotou os debates.

Sob suspeita

Segundo Paulo Petersen, um dos principais problemas é o fato de que as pesquisas em geral são realizadas por períodos curtos, enquanto problemas graves de saúde comumente demoram a aparecer. “Para haver um mínimo de informação é preciso ter pesquisas de longo prazo, que nunca são feitas, porque as empresas não têm interesse”, diz. Uma questão ligada a essa é que, assim como ocorre com medicamentos, agrotóxicos e outros produtos, quem conduz os testes levados em conta na hora da aprovação são as próprias empresas fabricantes.

No Brasil, o organismo responsável pela aprovação é a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), mas a idoneidade da sua atuação está longe de ser um consenso. Ela foi criada em 1995 pela lei 8.974 para “prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento” ao governo federal em relação a organismos geneticamente modificados; outra função era estabelecer normas técnicas de segurança e pareceres sobre a proteção da saúde e do meio ambiente. Só que dez anos depois a chamada Lei de Bissegurança mudou o esquema: a comissão passou a decidir, de modo definitivo, sobre a liberação de transgênicos.

Antonio Andrioli, que fez parte da CTNBio por seis anos, acredita que essa não deveria ser sua função. “Ela deveria prestar só assessoria técnica. E tem vários problemas. É uma comissão que trata de biossegurança mas não tem maioria de especialistas na área de biossegurança, e sim em biotecnologia. Muitos dos pesquisadores da CTNBio já tiveram vínculos com empresas, pesquisam com base em recursos trazidos aos seus laboratórios por meio de bolsas, ganham prêmios financiados pelas empresas, enfim, há formas de auxílio e apoio há muito tempo já públicas”, critica. No ano passado, ao deixar seu mandato, ele escreveu uma carta aberta denunciando práticas da comissão.

Não foi o primeiro. Dez anos antes, a médica sanitarista e especialista em meio ambiente Lia Giraldo pediu seu desligamento da CTNBio depois que o milho Liberty Link, da multinacional Bayer, foi liberado. “Participar desta Comissão requereu um esforço muito grande de tolerância diante das situações bizarras por mim vivenciadas, como a rejeição da maioria em assinar o termo de conflitos de interesse; de sentir-se constrangida com a presença nas reuniões de membro do Ministério Público ou de representantes credenciados da sociedade civil; de não atender pedido de audiência pública para debater a liberação comercial de milho transgênico, tendo o movimento social de utilizar-se de recurso judicial para garantia desse direito básico; além de outros vícios nas votações de processos de interesse comercial”, escreveu ela na época.

O conflito de interesses é, para Paulo Petersen, uma das principais características do processo de aprovação. “A possibilidade de os próprios interessados economicamente no produto avaliado influenciarem a aprovação está equivocada. Toda vez que uma pesquisa aponta evidência de que há riscos elevados, ela é desconsiderada. Não é uma comissão científica, porque os interesses econômicos prevalecem sobre a análise rigorosa. Saímos do campo da ciência e entramos no campo da disputa comercial”, declara.

No ano passado, o Ministério Público Federal recomendou alterações no regimento da CTNBio para evitar conflitos de interesses  e aumentar a transparência. A assessoria de imprensa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (o Mctic, ao qual a Comissão se vincula) informou ao Outra Saúde, por e-mail, que em 2016 a CTNBio já havia começado a revisão de seu regimento interno. Disse também que as sugestões do MPF foram “submetidas à avaliação da Consultoria Jurídica do Mctic” e a “votação pela Comissão”, e que “a proposta de alteração de Regimento Interno ainda está sob nova avaliação jurídica e quando concluída será aprovada pelo plenário da Comissão e publicada no Diário Oficial da União”, mas não informou quais serão as mudanças.

O caso mais famoso

A pesquisa sobre a insegurança dos transgênicos que gerou maior repercussão foi divulgada em 2012 por um grupo de pesquisadores franceses liderados por Gilles-Éric Séralini. Eles alimentaram ratos com o milho nk603, que é largamente cultivado e consumido, e apareceram tumores imensos, além de outros problemas de saúde. O artigo foi publicado em uma renomada revista científica, a Food and Chemical Toxicology, e as imagens dos bichinhos que desenvolveram câncer são impressionantes.

Mas reclamações sobre falhas metodológicas levaram o editor da revista a rever o caso e, cerca de um ano depois, publicar uma retratação — na prática, os resultados deixaram de existir cientificamente. É que, embora não houvesse fraude e os dados não estivessem incorretos, foram encontrados problemas que poderiam mascarar a análise: foram usados poucos animais (apenas dez em cada grupo), eles eram de uma linhagem que é naturalmente mais propensa a ter câncer e a metodologia de análise dos dados foi considerada falha.

O embate não parou por aí. Muitas críticas foram feitas à revista após a retratação, sobretudo porque ela ocorreu depois que um ex-funcionário da Monsanto foi contratado pela revista como editor especial. Em 2014, o estudo foi republicado em outra revista, a Environmental Sciences Europe. Na época, seu editor disse à Nature que o objetivo era garantir o acesso às informações, mas que o artigo não havia passado por revisão de pares, pois a Food and Chemical Toxicology já havia verificado a ausência de fraude.

“O milho nk603, usado na pesquisa, ocupa hoje mais da metade da área cultivada nos Estados Unidos e, no Brasil, muito mais da metade. E já está sendo cultivado nos Estados Unidos há 15 anos. Tem animais que se alimentaram com esse milho a vida inteira, e não há um único alerta feito pelo CDC [Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA],  ou por veterinários e academias veterinárias associando qualquer problema desse milho a problemas de saúde dos animais. Se isso fosse verdade, seria facilmente detectável”, acredita Aragão.

Mas é fato que, enquanto algumas doenças levam décadas para se manifestar, o tempo das pesquisas nunca é muito longo. “Não dá para pensar em fazer ensaios por 20, 50 anos. O tempo das pesquisas varia para cada caso, mas confere robustez e segurança”, defende o pesquisador da Embrapa. E vai além: “Há algum dado confiável que mostra problemas causados por plantas transgênicas na saúde? Até o momento, não. E por plantas não transgênicas? Sim, vários”.

Ele diz que um bom exemplo é o de uma variedade de arroz, resistente a algumas doenças e mais produtiva, que foi lançada no Brasil nos anos 1980. Mas, quando começaram a processar os grãos industrialmente, trabalhadores tiveram sintomas de asma, como resultado de uma alergia a uma proteína daquele arroz. “Ela vinha de um arroz silvestre usado nos cruzamentos que levaram àquela variedade nova. Muitas variedades silvestres têm toxinas que vão sendo eliminadas ao longo do tempo durante os cruzamentos, porque o homem vai selecionando. Mas ninguém precisa analisar a segurança disso no Brasil. Uma variedade obtida por melhoramento genético, naturalmente, é considerada segura a priori”, compara. O melhoramento genético é diferente da transgenia: trata-se da combinação de duas plantas por meio de cruzamento sexual, feita por agricultores há milhares de anos.

Na avaliação do pesquisador, as evidências de que os transgênicos disponíveis no mercado são seguros nada têm de incertas. “Na ciência, é preciso olhar o conjunto dos dados. Para quase tudo, desde batons a celulares, há artigos científicos indicando segurança e  insegurança. No caso da transgenia, há centenas de artigos de um lado, e uma dezena do outro. A OMS afirma que os produtos aprovados são seguros, academias de ciências do mundo inteiro afirmam que são seguros, enquanto poucos artigos dizem que não são. Em quem podemos confiar?”, provoca.

O buraco é mais embaixo

Embora as evidências sempre possam ser contestadas levando em conta conflitos de interesses, não se pode negar que quase todas as pesquisas disponíveis apontam que, ao menos nos casos já aprovados, a transgenia em si não traz danos à saúde. Ainda assim, isso não significa que os riscos aumentados para determinadas doenças estejam afastados. E isso tem a ver não com a técnica propriamente, mas com o uso de agrotóxicos. Estes, sim, são comprovadamente danosos: ao meio ambiente, à saúde de quem consome e aos agricultores.

O cultivo de plantas transgênicas até promete a diminuição do uso deles, o que faz algum sentido. Por exemplo, há plantas que resistem a determinado tipo de inseto ou doença, o que evita o uso de veneno. É o caso da maior parte do milho transgênico cultivado no Brasil, que produz uma toxina específica para matar um tipo de lagarta.

“Para decidir usar ou não essa semente, é preciso comparar o custo-benefício. Se há histórico de perdas por essa lagarta, qual é a outra opção? Aplicar inseticida. Todos os inseticidas, mesmo os aceitos pela agricultura orgânica, matam outros animais além do alvo. No caso da semente transgênica, o protocolo de biossegurança compara os efeitos com organismos que não são o alvo e, se matar outros insetos ou lagartas, a semente não passa. De maneira que é uma toxina bem específica. E os receptores daquela proteína não estão presentes em seres humanos, então não há riscos — mesmo assim esse risco é testado”, defende Aragão, ponderando: “É seguro para absolutamente todos os insetos? Não sei, não é possível testar com todos os insetos que existem. Mas se testa com vários”.

Apesar disso, na prática, o aumento do plantio de transgênicos cresce junto com o uso de agrotóxicos, embora não seja possível assegurar uma relação de causa e efeito. Este artigo, escrito por um grupo  coordenado pelo pesquisador da Embrapa Vicente de Almeida, mostra alguns números: o uso de agrotóxicos no Brasil aumentou 1,6 vezes entre os anos 2000 e 2012 e, no caso da soja, triplicou.

O que explica isso? Em parte, o fato de que a maioria das plantas transgênicas são desenvolvidas com o objetivo de resistir ao uso de herbicidas. Em termos mais simples: o produtor pode pulverizar as plantas com um agrotóxico que mata todo o ‘mato’ ao redor das plantas transgênicas, mas elas sobrevivem. Os dados do Isaaa mostram que hoje, dos 17 eventos de transgenia aprovados para soja no Brasil, 14 conferem a ela a resistência a herbicidas. No caso do algodão, são 12 entre os 15aprovados. E, no milho, são 34 de 44 (evento é o processo em que o gene de fora transforma a célula desejada).

Como lembra Aragão, essa resistência não é exclusividade de plantas transgênicas. “Há plantas não transgênicas resistentes. Como alguns tipos de arroz, desenvolvidos por mutações induzidas, que não são transgênicos”, diz. Já Andriolli ressalta o papel das grandes corporações nessa teia: “As empresas que fornecem sementes e agrotóxicos são quase sempre as mesmas. O glifosato é o princípio ativo do herbicida mais vendido no mundo, o Roundup, da Monsanto. Quase todo o algodão, a soja e o milho são resistentes a ele. E a Monsanto também é a maior produtora de sementes transgênicas”.

Existe ainda o fato de que pragas podem se tornar resistentes à toxina da planta transgênica e, nesse caso, é preciso aplicar pesticidas mesmo assim. Segundo Aragão, para evitar que isso aconteça, hoje se recomenda cultivar uma área de milho não transgênico perto do transgênico. Assim, insetos podem comer as plantas tradicionais à vontade, sem insistirem nas transgênicas, o que diminui as chances de a população dos resistentes à toxina aumentar muito. “Mas isso pode acontecer, e voltar à situação anterior”, reconhece.

Também já há relatos de ervas consideradas daninhas que desenvolvem a mesma resistência da planta transgênica ao herbicida, fazendo com que os agricultores passem a usar outros agrotóxicos no seu controle. Recentemente houve problemas em grandes plantações de soja transgênica no Brasil, onde cresce milho transgênico “sem querer” no meio da plantação, e, como ele também é resistente ao herbicida, não morre durante as pulverizações (o que de fato só é um problema em monocultivos, onde apenas a soja interessa).

Aragão lembra que isso não deve aumentar os níveis de agrotóxico nas plantas a ponto de que elas se tornem inseguras para o consumo. “Há normas que definem o resíduo aceitável de agrotóxicos em grãos, e de qualquer maneira a produção precisa ficar dentro desses limites”, diz.

Mas vale lembrar que esses limites não são imutáveis. O Dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde mostra uma possível razão para a relação entre a introdução no Brasil da semente de soja Roundup Ready, resistente ao herbicida Roundup, e o aumento do seu consumo: “A liberação do sistema “Roundup Ready” no Brasil fez com que fosse necessário que a Anvisa aumentasse em 50 vezes o nível de resíduo de glifosato permitido no grão colhido”, escrevem os autores. Andrioli observa que “esses dados precisam ser analisados de forma associada”.

Saúde pra valer

No Brasil, embora quase sempre a soja, o milho e o algodão (cujas sementes são produzidas por empresas como Monsanto, DuPont e Syngenta) sejam resistentes a agrotóxicos, esse não é o caso do eucalipto, da cana de açúcar e do feijão, que já foram aprovados pela CTNBio. O eucalipto, produzido pela FuturaGene Group, tem a característica de crescer mais rápido, enquanto a cana (do Centro de Tecnologia Canavieira) e o feijão (da Embrapa) são resistentes a determinadas doenças.

É o caso de se perguntar: e se, diante de uma hipotética pressão mercadológica, as grandes empresas de semente um dia se esforçassem para produzir plantas resistentes a doenças e que, de fato, diminuíssem o uso de agrotóxicos? Não seria uma boa notícia?

Para a saúde individual, é bem possível. Mas, em termos mais amplos, dificilmente. As entrevistas realizadas para esta reportagem mostram que um dos maiores problemas do uso dessas sementes é na verdade a perda de soberania dos países em relação à sua alimentação, que vem junto com o domínio das sementes por parte das corporações e o enfraquecimento dos agricultores.

“Produtores começam a comprar essas sementes por várias razões. Uma delas é o fato de que muitas políticas públicas de crédito rural são associadas ao conjunto do que chamamos de pacote tecnológico: quando o pequeno agricultor quer conseguir crédito em vários programas, precisa apresentar uma série de notas fiscais e comprovantes, receituários, análises agronômicas de situação… A concessão de crédito está atrelada à compra de insumos, sementes, agrotóxicos e toda a assessoria técnica tradicional, voltada para a agricultura convencional e que vai receitar o pacote do veneno”, diz Naiara Bittencourt, advogada da organização Terra de Direitos.

E Petersen completa: “Tem também a propaganda das sementes novas, que as mostram como se fossem render uma alta produção, o que não é verdade [ainda não existe nenhuma semente geneticamente modificada para ter maior produtividade]. E existe ainda um outro problema: é cada vez mais difícil encontrar variedades não transgênicas no mercado. No caso da soja isso é típico, mas também acontece com o milho em muitos  lugares”. De acordo com ele, muitos agricultores percebem os efeitos negativos do plantio de transgênicos — a produção que não necessariamente aumenta, o custo da semente que é mais alto, a ‘praga’ que se torna tolerante — e tentam voltar a usar outras variedades, mas não as encontram.

Ele nota que um dos efeitos mais graves do uso dessas sementes é “a contaminação, que leva à perda da agrobiodivesidade”. E explica com o caso do milho, que é uma planta de polinização aberta: diferentes variedades de milho, mesmo não transgênicas, ‘contaminam’ umas às outras porque o pólen dessa planta é capaz de viajar centenas de metros pela ação do vento ou de insetos, e o cruzamento gera sementes com características genéticas desses vizinhos distantes. Quando um dos vizinhos é transgênico, um produtor orgânico de milho pode acabar produzindo sementes transgênicas, mesmo sem querer.

E, quando isso acontece, o agricultor não só perde a semente original como a que vem do cruzamento. Isso porque, como são patenteadas, sementes transgênicas exigem o pagamento de royalties nas safras subsequentes, e agricultores podem ser processados caso não paguem. No caso de produtores orgânicos, o prejuízo é ainda maior: “Para garantir a certificação orgânica, a produção não pode ser transgênica. Se alguma análise mostrar a presença de transgênicos, o produtor pode perder seu certificado e isso tem grande impacto em toda a sua cadeia produtiva”, comenta Bittencourt. Já para o patrimônio genético, a perda é incalculável. “Variedades que são resultado de anos de melhoramento genético vão sendo perdidas por essa poluição genética”, assinala Petersen.

A canola é ainda mais problemática que o milho nesse sentido, e sua contaminação já rendeu vários problemas no Canadá (no Brasil, a canola transgênica não é cultivada). O mais famoso é o caso judicial entre a Monsanto e o agricultor Percy Schmeiser, em cuja fazenda foi encontrada canola transgênica resistente ao Roundup. Schmeiser afirmava que sua plantação havia sido contaminada, já que não havia registros de que ele jamais tivesse comprado tais sementes, mas a Monsanto ganhou a causa alegando que ele havia guardado sementes resistentes para replantio.

“No Brasil, hoje, os pequenos produtores estão protegidos até certo ponto. A nossa Lei de Cultivares [que protege os direitos da propriedade intelectual sobre as sementes desenvolvidas em laboratório] tem uma exceção para eles, que podem vender alimentos feitos a partir de sementes transgênicas sem pagar royalties. Mas, se comercializarem a semente em si, podem ser responsabilizados. E, de todo modo, é uma lei que pode ser alterada a qualquer momento. Em um cenário de retrocessos como o que vivemos hoje, essa é sempre uma ameaça”, alerta a advogada.

Grandes negócios

Um caso bem conhecido de problemas com o patrimônio genético devido à entrada de milho transgênico é o do México, berço da domesticação desse cereal. O milho tem uma importância histórica, cultural e nutricional gigante por lá, e existe em todos os tamanhos e cores. Para proteger esse bem, em 1998 o país proibiu o cultivo de versões transgênicas. Mesmo assim, dois anos depois, foi encontrado material genético transgênico em variedades nativas. A proibição se extinguiu em 2005, e há várias organizações de proteção ao milho tradicional no país.

As normas brasileiras impõem uma distância mínima — 100 metros — que as plantações de milho transgênico devem guardar em relação a outras, mas, segundo Antonio Andrioli, ela é totalmente insuficiente. “Há variáveis incontroláveis e o pólen viaja por distâncias muito maiores do que essa”, observa. Já Naiara Bittencourt acrescenta que o ônus desse controle acaba recaindo sobre o agricultor do plantio não transgênico. “Deveria haver fiscalização, mas, na prática, é o agricultor que deseja proteger seu plantio quem precisa fazer barreiras verdes altas”.

O resultado disso aponta ela, é que a cadeia produtiva de sementes fica concentrada em grandes corporações e, que, hoje, está sob o domínio de três grandes conglomerados: Bayer-Monsanto (que estão em processo de fusão), DowDuPont (fusão entre DuPont e Dow Chemical) e Syngenta-ChemChina.

Já chegaram a ser criadas sementes chamadas ‘suicidas’ ou ‘terminator’, que dão origem a sementes estéreis, tornando efetivamente impossível a reprodução via replantio. “Há uma moratória da ONU, do ano 2000, que impede sua utilização. Mas já houve um projeto de lei no Congresso para que se liberasse a comercialização no Brasil”, lembra Naiara. “Ainda não sabemos o impacto que essas sementes poderiam ter. Se, por exemplo, o cruzamento entre um milho terminator e uma semente tradicional poderia também gerar descendentes inférteis. O risco da erosão do patrimônio genético seria grande”, completa ela.

Quanto a ter tanto poder concentrado nas mãos de poucas empresas, Francisco Aragão concorda que isso “não é desejável” e ajuda a diminuir a diversidade de cultivos no mundo. “Essas empresas estão interessadas em commodities, por isso o foco em soja, milho, algodão. Elas investem em plantas que podem se adaptar ao mundo inteiro, e a estudar a resistência a doenças que estão também presentes no mundo inteiro. Mas problemas e culturas locais ficam de fora. As companhias não estão interessadas em melhorar culturas como feijão e banana, só no que vai ter mercado global”.

Porém, ele ressalta que o problema não é da técnica da transgenia em si. “O ideal seria que houvesse mais sementes geradas em ambientes públicos”, defende, apontando uma questão inusitada. De acordo com ele, embora os testes de biossegurança sejam importantes, o seu alto custo acaba restringindo às grandes empresas a possibilidade de aprovação de tecnologias. “Eles acabam criando uma reserva de mercado, porque essas empresas têm dezenas de milhões de dólares para investir nos testes, mas universidades e empresas públicas não. Hoje há centenas de tecnologias desenvolvidas no setor público que nunca chegarão ao mercado”, lamenta.

Para Paulo Petersen, esse debate não deveria estar de fora das decisões sobre a aprovação ou não de novas sementes: “A CTNBio não avalia essa lógica de agricultura que tem gerado uma grande concentração de poder em um número pequeno de empresas, o fato de esse poder fazer com que elas dominem o desenvolvimento tecnológico e monopolizem o mercado. A comissão avalia apenas riscos ao meio ambiente e à saúde. Só que o debate dos transgênicos não é sobre biossegurança, mas também sobre a soberania de países e povos sobre seu patrimônio tecnológico”.

Organotransgênicas

Alguns parágrafos acima, esta reportagem propôs um exercício de imaginação sobre um cenário em que fossem desenvolvidas plantas transgênicas totalmente ‘do bem’, não relacionadas a agrotóxicos. Se você achou que era pura fantasia, errou feio. Nesta entrevista ao Globo, a geneticista Pamela Ronald (que é casada com um agricultor orgânico) defende exatamente essa ideia.

E tem mais gente fazendo o mesmo raciocínio: “O futuro pertence às culturas ‘organotransgênicas’, que serão cultivadas com agricultura de precisão, respeitando a natureza e sua biodiversidade”, declarou o botânico suíço Klaus Ammann, professor da Universidade de Delft, no prefácio do livro Genetic Glass Ceiling, escrito pelo israelense Jonathan Gressel.

Para Paulo Petersen, um futuro assim não seria surpreendente. “O que define o que é ou não orgânico é uma instituição humana que assim o diz. A definição está na lei. Se a lei for alterada para um conceito de que orgânico significa apenas a ausência de agrotóxicos e fertilizantes químicos, mesmo que com uso de sementes transgênicas, isso pode ser feito. É uma disputa no legislativo, que nada tem a ver com qualidade ou segurança alimentar. Tem a ver com pressão econômica. E há uma pressão enorme da indústria para fazer com que o conceito de orgânico incorpore, sim, os transgênicos”, diz ele.

Nesse sentido, Petersen também critica o próprio debate sobre alimentos orgânicos: “Ao longo dos últimos 30 anos, essa é uma discussão que tem avançado condicionada pelos interesses comerciais. Existe um nicho bem demarcado que valoriza e diferencia o produto orgânico. Hoje, há uma parcela de produtores produzindo para uma parcela de consumidores, enquanto a maior parte da população come alimentos de má qualidade”.

Ele deixa o alerta de que, se quisermos falar em segurança alimentar, nutricional e saúde coletiva, é preciso mudar os padrões de consumo e produção. “E definir que orgânicos têm que ser baseados em princípios agroecológicos”, conclui.

A solução da organotransgenia é, também para Naiara Bittencourt, totalmente falaciosa. “Não dá para pensarmos o alimento isolado da cadeia produtiva, da relação que homens e mulheres têm com a terra, do cuidado, da relação de produção. Não dá para aceitar como solução a transgenia, com suas relações de propriedade intelectual e com o domínio das grandes empresas, com relações sociais destruídas a partir desse domínio”, salienta.

A verdadeira saída, de acordo com eles, é pela via da agroecologia, que trabalha com recursos adaptados aos ecossistemas e, portanto, está menos sujeita à necessidade de grandes intervenções tecnológicas (como o custoso desenvolvimento de novas plantas porque as anteriores encontraram insetos resistentes, por exemplo). “É importante dizer que, no início do mês, aconteceu o 2o Simpósio de Agroecologia da FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, na sigla em inglês], que discutiu como a agroecologia pode contribuir para alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável. Nesse simpósio, os países refletiram o quanto sistemas agroalimentares, a distribuição e o consumo de alimentos são responsáveis por grandes problemas. E como mudar os sistemas é fundamental para alcançar vários dos objetivos. Isso significa interferir na questão dos transgênicos”, conta Petersen.

E o T, faz falta?

Os dados da maior parte das pesquisas disponíveis atualmente aponta para o fato de que a tecnologia da transgenia não é a grande vilã, nem para a saúde stricto sensu,nem para a soberania alimentar. O problema está no sistema de produção em que ela se encaixa — grande escala, monocultivo, uso de fertilizante químicos e agrotóxicos — e  na concentração de tamanho poder nas mãos de grandes corporações. E esta parece ser uma barreira intransponível à transgenia, já que os custos para o desenvolvimento e registro são altos.

É preciso também tornar a dizer que a maioria esmagadora dos transgênicos é usada para consumo animal, então ela não aparece nas prateleiras empacotada e rotulada. Isso não tem realmente aparecido nos debates sobre o consumo de transgênicos: se o país inteiro deixasse de consumir os produtos hoje marcados pelo triângulo amarelo, isso praticamente não afetaria em nada as questões ambientais, por exemplo.

Embora concorde com o Idec no sentido de que consumidores têm direito à informação, Francisco Aragão considera que a rotulagem, da maneira como é feita, não contribui exatamente para isso, pois  não remete à informação, e sim à segurança. “Deveria haver um alerta sobre qual agrotóxico foi usado no cultivo daquele produto, se foi na concentração certa, se o período de carência [tempo necessário entre a aplicação e a colheita] foi seguido. Em termos de segurança, isso sim seria importante”, avalia.

Já Naiara Bittencourt acredita que a rotulagem hoje não chega a ser suficiente como fonte de informação, mas é necessária. “As pessoas ainda nem sabem direito o que aquela figura significa, seria preciso um trabalho grande de informação. E o símbolo é muito pequeno também. Mas é melhor ter do que não ter. As pessoas precisam poder saber sobre a composição do alimento que compram”, defende.

De fato, uma pesquisa feita em 2014 pela Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos e pelo instituto IPSOS mostrou que quase 70% dos entrevistados não sabia o que queria dizer o símbolo, e 14% o confundiam com um sinal de trânsito. “Muita gente confunde transgênico com gordura trans”, completa Andriolli, “mas isso não quer dizer que não se precise garantir a rotulagem”.

Mas uma questão importante está na responsabilização individual sobre esse tipo de escolha que, às vezes, não chega a ser uma escolha, por não haver outra opção. “É de fato algo que merece ser tratado como assunto público, sem responsabilizar o indivíduo, inclusive porque, como sabemos, o nível de desinformação é grande. Porém, o rótulo é um mecanismo para que possa ser feita uma campanha de conscientização. É um instrumento para fazer com que a questão permaneça sendo discutida”, acredita Petersen.

A decisão do Senado, que se arrasta desde 2015, agora pode sair em breve. Mas, qualquer que seja ela, não parece haver grandes mudanças à vista.

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