“Críticos” desinformados e as APACs como dominação capitalista e religiosa

Por Samuel Silva Borges, no Justificando

Digital Influencers da esquerda como Jout Jout[1] e Duvivier[2], nas últimas semanas, expressaram em seus canais apoio ao modelo prisional das APACs (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) como um que “funciona”, uma alternativa face ao encarceramento degradante que o Estado impõe à maioria dos sujeitos sob sua custódia, cuja quase metade não passou por julgamento. Por mais que seja inegável que as APACs constituem uma alternativa “menos pior” à prisão estatal, é no mínimo irresponsável que formadores de opinião se limitem a uma análise superficial e relegitimadora do seletivo sistema penal brasileiro. Demonstram a ingenuidade de quem acredita que tal sistema está “fracassando”, ao invés de entender sua “eficácia invertida” (ANDRADE, 2012) na reprodução tanto do fenômeno criminal como das desigualdades e dominações sociais no Brasil.

Uma crítica de esquerda passa sim por proposições de políticas criminais concretas, que apresentarei no texto seguinte, mas sobretudo pela responsabilidade social de não legitimar o principal sistema de violação de direitos humanos no país pelo surrado mito ideológico da ressocialização prisional. A ânsia por alternativas não pode sobrepor o cuidado em não reproduzir desserviços.

Longe de ser uma “utopia”, as APACs funcionam a partir de uma dominação religiosa e capitalista rígida, uma instituição total altamente disciplinar e repressiva, visando que o sujeito internalize a própria coerção (seja seu próprio carcereiro) e produzindo assim sujeitos úteis, dóceis e submissos à disciplina do trabalho, do Estado e de Deus.

As taxas de reincidência menores apresentadas como atestado de eficiência não podem ser lidas meramente como fruto dessa eficiência repressiva mas em grande parte por sua própria seletividade quanto aos presos que entram no sistema. Um filtro que faz que aqueles menos problemáticos (que os já cooptados por facções, por exemplo) e mais obedientes às tecnologias disciplinares da APACs cheguem à associação. Apenas se ela não fizesse distinção entre os que passarão por sua metodologia punitiva, como é o caso das prisões estatais, se poderia fazer uma comparação adequada da reincidência ligada a ambas.

Além disso, os princípios que guiam as APACs são tão velhos como a prisão. Em 1777, John Howard denunciava a deplorável condição das prisões na Europa e Inglaterra e propunha uma forma humanizada de correção dos presos. De inspiração religiosa calvinista, considerava essencial separar e isolar os presos dentre eles mesmos para que tivessem tempo para refletir sobre seus crimes (pecados) e expiá-los pelo trabalho e estudo, uma terapia econômica e espiritual. Tais princípios permanecem nas APACs, sobretudo na intersecção do capitalismo com o protestantismo e catolicismo. O problema não está, contudo, no cristianismo em si mesmo, como se percebe pelas diferentes posturas das APACs e da Pastoral Carcerária, ambas ligadas à Igreja Católica, mas contrastando ideologia punitiva, de um lado, e militância abolicionista penal, do outro. O assessor da Pastoral, Paulo César Malvezzi, não esconde as críticas ao modelo apaqueano[3].

Se as prisões estatais brasileiras possuem como tecnologia disciplinar principal a tortura física e a humilhação que mortifica o indivíduo, as APACs utilizam um tipo de violência psicológica, pautada mais na produção de consentimento do que da coerção explícita. Seguindo o paradigma da ressocialização, a ideia é que o criminoso é um doente social que precisa ser tratado e transformado. A cura, em tese, seria a aceitação de Jesus. Na prática, porém, o que propõe é a submissão à vida regrada imposta pelos diretores das APACs que em nenhum momento denuncia a seletividade do sistema penal e sua opressão de classe e raça ou mesmo a vida social marcada pela desigualdade, exclusão e exploração no Brasil.

Enquanto Jesus era crítico do sistema e vítima do poder punitivo, as APACs aparentemente adoram o sistema e o poder punitivo mesclado ao religioso, que produziu um cristianismo do “establishment”. Um cristianismo policial e prisional.

Poderia-se argumentar que o sistema é de fato consensual, sendo que os internos livres para optar por sair deles. Essa afirmação é cínica. Entre um sistema prisional superlotado, podre e hiperviolento e um em que você é obrigado a performar uma religiosidade constante para agradar os diretores, enquanto ainda tem a oportunidade de trabalhar e estudar (o que reflete em remissão da pena), é óbvio que um indivíduo racional optará pela segunda forma punitiva. Uma escolha coagida, porém, não é uma escolha livre, e o purgatório não é bom só por ser preferível ao inferno.

As APACs, porém, cumprem uma função ideológica essencial de legitimação do sistema penal. Aparece como a prisão boazinha, que funciona, que realmente adapta o indivíduo ao meio social (leia-se, submeter-se às relações de dominação social) em contraste com as prisões oficiais. Dessa forma, não é que a punição e a prisão sejam o problema, mas sim que a gestão não é tão eficiente como pode ser “e é’’ em uma APAC. É esse o conto da carochinha que Jout Jout e Duviver compraram. Meu espaço é curto, mas a partir da criminologia crítica vou demonstrar como isso é pura ideologia.

Primeiro, o problema está em querer analisar o sistema penal pela execução penal ou as funções da pena, que constituem a última etapa da criminalização (terciária) sem visualizar as distorções existentes na criminalização primária (legislação criminal) e secundária (operatividade concreta das polícias e judiciário). A principal distorção é a seletividade penal, que não é acidente que pode ser consertado por uma eficiente e bem intencionada gestão, mas é estruturante dos sistemas de justiça em países capitalistas. É por causa dela que em um país com mais de mil condutas criminalizadas apenas três, tráfico, roubo e furto, acarretam na prisão de 68% dos apenados e que 90% de todos apenados não chegaram a concluir o Ensino Médio, constituindo a parcela mais pauperizada, subalterna e excluída da população brasileira (DEPEN-MJ, 2017).

Esse perfil do sujeito selecionado ao cárcere revela que, em uma sociedade hiperdesigual, a prisão não serve para responsabilizar criminosos por condutas socialmente danosas (se fosse assim, estaria cheia de burgueses como os da Samarco, Dórias e Temers da vida) e sim para reprimir e controlar a classe trabalhadora incluída (disciplinando-as para ficar na linha) e excluída (“excesso” industrial de reserva).

Mas a seletividade não se refere apenas aos sujeitos criminalizados, mas aos crimes de fato reprimidos. A pesquisa criminológica da cifra oculta já comprovou que a ideia de que a punição serve para punir e prevenir crimes é fantasiosa porque demonstra que o sistema penal só atua em uma parcela ínfima, verdadeiramente ridícula de crimes ocorridos. Primeiro, porque a subnotificação criminal é estrondosa. Segundo, porque as etapas do processo da criminalização atuam como um funil seletivo (em que os sujeitos privilegiados vão sendo imunizados ou, no máximo, recebendo penas brandas) em que apenas uma quantidade irrisória de (supostos) criminosos recebem uma condenação. Uma revisão bibliográfica da Julita Lemgruber (2001, pp. 4-6) demonstrou que no Rio de Janeiro 80% dos roubos sequer são notificados às autoridades; nos EUA, apenas 3% de crimes violentos como roubo, estupro, lesões corporais graves e homicídios resultaram em prisão; na Inglaterra, cada 100 crimes, 45 são denunciados, 24 registrados e 5 chegam a identificar um culpado. Apenas 0,3 chega a receber pena de prisão.

A conclusão disso não é que devemos hipertrofiar o poder punitivo para tentar alcançar a todos, o que seria uma distopia punitiva com dezenas de milhões de pessoas presas, mas sim que o sistema penal simplesmente não consegue cumprir o que promete, sendo que os presos são apenas um símbolo punitivo, bodes expiatórios da nossa sociedade opressora e excludente. Se o ponto fosse de fato reduzir o crime, nossa política criminal seria majoritamente preventiva, elevando o bem-estar social geral por políticas sociais redistributivas que gerassem igualdade de poder, e não predominantemente punitiva, num retrato do sadismo que goza com o sofrimento alheio.

As APACs, convenientemente, ignoram essa realidade com uma bela cara de paisagem e tentam reproduzir que o problema não está nas desigualdades estruturais da sociedade nem na seletividade do sistema penal e sua criminalização racista da pobreza. O problema seria a falta de Jesus© e de vontade de gestão, relegitimando o sistema institucional mais enganoso, perverso e violento existente no país. O juiz Luís Carlos Valois, cuja dissertação de mestrado demonstra como o paradigma da ressocialização é mais usado como pretexto para punir do que para libertar, aponta seu caráter ideológico:

“Quanto à prevenção, fantasiosamente, serviria para fazer o bem, um bem para a sociedade, evitando-se novos crimes, e outro para o criminoso que será recuperado. Portanto, não há nada de ruim na pena e podemos continuar aplicando o direito penal e sua principal função com a consciência tranquila de estarmos fazendo ciência, laborando para o bem da humanidade” (VALOIS, 2012, p. 89).

Com isso em mente, se impede a ilusão do “isomorfismo reformista” denunciado por Foucault, que é a instrumentalização do fracasso concreto ressocializador para a revitalização do próprio projeto ressocializador, na expectativa da “boa penitenciária que nos aguarda, num futuro eternamente adiado” (BATISTA, 2002, p. 5).

Por fim, me parece que a opção de indivíduos de esquerda às APACs como alternativa menos pior é parte da tragédia maior que adota opções liberais, de centro à direita, porque o país como um todo está polarizado à direita e extrema-direita. Um país em que os liberais flertam com regime militar acaba forçando que a esquerda que, no mínimo, deveria ser social-democrata, defenda mais princípios burgueses do que socialistas. As APACs exemplificam isso ao simbolizarem a rígida defesa da ideologia capitalista e cristã de submissão à lei burguesa e religiosa (pressupondo acriticamente a justiça humana e divina), cuja violação deve ser docilmente recebida pela punição. Se houvesse coerência discursiva, esse tipo de eficiência ideológica punitiva das APACs seria propagada com entusiasmo por Felicianos, Malafaias, Bolsonaros e afins. Não por quem é crítico do nosso sistema político-econômico e suas desigualdades e dominações sociais. No mais, Jout Jout e Duvivier não só passam vergonha defendendo essas coisas, como promovem um grande desserviço à sociedade que conta com eles como espécies de formadores de opinião. É preciso melhorar.

Samuel Silva Borges é Cientista Político e Mestrando em Sociologia pela Universidade de Brasília. Pesquisa a disputa de discursos criminológicos e de políticas criminais por hegemonia. Coordena a página e canal Cifra Oculta, sobre a seletividade e eficácia invertida do sistema penal, que instrumentaliza a demanda social por segurança e justiça para promover um controle social injusto e funcional às dominações sociais de classe, raça, gênero etc. Procura dessa forma promover a crítica da ideologia punitiva disseminada em diversas mídias como a televisiva e das redes sociais e comunicar o conhecimento da criminologia crítica e radical para além dos muros universitários. Vídeos disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=8PVLIHa9RWo


[1] O vídeo da Jout Jout “Recuperando” foi duramente criticado em texto pela militante abolicionista penal Gabrielle Nascimento que circulu tanto que chegou à Julia e rendeu uma retratação por ela. Ambas se encontraram para gravar um vídeo juntas que está em em processo de edição. Agradeço à Gabrielle também pelas nossas conversas sobre as APACs e o paradigma da ressocialização sem o qual não faria esse texto. O vídeo e o texto podem ser acessados por aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=HyszzMutxeU

https://medium.com/@gabriellerib_/oi-jout-jout-senta-aqui-e-se-a-gente-humanizasse-o-holocausto-83af65bdbea1

[2] Edição do excelente GregNews do dia 27/04/18. https://www.youtube.com/watch?v=xA__mSpRQRY

[3] “A APAC, como os demais ‘modelos’ prisionais, selecionam os presos que entram e que ficam, e há um respeito escrupuloso ao limite de presos, havendo inclusive sobra de vagas. O diferencial é a utilização da religião como mediação para a aplicação da pena, na perspectiva de que o preso é um doente social, e que a experiência religiosa cumpre papel essencial para torná-lo um cidadão produtivo e ‘útil’. O lema é ‘matar o criminoso para salvar o homem’. Há uma tremenda confusão entre pena e pecado, e nenhuma reflexão crítica sobre a seletividade e crueldade do sistema penal. Nesse sistema, o preso deve aderir de corpo e alma à pena e tornar-se um sujeito da sua própria punição. Mas não há nenhuma novidade nisso, nos Estados Unidos, Europa e até no Brasil, com as Irmãs do Bom Pastor, grupos religiosos historicamente prestaram esse desserviço de administração penal” Disponível em: http://www.pom.org.br/nao-ha-nada-de-novo-nos-massacres-diz-assessor-da-pastoral-carceraria/

Referências:

ANDRADE, Vera. 2012. Pelas Mãos da Criminologia: O controle penal além da (des)ilusão. Editora Revan. Instituto Carioca de Criminologia. Coleção Pensamento Criminológico. Florianópolis.

BATISTA, Nilo. 2002. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro. v. 12, n.12, p. 271-289.

DEPEN-MJ. 2017. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN. Brasília.

LEMGRUBER, Julita. 2001. Controle da Criminalidade: mitos e fatos. Instituto Liberal do Rio de Janeiro. São Paulo.

VALOIS, Luis Carlos. 2012. Conflito entre ressocialização e o princípio da legalidade pena. Dissertação de Mestrado em Direito. USP. São Paulo.

Cela superlotada de prisão em Vila Velha (ES), em 2009. Foto: Wilson Dias, Agência Brasil

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