Documento que liga Geisel a execuções é importante para que STF reinterprete lei da anistia, diz Instituto Vladimir Herzog

Família de jornalista morto na ditadura pede ao governo dos EUA íntegra de memorando que relata fala de general autorizando tortura e diz que divulgação reforça que prática era ‘política de Estado’.

Por Tahiane Stochero, no G1 SP

O documento secreto da agência norte-americana de inteligência, a CIA, que liga o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, a execuções ocorridas durante o regime militar é visto pela família do jornalista e professor Vladimir Herzog como de grande importância para que o Supremo Tribunal Federal (STF) faça uma reinterpretação da Lei da Anistia, que perdoou crimes políticos ocorridos na ditadura.

Segundo o diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, a família e a entidade defendem que o Supremo Tribunal Federal faça uma reinterpretação da lei de 1979, defendendo que os crimes de tortura e assassinato são de lesa-humanidade e, por isso, imprescritíveis e não sujeitos à anistia.

“Este documento é a comprovação de que não existiam porões na ditadura. Existia uma política de Estado de tortura e assassinatos. Este documento comprova isso e é o elemento mais importante para que o STF faça uma reinterpretação da lei da anistia”, diz Sottili.

Herzog, que tinha descendência judaica e militou no Partido Comunista Brasileiro, foi torturado e morto em 1975. Ele foi encontrado com aparência de suicídio com uma tira de pano, mas a Justiça brasileira, em 2012, retificou a certidão de óbito, adicionando a informação que morte decorreu de “lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército – SP (DOI-Codi)”. A Comissão Nacional da Verdade também investigou a morte de Herzog no regime militar.

“Este documento é extremamente importante. Embora estarrecedor, não traz nenhuma informação que nos surpreenda, é algo que já vínhamos falando sempre, da cooperação norte-americana com o governo militar brasileiro e que Geisel não só tinha ciência, como autorizava matar e torturar”, acrescenta ele.

Em 2010, o STF arquivou uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que questionava a validade da lei para casos de tortura e crimes comuns, cometidos por civis e agentes do Estado durante a ditadura militar. A OAB entrou com um recurso no STF sobre a decisão, que ainda não foi analisado pelos ministros.

“A divulgação deste documento nos coloca o desafio de buscar, de todas as formas possíveis, um movimento em direção ao Supremo para reinterpretar a lei da anistia. Não é revisão, é reinterpretação. Isso porque entende-se que crimes de lesa humanidade, como tortura e homicídio, são imprescritíveis e, portanto, não teria como anistiar quem cometeu estes crimes”, defende Sottili.

Reprodução do memorando da CIA sobre o aval dos generais Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo a execuções sumárias durante a ditadura. “Figueiredo apoiava esta política e defendeu sua continuidade”, afirma o texto. Foto: Reprodução CIA

Segundo o diretor-executivo, a família de Herzog enviou nesta sexta-feira (11), após a divulgação de notícias na imprensa sobre o documento, uma carta ao Ministério de Relações Exteriores pedindo que o Itamaraty questione o governo norte-americano sobre o documento e peça o mesmo na íntegra.

>O Instituto Herzog também está acionando o governo norte-americano, através de uma lei que permite o acesso a documentos lá, semelhante à lei de acesso à informação brasileira, que entregue a íntegra do memorando.

No documento, de 11 de abril de 1974 e elaborado pelo diretor da CIA, William Egan Colby, e endereçado ao então secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, relata-se uma frase de Geisel defendendo “a política (de tortura e execuções deve continuar, mas deve-se tomar muito cuidado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados”.

O então presidente da República Ernesto Geisel durante evento em São Paulo em novembro de 1978. Foto: Estadão Conteúdo/Arquivo

“Enquanto você não trouxer a verdade sobre o que aconteceu, não promover a responsabilização e a justiça, vamos estar ajudando a democracia a não ser democracia plena”, defende ele.

A família de Herzog aguarda ainda uma posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde o caso da morte de Herzog está em análise. A expectativa da família é que a Corte condene o Estado brasileiro pelo ocorrido.

“Este documento comprova o envolvimento direto dos generais e espera-se que a Corte seja muito rigorosa com o Estado brasileiro”, defende o diretor.

Desaparecidos e mortos na ditadura militar em 1975. Foto: Igor Estrela /G1

Memorando

O memorando relata um encontro entre Geisel, João Batista Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), e os generais Milton Tavares de Souza e Confúcio Danton de Paula Avelino, ambos na ocasião no Centro de Inteligência do Exército (CIE).

O general Milton Tavares, segundo o documento, disse que o Brasil não poderia ignorar a “ameaça terrorista e subversiva”, que os métodos “extra-legais deveriam continuar a ser empregados contra subversivos perigosos” e que, no ano anterior, 1973, 104 pessoas “nesta categoria” tinham sido sumariamente executadas pelo Centro de Inteligência do Exército”.

De acordo com a documentação, Geisel “disse ao general Figueiredo que a política deve continuar, mas deve-se tomar muito cuidado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados”.

Ainda segundo o relato, todas as execuções deveriam ser aprovadas pelo general João Baptista Figueiredo, sucessor de Geisel e ocupante da Presidência de 1979 a 1985. Partes do documento continuam em sigilo.

Leia abaixo a íntegra de nota divulgada pelo Ministério da Defesa sobre o documento:

O Ministério da Defesa informa, em consonância com mensagem já divulgada da assessoria do Exército Brasileiro, que os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época – Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos – em suas diferentes edições.

Mortos pela ditadura militar depois de 1º de abril de 1974. Foto: Alexandre Mauro /G1

Em 2012, a pedido da Comissão Nacional da Verdade, a Justiça de SP determinou a retificação do atestado de óbito do jornalista Vladimir Herzog, o que derrubou a tese militar de que ele teria se suicidado no dia 25 de outubro de 1975, nas dependências do 2º Exército, em São Paulo. O novo documento faz constar que Herzog foi vítima de lesões e maus-tratos. A família recebeu o novo documento no dia 15 de março de 2013.

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