Para professora, função social da propriedade tem que estar no centro das políticas públicas urbanas
Rute Pina, Brasil de Fato
O desabamento do edifício no centro de São Paulo há quase um mês, onde havia uma ocupação popular por moradia, gerou debates sobre as ocupações de prédios vazios nas cidades.
Mas, para Ermínia Maricato, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo há mais de 40 anos, não fica dúvidas: enquanto os movimentos de moradia fazem cumprir a função social da propriedade, prevista em lei; o muramento de loteamentos fechados, que compõem condomínios irregularmente, é ilegal.
“A tradição pouco rigorosa na aplicação da legislação urbanística explica porque os loteamentos fechados se multiplicaram no Brasil todo nos últimos 20 anos”, afirmou a arquiteta.
Maricato coordenou a criação do Ministério das Cidades durante o primeiro mandato do Lula e foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), na prefeitura de São Paulo.
A arquiteta participou da mesa de abertura do Fórum Nacional “Um Projeto para as Cidades do Brasil”, que ocorre até a próxima quinta-feira (24) em São Paulo (SP) e conversou com o Brasil de Fato.
Confira trechos da entrevista.
Brasil de Fato: A gente observa muitos avanços nas políticas públicas urbanísticas a partir da década 1980. Mas quando olhamos para a distribuição das cidades, dos imóveis e a concentração fundiária a situação é diferente. O que deu errado neste processo?
Ermínia Maricato: Podemos dizer que o lulismo, os períodos de governo Lula e Dilma distribuíram renda. O Coeficiente de Gini e o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] mostram isso claramente. Houve aumento do salário mínimo acima da inflação, o Bolsa Família, o Pronaf, programa de apoio à agricultura familiar.
Mas, nas cidades, a distribuição de renda tem que enfrentar o custo de vida — que, em geral, não é levado em consideração e é muito pouco discutido pela esquerda, pelo movimento operário, pelos economistas.
Se você tem um aumento do preço dos imóveis e do aumento do preço dos transportes, tudo o que você aumentou em matéria de renda pode ser engolido pelo custo de vida urbano. E foi o que aconteceu, especialmente com o boom imobiliário de 2009 a 2015.
O custo das cidades se tornou muito mais alto porque a habitação é uma mercadoria especial, diferente de outras mercadorias basicamente por duas características.
A primeira, porque ela precisa de um capital financeiro, um financiamento à produção e ao consumo. Se alguém não herdou, não tem herança e precisa de uma moradia, precisa de um financiamento ao consumo que vai ser pago por décadas, de modo geral.
E, em segundo lugar, por causa da relação da moradia com o solo urbano, no caso das cidades. O preço da moradia depende da localização. Existem atributos que dão preço ao imóvel ou à terra urbana: serviço de água, serviços de esgoto, serviços de iluminação pública, acesso ao transporte, acesso a escolas, a serviços privados, ter perto da casa uma rede de abastecimento, serviços de saúde, educação. Tudo isso forma o preço da moradia urbana.
Há uma disputa acirrada em torno dos imóveis mais bem localizados, que geram uma renda diferencial, em geral, especulativa.
Pelas contas que tenho feito, entre 2009 e 2015, foram investidos no mercado imobiliário pelo Estado e pelos bancos mais de R$ 800 bilhões nas cidades brasileiras em sete anos. Produzimos, só para baixa renda, mais de 400 milhões de moradias com um subsídio muito alto. Então, por que que o déficit [habitacional] aumentou? Por que o preço da moradia, do aluguel, o tempo nos transportes e o preço da mobilidade aumentaram?
Houve uma especulação espetacular com a terra urbana. Com imóveis, de modo geral também, mas especialmente com a terra urbana. O que a gente nota, principalmente nas cidades médias, é que houve uma ampliação do perímetro urbano. Os projetos populares do Minhas Casa Minha Vida foram colocados a longas distâncias do tecido urbano consolidado. Dentro desse perímetro urbano definido pelas câmaras municipais, foram inseridas verdadeiras fazendas, que, ao passar para o perímetro urbano, mudaram de valor.
Para colocar esse número gigantesco de população dos conjuntos habitacionais nas periferias urbanas houve uma extensão da rede de água, esgoto, coleta de lixo, iluminação pública, transporte. Tudo isso custa. Essa extensão da cidade tem um preço que é pago por toda a coletividade e que agrega uma valorização das terras vazias situadas no caminho.
Essas pessoas estão bem alojadas do ponto de vista da casa, mas, do ponto de vista da cidade, nós temos um novo apartheid urbano, uma nova segregação.
Você defende que foi este processo urbano que estava ocorrendo em junho de 2013 e que a esquerda não entendeu. Qual sua avaliação daquelas manifestações, cinco anos depois?
O Marx não pensou as cidades, então, as esquerdas não conseguem pensar as cidades. Isso é muito triste. Os economistas também têm pouca tradição de pensar essa questão.
O que temos a partir de 2009 a 2015 é uma valorização exponencial do preço dos imóveis. Na cidade de São Paulo, o preço aumenta 240% neste período. O preço dos imóveis e dos aluguéis aumentaram muito mais do que os salários.
Tivemos um investimento no mercado residencial de quase R$ 800 bilhões. Se eu somar com o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] da Mobilidade, são mais R$ 90 bilhões para construir obras que não foram definidas pela necessidade popular.
O que define a necessidade das massas urbanas é uma pesquisa que a gente chama de Origem e Destino. Ela mostra o trajeto das viagens diárias nas nossas cidades e mostra quanto tempo leva, o custo, de onde sai e para onde vai. Nas obras do PAC da Mobilidade, pequena parte foi orientada pela necessidades sociais; a maior parte foi orientada por um lobby que eu chamo da Máquina do Crescimento — capitais imobiliários, grandes empreiteiras, capital de incorporação imobiliária, capital de construção de edificações, financeiros, proprietários de terra que traçaram o rumo desses investimentos.
É uma luta surda que se dá em cima do dinheiro público; se o metrô do Rio de Janeiro vai para a Barra ao Galeão ou se é investido nos dois ramais do metrô de São Paulo que vão para Congonhas ou Guarulhos. Não houve uma discussão técnica e mais ampla sobre a decisão de qual é a obra prioritária e a localização dela no território — porque isso vai incidir no enriquecimento de proprietários.
Houve uma boa intenção do governo federal de fazer uma contra-tendência à queda do PIB [Produto Interno Bruto] a partir da crise de 2008. Foi muito parecido com o que a ditadura [militar] fez na segunda metade da década de 1970: o PIB começa a cair e investimos tudo em obras.
Vamos fazer um parênteses: não tem nada a ver, do ponto de vista político a ditadura com o governo Lula e Dilma. Do ponto de vista da política, a ditadura era concentradora de renda, repressora e censora; os governos Lula e Dilma foram distributivos de renda e defensores das liberdades democráticas. Mas, do ponto de vista da produção, houve um comportamento, que foi levado para as cidades, com a intenção desenvolvimentista, de manter o crescimento do emprego e do PIB.
Porém, nós temos que lembrar que esse desenvolvimentismo, como a [economista] Laura Carvalho tem dito, olhou para as empresas. Bom, nós podemos, em defesa do governo federal dizer que o desenvolvimento urbano é competência constitucional municipal. Então, os municípios poderiam ter apontado as obras que eram mais necessárias para a população mais vulnerável. Por exemplo, qual é a parte da população que está passando mais tempo nos transportes na viagem diária? E é ela que vai ser o objeto do nosso investimento.
Nós saímos desse período de muito investimento com aumento do déficit habitacional, aumento no preço dos imóveis, aumento dos aluguéis, no preço dos transportes, mas, especialmente — e é algo que ninguém fala — o aumento na concentração na propriedade urbana, imobiliária e fundiária. Isso foi crucial para um processo de piora na condição de vida urbana a partir de 2009. Em 2013, nós estávamos no meio deste processo e, sem dúvida nenhuma, daqui para o futuro nós vamos ter muitos problemas.
A crítica ao desenvolvimentismo é um ponto que aparece em algumas análises dos governos petistas e deve ser um ponto colocado para a esquerda nestas eleições. Como um projeto desenvolvimentista deve levar em conta os limites das cidades?
Olha, o desenvolvimentismo é melhor que o neoliberalismo, convenhamos. O neoliberalismo é olhar para as cidades e ver onde tem oportunidade de negócio, não é olhar para as políticas públicas e sociais. É a privatização do que é o bem público, do que é o bem comum e o orçamento público, especialmente. Essa privatização é pior do que um desenvolvimentismo equivocado.
No Brasil, nosso desenvolvimento industrial gerou urbanização. Mas a urbanização esteve muito longe de incorporar as massas em um processo de direito à cidade. Ao contrário, grande parte das nossas cidades é construída pela própria população, fora da legislação urbanísticas, nas horas de descanso. Isso é muito escondido até pelos cursos de urbanismo, que ficam discutindo horas a legislação de zoneamento, enquanto o espaço de residência da classe trabalhadora cresce sem interferência do estado.
Nós temos que rediscutir o desenvolvimentismo, que foi o que aconteceu na América Latina enquanto os países do capitalismo central viveram o welfare state. De fato, o Brasil foi um dos países que mais cresceu no mundo de 1940 a 1980.
Mas temos que entender que existe uma coisa no centro da questão política urbana, que é a função social da propriedade. A cidade é uma construção coletiva. Se a propriedade tiver liberdade total, usufruto e abuso, não há qualquer chance de tornar essa construção coletiva sustentável do ponto de vista social, econômico e ambiental.
Essa febre de muros que vivem as nossas cidades, inclusive durante esse boom imobiliário, aumentou muito. Esses loteamentos privados que eles chamam de condomínios murados são ilegais diante da Lei Federal 6.766 de 1979. Você vê, inclusive, conjuntos habitacionais populares murados. Tudo isso leva uma cidade mais insegura.
Então, no coração da política urbana, nós temos o controle sobre o uso e a ocupação do solo para preservar aquilo que é ambientalmente frágil, impedir uma especulação absurda e exponencial como tivemos durante esse boom imobiliário.
O problema maior não é de recursos para investir. O problema maior é o da aplicação da função social da propriedade previsto na Constituição Federal, na Lei Federal, no Estatuto das Cidades, previsto em todos os planos diretores que eu já li e que conheço. Então, está na hora do judiciário entender, ler e respeitar a legislação urbanística — incluindo parte do Ministério Público.
A função social da propriedade tem uma importância paritária com o direito de propriedade na Constituição. Edifícios vazios, ao contrário do que se pensa, quando estão ocupados estão cumprindo sua função social. Está na hora da gente aplicar a lei no Brasil. Está na hora de parar com essa hipocrisia de, inclusive, criminalização de movimentos sociais. Há cerca de 70 ocupações no centro da cidade [de São Paulo] que prestam um serviço para a sociedade.
A gente viu a mídia falando muito sobre o fato das ocupações serem irregulares e agora o Poder Público, inclusive, está vistoriando esses prédios. Mas poucos lembram, por exemplo, que os loteamentos fechados são irregulares. Por quê?
Vamos lembrar que a tradição de fraude registrária no Brasil é um fato. No Pará e Amazônia, é mais do que comum andares [cheios] de registros de propriedade sobre o mesmo pedaço de terra.
A história da propriedade privada no Brasil tem tudo a ver com o processo de libertação dos escravos. A mão de obra era propriedade privada dos produtores agrícolas, e a terra, da Coroa até 1850. Entre 1824 e 1888, há uma passagem que alguns autores chamam de libertação da mão de obra e uma privatização da terra.
Na verdade, essa mão de obra não foi exatamente libertada, nós sabemos disso. E a privatização da terra obedece a um processo longo de confirmação das terras que estavam ocupadas por esses produtores. Essa demarcação de quem são os proprietários de terra no Brasil se arrasta até hoje.
Eu poderia estar falando do Pará onde Ariovaldo Umbelino, que é o geógrafo que mais estudou isso, mostrou que o que está registrado como propriedade de terras no Pará daria para ocupar cinco vezes o território do estado. Mas até aqui em São Paulo é muito comum ver limites de propriedades se superpondo com outro limite de propriedade dentro da cidade.
Há uma falta de rigor na delimitação das propriedades, que é pior quando você vai para o campo. É engraçado o agronegócio encher a boca para falar que estão ocupando áreas porque a história da demarcação da propriedade no Brasil é isso.
Considerando a tradição pouco rigorosa na aplicação da legislação urbanística, a gente pode entender porque os loteamentos fechados se multiplicaram no Brasil todo nos últimos 20 anos, mais ou menos.
Estou chamando de loteamento fechado quando a mercadoria é um lote, uma parcela de terra. Pode ser servida de infraestrutura, mas não tem nada construído em cima. A Lei de Condomínio é uma outra lei, de 1967, que implica que sobre a terra exista uma construção.
O parcelamento da terra é regido pela lei de 1979, apelidada de Lei Lehman. Eu participei da elaboração dessa lei. Ela implica que todas as ruas e a área pública e verde de cada loteamento e parcelamento do solo é público; as ruas são públicas. Então, uma parte da gleba tem que ser obrigatoriamente doada ao poder público. Ela não pode estar murada ou impedir qualquer pessoa de entrar nessas áreas e ruas.
No entanto, o loteamento fechado se tornou uma regra no país inteiro. O lote do loteamento fechado é o produto mais lucrativo do mercado imobiliário dos últimos anos. Então, ele se impôs sobre a lei. É assim que a gente convive com a legislação.
A gente tem uma legislação urbanística muito avançada no Brasil. O Estatuto das Cidades; a Lei da Mobilidade Urbana; o Estatuto da Metrópole; a Legislação de Resíduos Sólidos. São leis festejadas no mundo inteiro. Mas há uma completa contradição entre a lei e a realidade no Brasil.
Edição: Juca Guimarães