Capital é mais perigosa que Rio e São Paulo para essa parcela da população. As regiões de maior incidência de crimes do tipo são a Granja de Freitas, Barreiro e Aglomerado da Serra
por Gustavo Werneck e Junia Oliveira, em Estado de Minas
Duplamente vulneráveis: se a juventude já é uma época da vida considerada mais suscetível a mortes violentas em países como o Brasil, jovens negros estão ainda mais expostos ao risco. É o que mostra relatório feito pela primeira vez em Belo Horizonte, indicando que 70% das pessoas assassinadas na capital na faixa dos 15 aos 29 anos são negras. As regiões de maior incidência de crimes do tipo são a Granja de Freitas e o Bairro Taquaril, no Leste da capital, áreas da Região do Barreiro e o Aglomerado da Serra, na Centro-Sul. “São mortes evitáveis, um potencial de vida desperdiçado pela negligência do poder público e indiferença da sociedade”, ressaltou, ontem, a presidente da Comissão Especial de Estudo do Genocídio da Juventude Negra e Pobre da Câmara Municipal, vereadora Áurea Carolina (Psol), ao citar dados do trabalho que teve a participação do professor doutor Rodrigo Ednilson de Jesus, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Segundo a parlamentar, o relatório traz uma série de dados e informações sobre a situação de genocídio da população jovem negra em BH, fazendo da cidade a 11ª capital que mais mata jovens negros em todo o país. Os números se referem a 2010, ano do último levantamento sobre a violência homicida, que se tornou uma realidade em todo o país, e mostram a capital mineira à frente dos municípios do Rio de Janeiro (20ª) e São Paulo (27ª). De acordo com o levantamento, a mais letal para esse grupo populacional é Maceió (AL) (veja quadro). “Nosso estudo resulta de uma série de reuniões, incluindo participantes de movimentos sociais, universidades e outras instituições, e mostra a matança de negros e de pobres. Por isso, dizemos que há uma seletividade do homicídio, com as armas de fogo em primeiro lugar nas mortes violentas.”
Na tarde de ontem, o trabalho foi aprovado pelos integrantes da Comissão Especial de Estudo do Genocídio da Juventude Negra e Pobre, que tem o vereador Arnaldo Godoy como relator – no ano passado, Áurea Carolina estava nessa função. Agora será encaminhada uma cópia do trabalho à Prefeitura de BH. “Os territórios com mais vulnerabilidade juvenil tendem a ter maior taxa de homicídios na faixa etária de 15 a 29 anos. E são exatamente aqueles com maior população negra. O índice de mortes de jovens negros é três vezes maior do que entre os brancos”, afirmou a vereadora. Portanto, “pertencimento racial, armas de fogo e território de vulnerabilidade” são os componentes dessa situação.
O professor Rodrigo Ednilson ressalta que fazer o recorte racial dos dados possibilita avaliar se as mortes estão ligadas a essa questão. As circunstâncias dos assassinatos não estão contempladas no levantamento, que revela ainda que, em 2010, em BH, um jovem negro tinha três vezes mais chances de ser morto por causas externas que um jovem branco. “É preciso que as políticas públicas observem essa dimensão. Ela revela que, à medida que o índice de homicídios de jovens brancos se reduz, aumenta o de jovens negros”, destaca. “Quando se fala em genocídio, muito se pensa na intencionalidade, o mesmo ocorre quando se pensa em racismo. Essa distribuição existe e, mesmo que não seja intencional, distribui privilégios, mostrando que a segregação é estrutural e não subjetiva ou intencional.”
OPORTUNIDADE No mês em que são lembrados os 130 anos Abolição da escravatura – o ponto alto foi dia 13 –, Áurea Carolina diz que é mais do que oportuno falar da violência homicida contra os negros e pobres, que inclui os brancos, da estrutura racial e da falta de oportunidades. “Os negros estão no território da vulnerabilidade, e são pobres porque são negros. Não sabemos quem são os agentes dessas mortes, mas podemos dizer que, se tem relação com o tráfico de drogas, esta decorre de uma política de repressão, que tem sua matriz nas escolhas.”
A falta de bases comparativas e dados mais aprofundados e completos, ao longo dos anos, impediu uma compreensão maior da situação em Belo Horizonte e a possibilidade se fazerem cruzamentos de informações. “Isso nunca foi prioridade, daí a falta de planos municipais específicos.” Dizendo-se otimista e esperançosa de que o quadro mude, a parlamentar afirma que se trata de uma luta de toda a sociedade. “É um conjunto, que envolve saúde, assistência social, moradia, saneamento básico, oportunidade de emprego, trabalho e renda, enfim, de oportunidades e perspectivas para os jovens negros e pobres. Precisamos de políticas públicas e diretrizes sociais”.
Os dados foram apresentados na tarde de ontem, na Câmara, e também no Seminário Juventude Negra Presente, que será realizado na sexta-feira, na sede do Legislativo municipal, com a participação de vereadores, gestores públicos, pesquisadores e outros integrantes da sociedade civil. Na ocasião, serão discutidas políticas e experiências em defesa da vida de jovens em BH.
Execução na Serra ilustra violência
Era uma madrugada de sábado, em fevereiro de 2011, quando o garoto Jefferson Coelho da Silva, negro, então com 16 anos, terminou o ensaio com o grupo de dança e subiu o morro indo para casa. Ele estava na Praça do Cardoso, na Serra, na Região Centro-Sul de BH, envolvido com passinhos de funk e axé. Perto dali, o tio Renilson Veriano da Silva, de 39, deixava a casa de pagode onde estava com familiares e amigos para também ir para casa, buscar uma blusa de frio e dinheiro para retornar à festa. Ao chegar a determinado ponto, Jefferson se deparou com o tio caído no chão com um tiro de fuzil nas costas. “Ele perguntou aos policiais o que tinha ocorrido, que o tio era trabalhador e ele, filho de policial. Falaram com ele que poderia ir embora, então. Quando ele se virou, deram tiros nas costas dele também”, conta um primo do adolescente.
Na ocasião, uma troca de tiros foi forjada e armas e fardas colocadas ao lado dos corpos. Houve revolta na Serra, onde moradores atearam fogo a ônibus, exigindo justiça. Testemunhas foram essenciais para virar o jogo e garantir a condenação dos militares a 25 anos de prisão. “Acabaram com a nossa família. Não fosse o fato de meu tio ser policial e de outro militar ter visto o que ocorreu, seriam mais dois nas estatísticas da favela. É triste pensar que quem deveria proteger a gente, chega e mata”, relata o rapaz.
A família de Jefferson usa a dor para tentar mudar a realidade de milhares de jovens negros da capital. O rosto do garoto estampa o material de divulgação do relatório da Comissão Especial de Estudo do Genocídio da Juventude Negra e Pobre da Câmara Municipal.
EM MINAS A história em BH está em sintonia com as estatísticas sobre o índice de mortes violentas de adolescentes, em disparada nos últimos anos no país. Conforme mostrou na segunda-feira o Estado de Minas, o quadro de desajuste atinge quase três quartos das cidades mineiras com mais de 100 mil habitantes, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Em Minas, Betim, na Grande BH, é onde mais se matam integrantes dessa parcela da população. São 7,95 para cada grupo de 1 mil habitantes – mais que o dobro da taxa de BH. O levantamento mostra ainda que o problema deixou de ser exclusivo da capital e seu entorno para avançar pelo estado. Entre os cinco municípios com a maior taxa de vítimas de homicídio entre 12 e 18 anos, três estão no interior. E estima-se que, se nada for feito, 43 mil adolescentes sejam assassinados nas maiores cidades do Brasil até 2021.
É o que mostra o Índice de Homicídios na Adolescência 2014 (IHA), do Unicef, calculado para cada grupo de 1 mil pessoas entre 12 e 18 anos. Em Minas, Coronel Fabriciano, no Vale do Aço, aparece em segundo lugar no IHA, com 7,14 assassinatos por 1 mil habitantes, seguido por Governador Valadares (6,54), no Vale do Rio Doce; Ribeirão das Neves (6,25), na Grande BH; e Muriaé (5,81), na Zona da Mata. Em BH, o índice é de 3,10 – o que sugere, segundo o Unicef, a existência de municípios em Minas com índices muito mais altos, puxando a média para cima. Os dados são alarmantes, pois o resultado aceitável dessa taxa numa sociedade pouco violenta seria um valor abaixo de 1. A pesquisa, com dados referentes ao ano de 2014 mas concluída recentemente, analisa os homicídios nos 300 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes – 31 deles em Minas Gerais.
A análise geral do IHA revela que, para cada 1 mil adolescentes no país, 3,65 correm o risco de ser assassinados antes de completar o 19 anos. Minas é o 15º estado com pior IHA: aqui, 3,2 adolescentes são assassinados por grupo de 1 mil. O primeiro nesse ranking é o Ceará (8,71). O levantamento resulta de parceria entre o Unicef, o Ministério dos Direitos Humanos, o Observatório de Favelas e o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj).
Das 31 cidades mineiras analisadas pelo relatório, 23 têm índice superior a 1. Betim, líder no ranking mineiro, tem posição incômoda também quando comparada a outras cidades do país: é a 22ª na lista nacional e a sétima da Região Sudeste, atrás de Serra (ES), com 12,71; Cabo Frio (RJ), com 10,35; Vila Velha (ES), com 10,28; e, também do interior do Rio de Janeiro, Itaguaí (9,02), São João de Meriti (8,14) e Macaé (8,09).
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(foto: Arte/Paulinho Miranda)
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.