Direitos Humanos devem guiar moderação de redes sociais, diz relator da ONU. Por Leonardo Sakamoto

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Diante da ameaça de ”notícias falsas”, desinformação e extremismo on-line, os países estão atuando para restringir e penalizar formas de expressão na internet. Governos devem se abster de remover conteúdo on-line (o que é competência do sistema de Justiça) e empresas precisam garantir que o respeito aos direitos humanos seja a base da moderação de seu conteúdo nas redes e não as regras de comunidade que elas mesmas constroem.

Essas são algumas das conclusões do relator especial das Nações Unidas para a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, David Kaye, no relatório que irá apresentar ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, no dia 19 de junho. Nele, Kaye discute a questão da regulação da liberdade de expressão on-line pelos Estados e o papel a ser desenvolvido por plataformas de redes sociais e empresas. Clique aqui para ler a íntegra (em inglês).

”Forças opacas estão moldando a capacidade de indivíduos em todo o mundo de exercitar sua liberdade de expressão. Este momento exige transparência radical, significativa responsabilidade e um compromisso de remediar danos a fim de proteger a capacidade dos indivíduos de usarem plataformas on-line como fóruns de livre expressão, acesso à informação e envolvimento na vida pública”, diz o relatório de Kaye.

Ele pede aos governos para que reconsiderem as restrições na liberdade de expressão e adotem regulação inteligente permitindo que o público decida o conteúdo que vá consumir. E faz críticas a respeito dos padrões de moderação de conteúdos nas principais plataformas de redes sociais.

”Poucas empresas aplicam princípios de direitos humanos em suas operações, e a maioria se limita a dar respostas a ameaças e demandas feitas pelo governo”, afirma o relatório. Ele diz que a legislação internacional sobre direitos humanos já oferece às empresas ferramentas de modo a respeitar as normas democráticas e barrar exigências autoritárias.

O Brasil é citado no relatório quanto ao Marco Civil da Internet, legislação nacional que assegura direitos e deveres dos usuários da rede e deveres das empresas e do governo – considerada uma referência global. ”O regime de responsabilidade do intermediário no Brasil exige uma ordem judicial para restringir determinados conteúdos.”

O que não acontece na China, por exemplo.  Sua lei de cibersegurança de 2016 reforça proibições vagas contra a disseminação de informações “falsas” que interrompem a ordem econômica, unidade nacional ou segurança nacional e exige que as empresas monitorem suas redes e denunciem violações às autoridades. Ou seja, permite ao governo censurar e punir quem usa a internet no país e faz algo que não é de seu agrado.

Direitos Humanos e não Regras da Comunidade

”Normas privadas, que variam de acordo com o modelo de negócios de cada empresa e afirmações vagas de interesses da comunidade [das redes sociais], criaram ambientes instáveis, imprevisíveis e inseguros para usuários e intensificou o escrutínio do governo. Leis nacionais são inadequadas para empresas que buscam normas comuns para sua base de usuários geograficamente e culturalmente diversificada. Mas padrões de direitos humanos, se implementados de forma transparente e consistente com os usuários e a sociedade civil, fornecem uma estrutura para a participação de Estados e empresas responsável”, diz o relatório.

De acordo com Kaye, os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas estabelecem padrões a serem seguidos e deveriam ser usados por base. O problema é que esses princípios são apenas sugestões. Hoje, empresas e os países onde estão suas sedes não são obrigados a segui-los. Há um grupo de trabalho transnacional em curso na ONU para criar princípios obrigatórios, mas o debate vem se arrastando por anos, com pouco apoio de países economicamente relevantes – inclusive do Brasil.

”Direitos humanos por padrão.” Segundo Kaye, os termos de serviço das empresas de internet, como Facebook, Google, Twitter, Instagram, entre outras, devem se afastar de uma abordagem ligada a necessidades “comunitárias” genéricas. Ao invés disso, as empresas deveriam adotar compromissos políticos de alto nível para manter plataformas nas quais os usuários possam desenvolver opiniões, expressar-se livremente e acessar informações de todos os tipos de maneira consistente com a legislação internacional sobre direitos humanos.

”Esses compromissos devem reger sua abordagem quanto à moderação de conteúdo e a problemas complexos, como propaganda computacional e a coleta e manipulação de dados dos usuários”, afirma.  Para o relatório, as empresas devem incorporar diretamente em seus termos de serviço e “padrões da comunidade” princípios relevantes da legislação internacional de direitos humanos que assegurem que ações relacionadas ao conteúdo serão orientadas pelos mesmos padrões de legalidade, necessidade e legitimidade que vincula a regulação estatal da liberdade de expressão.

Kaye defende o respeito à legislação internacional de direitos humanos como saída para as diferenças em cada país. ”A legislação de direitos humanos expressa uma promessa aos usuários de que podem confiar em normas fundamentais para proteger sua expressão para além do que a lei nacional poderia restringir”, afirma. Para ele, a legislação de direitos humanos garante ferramentas e parâmetros às plataformas de redes sociais para combater o assédio misógino e homofóbico, por exemplo, que serve para silenciar mulheres e minorias sexuais.

Para isso, o relatório trata também da necessidade de avançar na profissionalização da moderação humana de conteúdo das plataformas socais, lembrando que a moderação automatizada apresenta riscos. Para ele, é necessário que as empresas deem respostas rápidas e adequadas a violações, o que passa por aumentar e treinar equipes.

Nesse sentido, o relator destaca a criação de um “Conselho de Mídia Social”, baseado nos Press Councils setoriais de alguns países europeus que permitem o recebimento de queixas e promoção de soluções para violações. Segundo ele, esse mecanismo poderia receber reclamações de usuários individuais que atendessem a determinados critérios e coletasse um feedback público sobre problemas recorrentes à moderação.

Não teria a cara do Conar brasileiro, que recebe e analisar denúncias contra anúncios veiculados, mas seria independente das empresas. Uma espécie de co-regulação ao invés de auto-regulação.

Seguem as recomendações feitas a Estados e às empresas de internet:

Recomendações aos Estados

1) Os Estados devem revogar qualquer lei que criminalize ou restrinja indevidamente a expressão, online ou offline;

2) A regulação inteligente, não a regulação forçada baseada em pontos de vista, deve ser a norma, focada em garantir a transparência da empresa, bem como sua capacidade de remediar, permitir que o público faça escolhas sobre como e se participar de fóruns on-line. Os Estados só devem procurar restringir o conteúdo de acordo com uma ordem dada por uma autoridade judicial independente e imparcial e de acordo com o devido processo que siga padrões de legalidade, necessidade e legitimidade. Os Estados devem abster-se de impor sanções desproporcionais, sejam multas pesadas ou penas de prisão, aos intermediários da Internet, dado o seu significativo efeito inibidor da liberdade de expressão;

3) Os Estados e as organizações intergovernamentais devem abster-se de estabelecer leis ou arranjos que exijam o monitoramento ou filtragem “proativa” do conteúdo, o que é inconsistente com o direito à privacidade e pode resultar em censura prévia à publicação;

4) Os Estados devem abster-se de adotar modelos de regulação nos quais as agências governamentais, ao invés das autoridades judiciais, se tornem os árbitros da expressão legal. Eles devem evitar a delegação de responsabilidade às empresas como sentenciadoras de conteúdo, o que confere poder de julgamento corporativo sobre os valores dos direitos humanos em detrimento dos usuários;

5) Os Estados devem publicar relatórios de transparência detalhados sobre todos os pedidos relacionados a conteúdo enviados a intermediários e envolver uma contribuição pública genuína em todas as considerações regulatórias.

Recomendações às empresas de internet:

1) As empresas devem reconhecer que o padrão global com autoridade para garantir a liberdade de expressão em suas plataformas é a lei de direitos humanos, não as leis variáveis ​​dos Estados ou seus próprios interesses privados, e devem reavaliar seus padrões de conteúdo de acordo com isso. A lei de direitos humanos oferece às empresas as ferramentas para articular e desenvolver políticas e processos que respeitem as normas democráticas e barrar exigências autoritárias. Essa abordagem começa com regras baseadas em direitos, continua com rigorosas avaliações de impacto sobre os direitos humanos para o desenvolvimento de produtos e políticas e passa por operações com avaliação, reavaliação e consulta significativa da sociedade civil e pública. Os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, juntamente com as diretrizes específicas do setor desenvolvidas pela sociedade civil, órgãos intergovernamentais, a Iniciativa de Rede Global e outros, fornecem abordagens básicas que todas as empresas da Internet devem adotar;

2) As empresas devem embarcar em abordagens radicalmente diferentes para garantir transparência em todos os estágios de suas operações, desde a criação de regras até a implementação e desenvolvimento de jurisprudência que enquadra a interpretação de regras privadas. A transparência exige maior engajamento com organizações de direitos digitais e outros setores relevantes da sociedade civil e evita acordos secretos com os Estados sobre padrões de conteúdo e implementação;

3) Dado o seu impacto na esfera pública, as empresas devem se abrir para a responsabilidade pública. Conselhos de imprensa eficazes e respeitadores dos direitos em todo o mundo fornecem um modelo para impor níveis mínimos de consistência, transparência e responsabilidade à moderação do conteúdo comercial. Abordagens não-governamentais de terceiros, se enraizadas em padrões de direitos humanos, poderiam fornecer mecanismos para apelar e remediar sem impor custos proibitivamente altos que detenham entidades menores ou novos entrantes no mercado. Todos os segmentos do setor de tecnologia da informação e da comunicação que moderam conteúdo ou agem como gatekeepers devem fazer do desenvolvimento de mecanismos de responsabilidade de toda a indústria (como um conselho de mídia social) uma prioridade.

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