Somente a terra não será suficiente para a sobrevivência e o etnodesenvolvimento dos indígenas Kaingang. Entrevista especial com Henrique Kujawa

por Patricia Fachin, em IHU On-Line

Os conflitos envolvendo comunidades indígenas no norte do Rio Grande do Sul são “históricos e recorrentes” e envolvem tanto disputas entre indígenas e agricultores, quanto rivalidades internas entre os próprios Kaingang, resume o historiador Henrique Kujawa à IHU On-Line. “Na primeira situação o conflito tem um motivo claro e visível, que é a disputa da mesma terra por agricultores e índios. Na segunda situação os fatores são menos explícitos. Quase sempre aparecem como sendo disputas pela liderança, pelo cargo de cacique e o grupo que apoia”, relata.

Segundo Kujawa, nos conflitos “que envolvem indígenas e agricultores, em regra, há acampamentos indígenas que vivem em situações extremamente precárias na esperança de obter a demarcação de terras que consideram de ocupação tradicional em função de, no final do século XIX e início do século XX, o Estado ter demarcado os Toldos (1910-18) restringindo seus territórios para efetivar os projetos de colonização. Ao mesmo tempo, temos famílias de agricultores que há séculos vivem nestas terras e, nas últimas décadas, sentem-se ameaçadas. Por outro lado, os conflitos nas TIs são entre indígenas e têm se demonstrado mais violentos e com grande número de mortes. O que é possível perceber de comum entre estes conflitos é a disputa pela terra e a clareza de que somente a terra não é o suficiente para a sobrevivência e o etnodesenvolvimento dos indígenas. Os conflitos nas TIs demarcadas não é apenas por falta de terra, mas também pela apropriação desigual entre eles”, explica.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Kujawa frisa que essas disputas demonstram que a questão indígena precisa ser discutida para além da demarcação das terras. “O exemplo mais claro de que somente a terra não resolve a questão do desenvolvimento indígena são os conflitos, a violência e as disputas que ocorrem nas atuais TIs. Ampliar a quantidade de terras não levará os Kaingang a viver de caça e pesca”, adverte. Na avaliação dele, o tratamento da questão indígena no Brasilprecisa responder as seguintes questões:

“a) Por que os Kaingang distribuem desigualmente suas terras?;

b) Por que a necessidade de arrendamento e da prática da monocultura e da agricultura extensiva?;

c) O que causa tantos conflitos que resultam na morte de seus parentes e na expulsão de tantas famílias das TIs?; e

d) De que forma as políticas públicas podem contribuir para a sua organização comunitária e o seu desenvolvimento?”

Henrique Kujawa é graduado em História pela Universidade de Passo Fundo, mestre em História pela Universidade de Passo Fundo e doutor em Ciências Sociais no PPG de Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Lecionou na Universidade de Passo Fundo – UPF e atualmente é professor do Mestrado em Arquitetura na Faculdade Meridional – IMED, e também é bolsista de produtividade da Fundação IMED.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a situação das terras indígenas de Ventarra e Charrua, Mato Preto e Votouro Caindoia, no Rio Grande do Sul, e das comunidades que vivem nesses locais?

Henrique Kujawa – Para entendermos a atual situação das Terras Indígenas – TIs no Rio Grande do Sul, considero importante lembrar que as políticas indigenistas tiveram, historicamente, um caráter assimilacionista e integralista. Além disso, que dentre os frutos destas políticas houve momentos de territorialização e desterritorialização de indígenas e agricultores através da demarcação dos Toldos (1910-18); redução ou extinção dos Toldos (entre as décadas de 1940-60) para venda das terras para os agricultores; redemarcação dos Toldos após a Constituição de 1988 (retirada dos agricultores dos Toldos); e, atualmente, o movimento de “retomada das Terras Indígenas”, movimento organizado pelos Kaingang desde o início do século XXI que consiste na reivindicação indígena para a demarcação de novas Terras Indígenas consideradas por eles de ocupação tradicional e que o Estado vendeu para os agricultores nas primeiras décadas do século XX.

Portanto, há duas situações distintas, ainda que relacionadas: uma é o conflito nas TIs historicamente demarcadas, reduzidas ou extintas em meados do século XX e redemarcadas após a constituição de 1988. Outra situação está vinculada aos acampamentos e assentamentos indígenas em terras que eles reivindicam a demarcação, como é o caso de Mato PretoVotouro CandoiaPasso Grande do ForquilhaMato CastelhanoCampo do Meio, Novo Xingu etc. (ver KUJAWA, Henrique. Conflitos envolvendo indígenas e agricultores no Rio Grande do Sul: dilemas de políticas públicas contraditórias).

IHU On-Line – Recentemente circularam notícias na imprensa sobre indígenas que buscam apoio do Ministério Público em Erechim para fazer a retirada de uma milícia de Votouro. Que informações você tem sobre isso?

Henrique Kujawa – Essa é uma realidade que não é isolada nem recente. Houve, no mês de março deste ano, um conflito entre dois grupos indígenas na TI de Votouro, que resultou na morte do índio Vitor Hugo e em vários feridos por armas de fogo, armas cortantes, paus e pedras. Quando ocorrem conflitos com esta gravidade, a convivência entre grupos em disputa torna-se inviável e, normalmente, um grupo acaba por sair de suas casas.

Conflitos semelhantes ocorrem em diferentes TIs, sejam elas historicamente demarcadas ou em acampamentos que reivindicam a criação de novas TIs. Podemos resgatar alguns exemplos mais recentes. Em março de 2015, após vários disparos de arma de fogo, um indígena foi morto e vários ficaram feridos no acampamento de Passo Grande do Forquilha, nos municípios de Sananduva e Cacique Doble. No mês anterior, já tinha sido vítima uma indígena, em meio a trocas de tiros na Terra Indígena Ventarra, município de Erebango.

Em maio de 2015 houve conflito no acampamento de Mato Castelhano, que resultou na morte de uma jovem indígena de 23 anos e vários feridos. Na data de 17 de setembro de 2017, em Charrua, foi morto a tiros um índio que era integrante de um grupo de 400 pessoas que estavam abrigando-se em um ginásio, por terem sido expulsos da Terra Indígena Ligeiro, também em razão de conflitos. Mais recentemente, no dia 19 de abril de 2018, novamente na TI de Ventarra, município de Erebango, foi assassinado um índio de 23 anos de idade. Portanto, num raio de 100 quilômetros, desde 2015, houve a morte de seis indígenas, fruto de conflitos internos.

Se voltarmos um pouco no tempo, veremos que no final da década de 1990 e primeiros anos do século XXI, tivemos o registro de diversos conflitos em Terras Indígenas recentemente redemarcadas, que resultaram na saída de grupos indígenas. Esses grupos passaram a viver em acampamentos, reivindicando a partir de então a demarcação de nova TI. Estes fatos estão registrados nos estudos antropológicos e históricos que fazem parte dos processos administrativos e/ou jurídicos de demarcação das referidas TIs, bem como em diversas bibliografias sobre o tema.

Portanto, conflitos como estes são históricos e recorrentes. Tanto que, na mesma TI, houve um conflito em 2002/2003 e, logo após, o grupo de indígenas saiu do local e passou a reivindicar a demarcação de uma nova TI denominada Votouro Kandoia. Este grupo encontra-se acampado numa área pública de Faxinalzinho e aguardam o processo de demarcação da área há mais de 15 anos.

IHU On-Line – Como compreender este conjunto de conflitos e esta grande quantidade de mortes?

Henrique Kujawa – Entendo que se trata de um contexto realmente complexo. Como já mencionei, existem duas situações de conflitos que, muitas vezes, estão relacionadas, mas possuem especificidades. Uma delas é o conflito que envolve indígenas e agricultores vinculado à reivindicação de demarcação de novas TIs em terras, consideradas pelos indígenas, de ocupação tradicional, mas que, centenariamente, foram vendidas pelo estado e colonizadas, e são propriedades que estão ocupadas por agricultores. A outra situação é o conflito entre os próprios indígenas, nas TIs historicamente demarcadas ou nos acampamentos. Na primeira situação o conflito tem um motivo claro e visível, que é a disputa da mesma terra por agricultores e índios.

Na segunda situação os fatores são menos explícitos. Quase sempre aparecem como sendo disputas pela liderança, pelo cargo de cacique e o grupo que apoia. Contudo, os fatores subjacentes são os mais importantes e, para tentar compreender a situação, vou citar quatro:

Grande parte das TIs, após a sua demarcação na década de 1990, foram subdivididas e apropriadas, individualmente, por determinadas famílias ou grupos indígenas dentro de cada área.

Há uma grande desigualdade interna nas TIs, seja na distribuição das terras ou na apropriação dos benefícios de políticas públicas, como por exemplo: nas funções públicas remuneradas (motoristas de ambulância, professor etc.), acesso à moradia, reserva de vagas em universidades etc. Há indígenas com muita terra e outros sem-terra, há alguns ricos e outros miseráveis.

A diferença na distribuição das terras é motivada pela prática de arrendamento (também denominada de parceria com terceiro), que permite o cultivo destas terras por não-indígenas e, somando-se a isso, o resultado deste arrendamento não é distribuído igualmente entre os indígenas das áreas.

cacique e suas lideranças possuem o poder para interferir na distribuição dos benefícios das políticas públicas, na distribuição das terras, nos contratos e na distribuição dos resultados do arrendamento. O cacique e suas lideranças têm o poder, inclusive, de impor castigos físicos e até a expulsão de famílias de suas TIs. Portanto, a disputa pela liderança (cacique) coloca em jogo um conjunto de poderes que interferem beneficamente nas famílias que o apoiam e desastrosamente nas famílias que não o apoiam. É neste contexto que ocorre a maioria dos conflitos nas TIs, inclusive o de Votouro, que provocou a morte de um indígena e a saída, do local, de inúmeras famílias que acamparam, pedindo por socorro, em frente ao Ministério Público em Erechim.

IHU On-Line – Quais são as semelhanças dos conflitos em TIs entre os próprios indígenas e indígenas e agricultores?

Henrique Kujawa – A especificidade é que nos casos que envolvem indígenas e agricultores, em regra, há acampamentos indígenas, que vivem em situações extremamente precárias na esperança de obter a demarcação de terras que consideram de ocupação tradicional em função de, no final do século XIX e início do século XX, o Estado ter demarcado os Toldos (1910-18) restringindo seus territórios para efetivar os projetos de colonização. Por outro lado, temos famílias de agricultores que há séculos vivem nestas terras e, nas últimas décadas, sentem-se ameaçadas. Por outro lado, os conflitos nas TIs são entre indígenas e têm se demonstrado mais violentos e com grande número de mortes.

O que é possível perceber de comum entre estes conflitos é a disputa pela terra e a clareza de que somente a terra não é o suficiente para a sobrevivência e o etnodesenvolvimento dos indígenas. Os conflitos nas TIs demarcadas não é apenas por falta de terra, mas também pela apropriação desigual entre eles.

IHU On-Line – Por que a apropriação é desigual?

Henrique Kujawa – Eu não tenho uma resposta completa para esta pergunta. Normalmente, há duas respostas distintas. Uma que culpabiliza os indígenas afirmando que eles não conseguem cultivar suas terras, que preferem trabalhar de empregados, até mesmo que não querem mais ser índios. Outra, que inocenta os indígenas e culpabiliza a sociedade envolvida que destruiu o habitat e as TIs, que arrenda suas terras e os explora.

Na minha compreensão nenhuma destas respostas é condizente. É verdade que as políticas indigenistas, historicamente, foram integralistas e assimilacionistas, que quando os Kaingang recuperaram suas terras, após a Constituição de 1988, elas estavam, há décadas, desmatadas e intensamente cultivadas. Por outro lado, os Kaingang, nos dias atuais, não viverão mais da caça, pesca e coleta. A sua forma de vida já incorporou a necessidade monetária, portanto, a função da terra e a forma de desenvolvimento das TIs precisa ser repensada. Entendo que a prática do arrendamento, que tem suas raízes nas políticas do Serviço de Proteção aos Índios – SPI e da Fundação Nacional do Índio – Funai (como demonstrou a CPI do índio da Assembleia do Rio Grande do Sul em 1968), ganha, na atualidade, uma dimensão de sobrevivência. Por outro lado, a prática da agricultura de monocultora e extensiva em TIs não permite a sobrevivência de todos os indígenas, provocando, desta forma, a disputa interna pela apropriação das terras, a expulsão de famílias de suas casas e a busca pela demarcação de novas TIs.

IHU On-Line – Você já mencionou que o conflito entre pequenos agricultores e comunidades indígenas no Norte do RS não deve ser analisado como um conflito e uma disputa entre dois grupos sociais, mas como um problema de política indigenista. Que tipo de solução poderia ser proposta do ponto de vista de uma política indigenista para acomodar tanto indígenas quanto agricultores?

Henrique Kujawa – Costumo dizer que o conflito não é entre indígenas e agricultores, mas, sim, que envolve indígenas e agricultores. Defendo esta ideia na minha Tese de Doutorado que foi publicada no livro “Conflitos territoriais envolvendo indígenas e agricultores: uma análise histórica e jurídica de políticas públicas contraditórias” (Curitiba, CRV, 2015). Tentando sintetizar, afirmar que o conflito é entre indígenas e agricultores é responsabilizar estes dois grupos pelos atuais conflitos. Contudo, foi o Estado (através de normas, políticas indigenistas e colonizadoras) quem definiu, em diferentes momentos históricos, qual área deveria ser considerada terra indígena e terra dos agricultores. Pior, o Estado destinou a mesma terra ora para indígenas, ora para agricultores, estabelecendo o direito de uns em detrimento dos outros. É um equívoco entender que os conflitos atuais foram provocados por estes dois grupos sociais, e que o Estado vai resolver com a mesma fórmula historicamente aplicada, legitimando o direito de uns e negando o direito dos outros.

IHU On-Line – Na última entrevista que nos concedeu você disse que era preciso tratar a questão indígena no país para além do romantismo de que a distribuição de terra garantiria que eles pudessem viver em suas comunidades, como foi no passado. Quais diria que são hoje as principais necessidades das comunidades indígenas e o que seria um modelo de etnodesenvolvimento viável e condizente com a realidade das comunidades indígenas do norte do RS, por exemplo?

Henrique Kujawa – O exemplo mais claro de que somente a terra não resolve a questão do desenvolvimento indígena são os conflitos, a violência e as disputas que ocorrem nas atuais TIs. Ampliar a quantidade de terras não levará os Kaingang a viver de caça e pesca. Quanto à necessidade das comunidades indígenas, não creio que seja a tarefa ou que os cientistas sociais consigam dizer, até porque, na perspectiva do etnodesenvolvimento, os indígenas devem ser sujeitos do modelo de seu desenvolvimento. O que nós podemos fazer são algumas perguntas, tais como:

Por que os Kaingang distribuem desigualmente suas terras?

Por que a necessidade de arrendamento e da prática da monocultura e da agricultura extensiva?

O que causa tantos conflitos que resultam na morte de seus parentes e na expulsão de tantas famílias das TIs?

De que forma as políticas públicas podem contribuir para a sua organização comunitária e o seu desenvolvimento?

IHU On-Line – Que tipo de problemas evidencia no modo como se discute a questão indígena hoje no país, especialmente entre os estudiosos acadêmicos, movimentos sociais e religiosos que acompanham as comunidades?

Henrique Kujawa – Penso que uma das questões centrais é a dificuldade de compreender a diversidade e a especificidade da realidade indígena. No Brasil vivem muitos povos indígenas que tiveram uma trajetória histórica e vivem realidades e necessidades distintas. A não consideração disso faz com que se trate da mesma forma um povo da Amazônia e os Kaingang do norte do Rio Grande do Sul, ou então considera-se da mesma forma os grileiros de terras indígenas e os descendentes de colonos que compraram as terras do Estado nas primeiras décadas do século XX e vivem hoje como agricultores familiares. Outra dificuldade resulta da polarização a partir da rotulação de “indigenista” e “anti-indigenista” impedindo a construção de diálogos a partir das especificidades dos conflitos e, principalmente, das necessidades concretas.

IHU On-Line – Alguns procuradores têm afirmado que a questão indígena no país tem sido usada como um instrumento político no sentido de favorecer alguns políticos em troca de apoio das comunidades e que a demarcação das terras deixou de ser um procedimento técnico e virou um procedimento político. Concorda com essa leitura? Desde quando diria que esse tipo de prática acontece no país? Esse tipo de prática também acontece no norte do RS?

Henrique Kujawa – Veja bem, nesta pergunta estão imbricados diversos elementos. Um dos problemas sérios no Brasil é que as questões sociais são capturadas por interesses eleitoreiros, e o tema da demarcação dos territórios indígenas é mais um exemplo desta prática. Por outro lado, não podemos confundir política com partidarização e processos eleitorais. É, no mínimo, temerário dizer que a demarcação de terras indígenas em regiões de colonização centenária é uma questão apenas técnica; na minha avaliação é eminentemente política e assim deveria ser tratada. Questões sociais são questões de ordem política e devem ser tratadas politicamente. A judicialização destas questões só adiam e agravam os problemas. Pegando como exemplo a realidade do norte do Rio Grande do Sul, a judicialização depois de décadas de demora, de conflitos sociais, de precarização da cultura indígena morando em acampamentos em beira de estrada, vai determinar que a terra deve ser dos índios ou dos agricultores. Este conflito não se resolve desta forma, pois um grupo terá o seu direito negado. Penso que este problema é político e deve assim ser assumido, para construir uma solução, mesmo que para isso seja necessário construir pactos sociais e novas bases normativas.

Comments (1)

  1. Lamentavelmente a sociedade brasileira vive um dos seus piores momentos, prevalece a intolerância, a desonfiança, a deseperança. A classe política, totalmente descrente, não consegue apontar saídas, pensa mais em salvar a sua [deles] pele. Os principals sistemas públicos estão destroçados ou precarizados, entre esses, a saúde pública, a educação, a saúde, a segurança do cidadão e as finanças públicas. Vivemos um momento de impasse. Nessas horas, ao que parece, tudo só tende a ficar pior. Só desejo aos Kaingang boa sorte, assim como aos Guarani e a tantos outros povos indígenas em situação de risco e precariedade.

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