Vendo formadores de opinião que se reconhecem à direita ou mesmo militares linha-dura serem chamados de ”comunistas” ao criticaram a greve dos caminhoneiros, tive duas certezas: de que há realmente um meteoro redentor voando impávido em nossa direção para dar um reset na raça humana e que muita gente não tem a mínima ideia do que seja o tal do comunismo.
Há quem aprendeu que comunismo é algo ruim antes mesmo de receber informações sobre o que ele é. Existem os críticos conscientes e tem o povo que não leu nada além de material voltado à guerra política e se deu por satisfeito quando à natureza da ”ameaça vermelha”. Ou seja, muita gente aprendeu apenas a repudiar, mas sem embasamento algum. E, acredite, há muito subsídio para poder criticar tanto a teoria quanto a prática.
Ouviram de seus ”mentores” que comunismo é um tipo de ”governo” que ”matava” milhões, formado por ”vagabundos que não gostavam de trabalhar” e ajudava a ”perverter sexualmente” as ”pessoas de bem” e a ”destruir as famílias”. O excesso de ”aspas” não é proposital. O objetivo deste texto não é discutir o que significa comunismo e seus desdobramentos políticos, sociais e econômicos. Deixo isso para os professores de História, Sociologia e Filosofia. Isso, claro, se não forem abatidos pelo Escola Sem Partido no caminho para o trabalho.
O fato é que, diante do esvaziamento de seu conteúdo e sua associação forçada com tudo o que há de ruim, a palavra e suas variações acabaram virando uma espécie de palavrão. Chamar alguém de comunista virou uma ofensa grave para um grupo de pessoas.
E, durante a greve dos caminhoneiros, parte desse grupo, indignado com aqueles que até pouco tempo atrás os ensinava que comunismo era algo ruim, resolveu usar aquilo que aprenderam contra quem os ensinou para demonstrar sua insatisfação.
Como assim querem parar por aqui? Como assim não veem a (minúscula) parcela dos caminhoneiros a favor de uma revolução conservadora como heróis? Como assim não querem apoiar uma ”intervenção militar”? – termo que insanos usam por falta de coragem em pronunciar a expressão correta: golpe militar.
Mas isso não é monopólio da loucura que cresce nos buracos do asfalto ou nas profundezas da deep web. Tive a oportunidade de ouvir no Congresso Nacional que a fiscalização de formas contemporâneas de escravidão e mais especificamente a ”lista suja” do trabalho escravo (cadastro público de empregadores flagrados por esse tipo de exploração) são coisa de ”comunista”. Ou seja, o combate ao trabalho escravo, que, em última instância, significa garantir que o contrato de compra e venda de força de trabalho, base do capitalismo, seja feito corretamente, é expressão do comunismo.
Considerando que o mercado precisa de informação de qualidade circulando livremente para que investidores, financiadores e parceiros comerciais possam tomar decisões baseadas na realidade, eu não imagino nada mais capitalista do que um instrumento como a ”lista suja”. Afinal, fornece subsídios para que se realize gerenciamento de riscos.
O que os críticos a ela querem como alternativa? Uma economia planificada em quinquênios, em que um Estado autoritário obrigue às empresas a comprar de uma lista de fornecedores chancelados pelo comitê central do partido no poder? Podemos aplicar um modelo soviético, cubano ou norte-coreano se preferirem. Em um parlamento em que deputados acham que toda palavra terminada em ”ismo” significa doença e engasgam quando questionados a respeito do capitalismo, isso não é de se espantar.
Vira e mexe sou chamado de comunista na rua, além de outros nomes impublicáveis – isso quando não tentam me bater. Considerando que já fui agredido fisicamente e cuspido, não estou tratando de figura de linguagem.
Dia desses, perguntei a um desses cidadãos que me param em via pública o que era comunismo. A cada vez que ele gritava os lugares-comuns equivocados de sempre, eu fazia, com muita calma, novo questionamento. Afinal, aceitaria o rótulo se ele me explicasse por que eu sou comunista. Foram quatro sessões de xingamentos intercalados com coisas como ”porque você não tem Jesus no seu coração” ou ”porque você não respeita o Exército”.
Diante daquela cena, não foi raiva ou indignação o que senti, mas pena, muita pena. Pois o que foi feito com aquele ser humano, com o depósito contínuo de bobagens e ódio, ocupou todo o lugar que estaria destinado à sua capacidade de raciocínio. Ele poderia muito bem não ser comunista, como também não sou, e criticar abertamente a ideologia. Mas ele, tendo desistido de controlar os rumos de usa vida e terceirizado sua reflexão, tornou-se uma alegoria, não um indivíduo.
Por trás de todos aqueles perdigotos, era possível identificar um medo muito grande. Provavelmente, abraçou um discurso que lhe dava porcas respostas por causa da incerteza do mundo que o cercava. Ou seja, preencheu as lacunas à sua frente, que lhe davam insegurança, com respostas – mesmo que elas não se sustentem diante de quatro perguntas de um desconhecido na rua.
Dar as costas a pessoas como ele e à sensação de vazio que uma sociedade como a nossa pode causar – em que muita informação gera desinformação e desespero – só vai fazer com que mais palavras sejam esvaziadas de sentido e transformadas em xingamento.
Hoje é ”comunismo”. Amanhã, quem sabe, será ”democracia”.
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Foto: Luis Moura/Estadão.