A anarquia judicial e o Brasil na noite trevosa. Por Aldo Fornazieri

No GGN

O golpe promoveu a mais profunda desorganização institucional que o país já experimentou nos breves períodos de sua frágil vida democrática. A corrosão da legitimidade institucional levou o Executivo e o Legislativo à irrelevância, à infuncionalidade e ao desgoverno. Esses poderes, simplesmente faliram, não funcionam, a não ser num único aspecto: o de fazer o mal ao povo e ao Brasil. Com a falência do governo e do Congresso, sobrou o poder Judiciário, que se tornou o centro das decisões políticas do país, usurpando competências e violando a Constituição. Se, por algum tempo após o golpe, o Judiciário, comandado pelo STF, dava a aparência de ser um poder unitário com as naturais divergências, aos poucos foi revelando ser um poder anárquico e promotor da anarquia judicial, da ilegalidade e da recorrente violação da Constituição.

A anarquia judicial se acentuou após a criminosa omissão do STF em não barrar o impeachment sem crime de responsabilidade, permitindo que a Constituição fosse violada. Ali ficou claro que amplos setores do Judiciário integravam o golpe parlamentar-judicial. Igualmente criminosa foi a conivência do STF com os arbítrios de violação da Constituição cometidos pelo juiz Moro, a exemplo das conduções coercitivas, da transformação das prisões como instrumentos coativos para arrancar delações premiadas mentirosas e orientadas e da gravação ilegal da presidente Dilma e a divulgação do conteúdo. Em qualquer Estado democrático sério, Moro estaria preso por ter conspirado contra a segurança do Estado.

Outro atentado grave ao ordenamento jurídico do país consistiu no fato de o juiz Moro ter julgado o caso do triplex, pois, não tendo este caso nenhuma relação com a Petrobras, Moro não era o juiz natural para julgá-lo. Assim, ficou evidente que a 13ª Vara Federal de Curitiba foi sendo transformada em tribunal de exceção e Moro em juiz de exceção. Agora Edson Fachin viola o mesmo princípio do juiz natural ao remeter recursos da defesa de Lula para o plenário do STF, quando o procedimento correto seria que eles fossem julgados pela segunda turma.

A anarquia judicial se define exatamente por isto: para cada caso e para casos semelhantes são aplicadas regras jurídicas diferentes, ao sabor do arbítrio do juiz e segundo seu interesse político ou segundo quem é a pessoa do réu. Lula tem seus direitos e garantias fundamentais violados de forma despudorada, criminosa e explícita. A anarquia judicial quebra a uniformidade procedimental, desorganiza a jurisprudência, agride a Constituição e as leis e gera uma imensa insegurança jurídica e um vácuo constitucional. Ao agir de forma anárquica, o Judiciário e o STF agridem a cultura jurídica e constitucional que, às duras penas, tenta se firmar.

O caso da prisão em após condenação em segunda instância, sem que a sentença tenha transitado em julgado, como determina a Constituição, é a mais violenta transgressão das garantias e direitos individuais fundamentais. A concessão de poderes judiciais ao Senado para salvar Aécio Neves foi o ápice escandaloso dos exemplos de parcialidade política e partidária de uma Corte Constitucional, só comparável ao arbítrio de tribunais que servem ditaduras. Como juízes de primeiro grau e de tribunais superiores vêm recorrentemente cometendo crimes contra a Constituição e a ordem jurídica do país é preciso lutar para que sejam julgados e punidos. Chega a ser estranho que nem a OAB e nem os grandes juristas tenham proposto isto.

Após as eleições será preciso organizar um movimento Constituinte do povo, que faça emergir uma nova Constituição a partir do poder popular. Uma Constituição fundante da soberania do povo quanto a sua origem popular e quando ao seu resultado. Isto significa que a Constituição terá que ser submetida a um referendum popular, sem o qual não há soberania do povo. No Brasil, o povo nunca foi soberano, pois nenhuma Constituição foi referendada por ele. Uma Constituinte soberana e exclusiva deveria destituir o atual STF e os colegiados de outros tribunais superiores, julgar os magistrados que cometeram crimes contra a Constituição e reorganizar de forma democrática um novo Judiciário, limitando os mandatos dos ministros dos tribunais superiores e encontrando outras formas de suas escolhas. Este é um aspecto fundamental para que o Brasil tenha uma democracia efetiva.

O impedimento de Lula e a noite trevosa

Ao manter Lula preso sem crime e sem prova, sem prova porque sem crime, e ao tentar impedi-lo de concorrer às eleições, juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores estão cometendo um grave crime político, não só contra Lula, mas contra o povo e contra a nação. O povo quer Lula presidente, pois, em sua maioria, o povo o reconhece como o único líder capaz de tirar o país da grave crise, do caos e da desesperança.

O Judiciário será responsável por mergulhar o Brasil numa noite trevosa, de tormentas e de tormentos, mais grave da que já se encontra. O dilaceramento social, econômico, político e moral do país requer um presidente que seja um líder forte, capaz de unificar o povo sob a sua liderança e seu governo. Por mais qualidades e virtudes que tenham alguns dos atuais candidatos, nenhum deles tem a alargada liderança que Lula exerce junto ao povo.  Um governo democraticamente forte só se constitui se tiver ampla legitimidade popular, conferida pelas urnas. Lula é o único capaz de alcançar esta condição. Se o Brasil for impedido de se reencontrar politicamente pela via da legitimidade democrática poderá mergulhar num caos ainda mais profundo ou poderá se tornar prisioneiro de poder da força e do arbítrio.

O povo chegou no limite da suportabilidade das injúrias, dos agravos e da humilhação que sofre por parte das elites e de um Estado que é seu inimigo. Isto precisa servir também de advertência às lideranças progressistas e de esquerda e a muitos deputados que nada representam a não ser esquemas ossificados de poder. Será preciso trabalhar para que surjam novas lideranças, autênticas, dos setores explorados e oprimidos. Será preciso varrer esses deputados acomodados, os burocratas e esses líderes fracos e sem virtudes para os cantos da vida política,  pois fracassaram.

A representação branca, de classe média, universitária, faliu. Pouco ou nada tem a dizer aos pobres, aos negros, às mulheres, aos jovens e ao povo das periferias. Pouco fez para esses abandonados e sem destino. Esses setores precisam se auto-representarem. Estão surgindo novas lideranças e novos candidatos no seio do povo sofrido. Mais dia menos dia forçarão as portas dos esquemas constituídos de poder e arrebentarão as fechaduras trancadas pelos esquemas burocráticos e acomodados do status quo. Se, neste momento, Lula é a única Estrela Polar a indicar o caminho de chegada, essas novas lideranças, devem ser o novo Sal da Terra das novas lutas e de uma nova forma de fazer política. Devem ser a luz a espargir esperanças alicerçadas em movimentos sociais e políticos organizados e fortes, capazes de conter e derrotar as investidas das elites cruéis que querem perpetuar a tragédia do povo brasileiro.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

Comments (2)

  1. Com todo respeito a opinião de Aldo Fornaziero, há ressalvas a fazer na sua análise de conjuntura. Comecemos pela questão politica, se houve ou não um golpe ou autogolpe? A sociedade está dividida nessa questão, entre outras. Algo parecido com relação à justiça: temos ou não um judiciário funcIonando? Na minha visão temos um poder judiciário que funciona conforme a sua missão constitucional, com sessões transmitidas online e até bate-boca entre seus membros, grupos e subgrupos, tudo escancarado. Nunca tivemos nada melhor. Isso é democrático, ainda que decadente. Quanto ao quadro econômico, também nunca esteve melhor. Convenhamos, repito: nada pior que em tempos passados. Lula surfou [no curto prazo] na onda da explosão das commodities, o que durou pouco tempo. O citado presidente não fez nenhuma reforma estrutural, a sua sucessora, dona Dilma, foi derrubada pelos seus pares. Afinal, os petistas e seus companheiros firmaram uma aliança espúria com o que há de mais sórdido no cenário político brasileiro [não me darei ao trabalho de cita-los, afinal, todos os conhecem]. Quando estavam com as panças cheias e a justiça iniciava histórica devassa [sob pressão da sociedade] encontraram na figura do “poste” o alvo mais fácil para um descarte político no interior do próprio grupo de poder e tentativa de salvação. Não nos esqueçamos que o Temer era o vice-presidente que viabilizou a eleição do “poste”. Quanto à proposta de constituinte, quero recordar que cerca de 18 meses antes do início do processo de empichement dona Dilma anunciou e prometeu lutar por uma constituinte; logo silenciou por falta de resposta Interna. O povo que tem um Estado controlado pelas corporações [não são as elites, muito menos “a Globo”], são os nababos da cúpula das federações e confederaçõe sindicais de trabalhadores [do setor público, privado e de adm. Indireta] e também patronal. São nababos dos poderes legislativos e judiciário, funcionários públicos com salários superior aos do presidente da república, milhares de assessores e dirigentes não concursados etc. Uma nação que não consegue entendimento para fazer uma reforma do seu sistema previdenciārio [que explodirá em cinco anos] muito menos conseguirá consenso para uma constituinte que, para ser justa, redestribuiria riqueza, reduziria alguns benefícios, por exemplo: obrigaria aos ricos e aos altos escalões da classe média a pagar escolas de ns, inclusive ppgs, por uma simples razão: o tesouro nacional sequer tem disponibilidades para reajustar as despesas de custeio [inclusive nos hospitais universitários]. Constituinte de verdade deveria ter a força revolucionário de uma Revolução Francesa, da Guerra Civil Americana etc. Não sei o que nos espera logo depois daquela esquina, em poucos anos. Estou muito pessimista, não vejo segmentos nacionais confiáveis, com chance de promover qualquer transformação séria, no curto prazo. O povo foi traído pelos grupos politicos que prometeram “mundos e fundos” e ao final ficaram com os fundos e deixaram o mundo arrazado. Taí avalio que a resenha do prezado do sociologo está demasiadamente performática, embora de boa fé.

  2. Aldo Fornazieri transporta afirmações conhecidas e incontestáveis sobre o país-pesadelo de muitos e paraíso de poucos.

    Transporta, também, (no meu ver inconvenientes) salvacionismos lulistas tipo “Lula é a única Estrela Polar a indicar o caminho de chegada”.

    E transporta, finalmente, esses mesmos erros tornados estereótipos e “paradigmas” (por serem repetidos através dos séculos) a respeito do significado de anarquia. Pior, ao assumir (e, portanto, repetir e fortalecer) a falsa interpretação de anarquia como sinônimo de caos e ruindade ele inventa até uma impossibilidade per se: a do “poder anárquico”.

    Anarquia é o clássico estado (de) sem poder de uns sobre os outros e, portanto, uma sociedade voluntariamente organizada sem os instrumentos e verticalidades de poder. Sem Estado, para começar. E, portanto, também sem todas as “falhas” crônicas do Estado e das sociedades autoritárias. Em outras palavras: Anarquia é antes o antagonismo do flagelo Estado (não só, mas também brasileiro). E muitas sociedades tradicionais como as nossas indígenas e quilombolas a estavam vivendo no seu dia-a-dia desde tempos remotos.

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