Solta-prende de Lula é sintoma da crise institucional aberta no impeachment, por Leonardo Sakamoto

no blog do Sakamoto

A zorra judicial sobre o solta-prende-solta-prende-solta-prende de Lula, neste domingo (8), não é uma distorção ocasional de um sistema que funciona harmônico. Pelo contrário, isso está se tornando o nosso novo ”normal”.

Pode-se discutir a qualidade e a razoabilidade da decisão do desembargador de plantão do Tribunal Regional Federal da 4a Região, Rogério Favreto, que mandou solta-lo. Segundo deputados federais do PT que levaram a demanda à sua análise, o ex-presidente estaria sendo impedido de fazer pré-campanha, entre outras razões. Dada a justificativa, dificilmente se manteria em pé em uma revisão.

Mas o direito tem muitas formas de revogar a decisão de Favreto, todas exaustivamente previstas em lei. O juiz federal Sérgio Moro, tomando o caso como de sua propriedade, adotou comportamento que não se espera de um magistrado federal de primeira instância e, de férias, atuou junto à Polícia Federal e ao TRF4 para o descumprimento da decisão judicial.

”Daqui para frente não tem mais direito. É só força”, afirmou, em meio ao caos deste domingo, a professora Eloisa Machado, da FGV Direito-SP e coordenadora do centro de pesquisa Supremo em Pauta. Abandonou-se o direito e o que houve foi o uso da força para garantir uma interpretação da lei.

O processo de impeachment esgarçou instituições para se consumar e passou por cima de muita coisa. Para seus artífices, era preciso retirar Dilma de lá e, para isso, tudo era possível – de entregar a condução do processo a um notório gangster que transformou a Câmara dos Deputados em seu playground particular e hoje está preso até aceitar uma acusação frágil, baseada naquilo que todos os governos fizeram antes dela, ao invés de esperar pelos desdobramentos do julgamento sobre o Caixa 2 de campanha.

Que seu governo estava ruim, da economia ao respeito aos movimentos sociais, isso é inegável. Mas a partir do momento que você joga fora as regras que construímos por um longo tempo para viver em mínima harmonia, reescrevendo-as diante de suas necessidades particulares e imediatas ou da opinião de seu grupo, isso abre uma ferida. Que não se fecha facilmente. E infecciona.

E torna-se cotidiano. Por exemplo, quando a mesa diretora do Senado Federal desobedeceu a decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello, em dezembro de 2016, afirmando que Renan Calheiros seguiria na Presidência da Casa até que o pleno do Supremo Tribunal Federal julgasse seu afastamento, ela descumpriu decisão judicial. Uma coisa é uma decisão questionável de um ministro, a outra é não cumpri-la.

Como essa, temos um rosário de situações iguais no Brasil pós-impeachment. Outro caso foi quando, em setembro de 2017, o Senado peitou uma decisão do Supremo Tribunal Federal para afastar Aécio Neves. Ao final, o tribunal entrou em um acordo que deixou a palavra final para atos desse tipo nas mãos dos senadores.

Em meio a isso, assistimos outros conflitos entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, mais Ministério Público. E Michel Temer não teve sucesso em sua mediação dessa porque não tem legitimidade para tanto.

A perda de respeito às instituições, que nunca foi lá muito grande por aqui, desce ao nível da rua. Afinal, as lideranças dão o anti-exemplo. Eu que não sou religioso, muito pelo contrário, fiquei consternado ao ver a polícia militar do Rio invadindo uma igreja e, a partir dali, lançar bombas em uma manifestação. Isso não é sociopatia por parte de alguns policiais, mas sim sintoma dessa perda de respeito a instituições.

A imprensa, que já foi melhor ranqueada entre as instituições de respeito do país também anda em baixa. Jornalistas apanham sistematicamente da polícia e de manifestantes. Parte da sociedade não entende um ataque a um jornalista como um ataque à liberdade de expressão, um pilar da democracia. É inegável que há jornalistas que contribuem com isso. Neste domingo, por exemplo, contatos pessoais do desembargador Rogério Favreto foram divulgados nas redes sociais. Como consequência, mais linchamento virtual e mais barbárie.

Se estivéssemos em um ambiente de equilíbrio institucional, um ministro de Estado não gravaria um presidente da República para se proteger de ataques do próprio governo e denunciar desvios de função. Muito menos um outro ministro de Estado usaria seu cargo para tentar liberar um embargo de um prédio, no qual ele tem um apartamento de luxo, imposto pelo órgão de patrimônio histórico.

Como já disse aqui mais de uma vez, o processo de derretimento das instituições e do respeito da sociedade a elas não pode ser freado do dia para a noite após iniciado. Demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos. Ou seja, a dúvida que fica é se a reação em cadeia não é inevitável e nos levará inexoravelmente para o buraco. Leia-se por ”buraco” a eleição, por vias democráticas, de uma figura antidemocrática em 2018 ou a busca por soluções autoritárias por parte de uma população cansada do clima de ”vale tudo” e de ”ninguém é de ninguém”.

Eu, que já havia feito reflexão semelhante por aqui, continuo tendo a impressão de que todo mundo cada vez mais representa a si mesmo e aos interesses do seu grupo, corporativo, econômico, político. O bem do país? Foda-se.

Em tempo: Claro que o principal culpado pela zorra deste domingo não estava em Porto Alegre, onde fica o TRF4, ou Curitiba, onde está a sede da Lava Jato e a carceragem da Polícia Federal, mas na Praça dos Três Poderes, em Brasília.

A polêmica sobre a possibilidade de execução provisória da pena após condenação em segunda instância (permitida por decisão do Supremo, em fevereiro de 2016, mas que vem sendo questionada por uma nova maioria de ministros) não era para ser contaminada pelo julgamento de Lula. A discussão poderia ter sido trazida ao plenário antes e só não ocorreu porque a presidente da corte assim não quis, atendendo a pressões de setores da opinião pública e do Poder Judiciário.

A ministra Cármen Lúcia afirmou que usar o caso de Lula para rediscutir a prisão em segunda instância seria ”apequenar” o Supremo. Mas não seria necessário usar o caso de Lula. Bastaria que ela permitisse o debate em plenário no caso de repercussão geral antes que esse tumulto se formasse. Isso acirrou as posições e ajudou a piorar criar o clima de guerra política.

O Supremo Tribunal Federal, por sua ação e inação, por dar pesos diferentes a crimes semelhantes dependendo do réu, por se calar quando precisávamos que ele reafirmasse a Constituição Federal e por passar por cima da Constituição quando bem quis, também é responsável pelo esgarçamento institucional que vivemos. Discurso e prática deveriam ter sido outros há muito. Temo que, infelizmente, o tempo para prevenir passou e, agora, vai ser remediar o que for possível.

Foto: Luis Moura/Estadão

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