Criminalização do aborto, direitos sexuais e reprodutivos das mulheres estão entre as questões discutidas na entrevista
Anaíra Lobo, Brasil de Fato
“Este silêncio é ensurdecedor”, define Maíra Guedes ao falar sobre aborto. Atriz, professora, escritora e feminista, ela traz importantes reflexões sobre a questão do aborto no Brasil e relata sua experiência com o espetáculo teatral “Somos Todas Clandestinas”. A peça discute a criminalização do aborto, direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, assim como o papel do homem, do Estado e da religião neste debate. 28 de setembro é Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Pela Descriminalização do Aborto. Data importante no contexto brasileiro, já que, aqui, cerca de 850 mil mulheres abortam por ano, estatística acompanhada de outro dado alarmante: os abortos clandestinos são a quarta causa de mortalidade materna no país. Ou seja, apesar da proibição pelo Estado, as mulheres seguem abortando, como sempre fizeram, por inúmeras razões. Mas também, seguem morrendo por se verem obrigadas a recorrer a métodos inseguros, e por não receberem os cuidados necessários quando passam por processos de abortamento decorrente desses métodos. “Porque a vida das mulheres vale tão pouco?”, questiona Maíra. Precisamos falar sobre aborto e, para isso, é preciso falar sobre a vida das mulheres. Confira a entrevista.
Qual é o ponto de partida para o debate sobre aborto?
Maíra Guedes: Para mim, a questão central é: por que é tão importante para o Estado controlar a função reprodutiva das mulheres? Por que é necessário controlar o corpo, a sexualidade e o trabalho das mulheres? A questão do aborto está relacionada à divisão sexual do trabalho, e o controle da função reprodutiva das mulheres vem da necessidade de atrelar o exercer da vida sexual à maternidade. E tudo isso está ligado diretamente ao conservadorismo da burguesia interna, das elites brasileiras, que a depender do tempo permitem ou não a interrupção da gravidez. Por um tempo, foi permitido o aborto para as mulheres negras; em outro período, como na década de 90, esterilizar as mulheres negras e pobres era parte da política. Já em outro momento, quem desejava fazer a ligadura de trompas não podia fazer. Ou seja, a depender do que o Estado queira, a lei varia com relação ao controle do corpo da mulher. As mulheres são responsabilizadas desde o início, desde a concepção, e depois quando se tem um filho, ela é responsável pelo trabalho doméstico e de cuidados. Ou seja, toda essa cadeia do trabalho reprodutivo está sobre os ombros apenas das mulheres. Os homens decidem sobre nossos corpos, mas não se responsabilizam pelo trabalho reprodutivo. Então, o debate da legalização e descriminalização do aborto no Brasil enfrenta, para mim, esse cerne patriarcal e conservador do Estado e de seus principais agentes nos três poderes.
Fica claro que essa questão precisa ser discutida profundamente na nossa sociedade. Esse seria o papel da peça Somos Todas Clandestinas?
M.G.: A ideia desse espetáculo é construir com o teatro uma conversa, um diálogo. A peça é sobre uma mulher contando sobre seu processo de abortamento e refletindo sobre ele. É um convite para as pessoas refletirem sobre o porquê ela precisa ser presa por isso, porque é preciso sofrer tanto por ter abortado. Nesse sentido, eu acho que o teatro possibilita uma mobilização maior, mais interessante e politizada ao mesmo tempo, porque lá é possível que nos escutem, as pessoas estão ali para assistirem alguma coisa e para emitir sua opinião também. E, com o teatro político, a gente tenta, a partir do debate da legalização e descriminalização do aborto, colocar o patriarcado em cena. Com as metodologias de criação dessa vertente, é possível levar para a cena as contradições das relações sociais, as contradições do patriarcado e do capitalismo, falar sobre como esse sistema não serve às mulheres e porquê a forma como a sociedade está organizada hoje não nos beneficia.
E como foi esse processo de criação?
M.G.: Eu acordei um dia pensando: “já posso falar sobre meu aborto?”. Fui pesquisar e descobri que não poderia mais ser presa e então, escrevi um relato sobre meu aborto. Recebi muitas mensagens de mulheres dizendo que tinham passado por processos parecidos. Até então, eu estava com medo de pensar um processo de criação sobre um tema tão delicado, que a gente tem tanta dificuldade de debater com as pessoas. É um tema tão silencioso, porque a gente precisa se proteger, já que podemos ser presas por abortar ou por ajudar uma mulher a abortar. É no submundo que a gente vai encontrar desde remédio até as clínicas clandestinas. Então, tem uma rede de sobrevivência silenciosa, mas também silenciada por não poder falar nisso abertamente. As mulheres que abortam existem no nosso cotidiano. Então criamos uma mulher-história, a partir de relatos, e o resultado foi maravilhoso. Todas as sessões foram lotadas, famílias inteiras indo assistir. A gente fez na rua também, em praças, em escolasf e universidades.
E qual é o próximo passo deste projeto?
M.G.: Estamos socializando a metodologia de criação do espetáculo e dos meios de produção teatrais, a partir de oficinas de teatro feminista popular para que as mulheres criem histórias para discutir o que elas acham interessante e importante. E queremos também voltar a cartaz, continuar gerando debate, desconforto, identificação. Queremos chegar em lugares onde não chegamos para discutir a legalização e descriminalização do aborto, que está ligada diretamente ao enfrentamento a este Estado racista, patriarcal, que a todo tempo afirma que a vida das mulheres não vale nada. Ou vale somente para trabalho doméstico e de cuidados, vale enquanto é possível dominar este corpo, mas quando a gente subverte esta dominação, este corpo deve ser descartado, deve ser maltratado.
Recentemente, na Argentina, assistimos a mobilização das mulheres que resultou na aprovação da legalização do aborto. O que esperar do cenário brasileiro?
M.G.: No Brasil, sinto que precisaremos nos organizar ainda mais para o que virá, para a onda de criminalização que está chegando. Precisamos fortalecer essa rede entre nós, pensar politicamente e construir espaços para além dos atos e mobilizações. A arte ajuda a gente a mobilizar, mas não organiza. Por isso precisamos assumir o desafio de construir o movimento feminista, construir um caminho para debater o direito ao nosso próprio corpo, à nossa própria vida e às nossas escolhas. Porque estamos falando de pessoas, nós mulheres, que vivemos com a violência marcando nossos dias. Quem já tem a consciência formada nesse sentido precisa romper a barreira do medo de dizer o que vive e o que já viveu, porque para um tema tão silencioso e tão silenciado como esse, é preciso escancarar que isso é real. Nesse momento que estamos debatendo os rumos do Brasil, a gente precisa exigir que a luta feminista e suas bandeiras políticas, como a legalização e descriminalização do aborto, sejam parte do projeto de desenvolvimento nacional. Não tem como desenvolver o Brasil, na real, sem acabar com a violência contra as mulheres, por exemplo. O feminismo precisa se tornar uma bandeira política de todo povo.
Edição: Elen Carvalho