Trinta anos esta noite

Como impedir um retrocesso maior com relação aos direitos humanos?

Por Sergio Gardenghi Suiama*, no JOTA

 Se as datas redondas servem para alguma coisa, talvez seja para nos permitir refletir sobre a contingência histórica e o sentido que damos à nossa existência neste planeta. Em outubro de 2018, completaram-se 30 anos da Constituição, outrora chamada “Cidadã”. No mesmo mês, 57 milhões de brasileiros elegeram um presidente da República denunciado por racismo e apologista da tortura para os que não são “humanos direitos”. Uma poderosa bancada de senadores e deputados também foi eleita, com a plataforma do combate implacável ao que chamam de “ideologia de gênero” e “kit gay”. Nas ruas, apoiadores gritam: “Bolsonaro vai matar viado”. Nas mídias sociais, imagens de mamadeiras com formato de pênis lembram os “cidadãos de bem” sobre os perigos da doutrinação gayzista para nossas crianças.

“Não rir, nem lamentar-se, nem odiar, mas compreender“, disse Espinosa. Muita reflexão ainda precisará ser feita para que nós, os defensores dos tais “direitos humanos” (DH), que não apoiamos o pensamento autoritário tornado hegemônico, possamos entender o revés do projeto iluminista de afirmação histórica destes direitos.

A confiança positivista de Norberto Bobbio segundo a qual, com a adesão da quase totalidade dos Estados à Declaração Universal dos Direitos Humanos, a questão sobre o fundamento ético dos DH perdeu interesse(1), foi atropelada pelos fatos. Não se trata, apenas, como dizia o filósofo italiano, de tornar eficazes os direitos já reconhecidos pela comunidade das nações. A própria ideia de Estado-Nação encontra-se em franca decadência e, com ela, o cimento ideológico que buscou garantir a coesão (ou dominação) social entre classes e grupos.

A confiança habermasiana na ética comunicativa e nas regras que ela pressupõe também não nos salva do diálogo de surdos aprofundado nestes tempos de pós-verdade. Talvez porque, como sugere Vladimir Safatle, os processos comunicacionais envolvendo discussões a respeito da natureza e do sentido de valores complexos (como valores morais e políticos) não seguem a mesma dinâmica aplicada aos usos simples da linguagem, isto é, aqueles que fazem apelo a um senso comum intersubjetivamente partilhado de maneira não problemática. Como diz Safatle, o fato de saber como estabelecer uma dinâmica comunicacional para resolver problemas simples, como negociar o preço de um produto, “não significa que posso generalizar tal dinâmica para definir o que entendemos por liberdade ou se a revolução soviética foi ou não um evento decisivo na história contemporânea”(2).

Isto porque, completa ele, “não há um senso comum para o qual podemos nos voltar a fim de construir um acordo a respeito, por exemplo, do que devemos entender por ‘liberdade’. Desde sempre, valores como esse foram conflituais, foram pontos de sedimentação de dissenso e conflito”(3).

O constitucionalismo alemão e autores como Dworkin e Alexy buscaram, de forma engenhosa, desenvolver uma teoria e uma prática que desse conta dessa complexidade valorativa, ao ancorá-la em princípios racionais de integridade do Direito e de critérios de ponderação das normas fundamentais. Juízes, porém, não são Hércules, e não há nada mais distante do mito do herói clássico do que o kafkiano cotidiano forense nacional, feito de burocracia, elitismo e insensibilidade.

A gramática dos DH – ao menos em sua versão iluminista/racional/kantiana – não parece mais, dessa forma, ser capaz de fornecer o cimento do consenso ou da legitimação pelo procedimento que serviram para justificar o funcionamento dos Estados democráticos de direito da segunda metade do século XX.

Pergunta-se, então, se há um consenso possível a ser alcançado e, em caso afirmativo, sobre quais bases. Safatle sustenta não existir tal possibilidade, baseado na percepção de que nossas sociedades são profundamente antagônicas e de que julgamos a partir da adesão a formas de vida(4).

Se assim for, as escolhas que se apresentam em relação aos que não pertencem à mesma comunidade moral daqueles a quem chamamos de “nós” são a indiferença ou a mobilização de afetos como curiosidade, desejo, solidariedade e empatia. Mas também, é claro, afetos como medo, repulsa, insegurança e, no limite, ódio.

O problema que se coloca de forma dramática no momento presente é o aprofundamento dos fossos que separam diferentes identidades e comunidades morais. Muitas seriam as causas para os muros que construímos. Fala-se das “câmaras de eco” estimuladas pela própria lógica de funcionamento empresarial das redes sociais. A crise do Estado-Nação traz consigo o questionamento do nacionalismo e da identidade nacional que serviu para nos unir. Drummond, no poema “Hino Nacional”, publicado em 1934, sintetizou o sentimento atual de muitos: “O Brasil não nos quer! Está farto de nós! Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.

Isto ocorre, também, porque a crise de representação política nas sociedades contemporâneas desloca os problemas reais, de natureza política, econômica e social, para discussões sobre pautas morais. Vimos isso claramente nesta eleição, como de resto no pleitos de 2010 e 2014. Como afirma o sociólogo Manuel Castells:

“Quanto menos controle as pessoas têm sobre o mercado e seu Estado, mais se recolhem numa identidade própria que não possa ser dissolvida pela vertigem dos fluxos globais. Refugiam-se em sua nação, em seu território, em seu deus. Enquanto as elites triunfantes da globalização se proclamam cidadãs do mundo, amplos setores sociais se entrincheiram nos espaços culturais nos quais se reconhecem e nos quais seu valor depende de sua comunidade, e não de sua conta bancária. (…) A identidade política dos cidadãos, construída a partir do Estado, vai sendo substituída por identidades culturais diversas, portadoras de sentido para além da política”.(5)

Porém, para criar algum sentimento de pertencimento, é preciso participar de um grupo codificado, e para isso é preciso responder de “forma homogênea”. Ocorre, contudo, que o que se observa é que “os grupos horizontais, definidos pela partilha de um traço comum, rapidamente foram substituídos por grupos de guerra, muito mais fáceis de constituir, baseados no ódio contra um inimigo comum”, como observa o psicanalista Christian Dunker. Afirma ele: “Um fato importante na nova cultura da indiferença e do ódio é que nossas respostas não são exatamente concentradas no que o outro diz, mas no ambiente, no contexto, no que se ajusta bem à paisagem”, produzindo uma inclinação a “fechar o sentido cedo demais, a compreender o outro rápido demais, a nos alienarmos em sua imagem e assim nos fecharmos para sua palavra”(6).

Em termos morais, este fechamento em grupos, ou “bolhas”, produz muito comumente a suspensão da censura e a percepção de que “quem fala mais ‘alto’ (no sentido de mais escrachado e chulo) e mais ‘baixo’ (no sentido de desleal e intimidador) leva. Para Dunker, essa moral identifica grupo, classe e massa para produzir um tipo de relação duplamente indiferente: “para os de dentro, eu não preciso escutar, porque sei o que eles vão dizer, e, para os de fora, escutar é desnecessário, porque, afinal, eu já sei quem eles são”(7).

Esta descrição relaciona-se, por sua vez, à ideia de “pós-verdade”, definida no dicionário Oxford como o adjetivo “relacionado a, ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes para formar a opinião pública do que apelos à emoção e crenças pessoais” – e sua relação com o funcionamento das sociedades em rede.

Com efeito, como nota Dunker, a principal característica da pós-verdade é que ela demanda uma recusa do outro ou ao menos uma cultura de indiferença que, quando ameaçada, reage com ódio ou violência: “é cada vez mais difícil escutar o outro, assumir a sua perspectiva, refletir, reposicionar-se e fazer convergir diferenças. Isso se aplica tanto ao espaço público, com suas novas e inesperadas conformações digitais, quanto ao espaço das relações amorosas ou amistosas, passando pelas relações laborais e institucionalizadas”(8).

Vivemos, então, presos em nossas próprias bolhas identitárias: morais, sexuais, religiosas, familiares, e nos recusamos a sair delas, já que as ruas, as escolas e até mesmo os museus são lugares potencialmente ameaçadores, povoados por artistas pedófilos, bandidos, moradores de rua, bichas, travestis, ativistas, professores doutrinadores e todos aqueles sobre quem projetamos nossos medos, frustrações, repulsas e, no limite, ódio.

Uma possibilidade, sugerida pelo filósofo pragmatista Richard Rorty, seria concentrar nossas energias no que ele chama de “educação sentimental”, voltada a desenvolver a habilidade crescente de deixar pessoas diferentes suficientemente familiarizadas umas com as outras, de modo que elas se sintam menos tentadas a pensar que aquelas que são diferentes delas são apenas semi-humanas”(9). Nesta possibilidade, o recurso a princípios éticos abstratos cederia lugar a argumentos e narrativas voltados a ampliar os laços de lealdade para com aqueles não inicialmente identificados como pertencentes à mesma comunidade moral. Um filme, por exemplo, como Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005), sobre a opressão sofrida por um casal de homossexuais na década de 1960, seria, nessa perspectiva, mais eficaz para o avanço dos direitos dos gays do que um tratado kantiano sobre a igualdade.

Escutar, amplificar, promover, garantir e estimular as narrativas individuais e coletivas dos grupos mais vulnerabilizados, assim como a existência de espaços públicos de diálogo são, nesta perspectiva, estratégias fundamentais para impedir um retrocesso maior com relação aos direitos humanos. A condição para que isso aconteça é que as pessoas possam dedicar algum tempo para ouvir. Porém, como diz Rorty, quanto mais difíceis estiverem as coisas, mais medo as pessoas sentirão, e de menos tempo ou forças elas disporão para pensar como seria ser igual àqueles outros com os quais não se identificam imediatamente(10). Uma coisa, todavia, parece certa: não será com “memes”, “lacrações” e interações exclusivas nas bolhas sociais cibernéticas que conseguiremos evitar estrago maior para com os direitos humanos.

Notas:

1 BOBBIO, Norberto. “Sobre o fundamento dos direitos humanos”. In A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, Elsever, 2004, pp. 12-16.

2 SAFATLE, Vladimir. “É racional parar de argumentar”. In DUNKER, Christian e outros, Ética e pós-verdade. Porto Alegre, Dublinense, 2017, pp. 129-130.

3 Idem, p. 130.

4 Idem, p. 133.

5 CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro, Zahar, 2018, pp. 19-20.

6 DUNKER, Christian. “Subjetividade em tempos de pós-verdade”. In DUNKER, Christian e outros, Ética e pós-verdade, citado, p. 35.

7 Idem, p. 36.

8 Idem, p. 28.

9 RORTY, “Direitos humanos, racionalidade e sentimentalidade”. In: Verdade e progresso, Barueri, Manoli, 2005, p. 211. Cf. também, do mesmo autor, “A Justiça como uma lealdade maior”. In Filosofia como política cultural. São Paulo, Martins Fontes, 2009, pp. 81-103.

10 RORTY, Richard. “Direitos humanos, racionalidade e sentimentalidade”, citado, p. 216.

*SERGIO GARDENGHI SUIAMA – Procurador da República no Rio de Janeiro. Mestre e Human Rights Fellow da Universidade de Columbia (NY).

Imagem: Promulgação da Constituição de 1988 em Brasília. Ao centro, presidindo a sessão da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães – Crédito: Arquivo/Agência Brasil

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