“Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais”
(Caetano Veloso)
As revelações em conta-gotas – em doses maiores causaria mal à saúde – trazidas pela reportagem do site The Intercept: “chats privados revelam colaboração proibida de Sergio Moro com Deltan Dallagnol na Lava Jato”, está agitando a comunidade jurídica e estarrecendo a sociedade.
As conversas mantidas por aqueles que se colocavam acima da lei e como paladinos da justiça – independente da fonte – revelam relação espúria e promíscua entre juiz e uma das partes (MPF). Essa relação que vem causando perplexidade nos juristas comprometidos com um processo penal democrático fere um dos princípios basilares do processo e do exercício da atividade jurisdicional: a imparcialidade do juiz.
A imparcialidade do juiz, adverte Gustavo Badaró, “resta evidentemente comprometida quando o magistrado realiza pré-juízos ou pré-conceitos sobre o fato objeto do julgamento”. Invocando a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), o eminente processualista observa que no julgamento do Caso Piersack vs. Bélgica, o TEDH decidiu que no tocante ao direito a um tribunal imparcial, “todo juiz em relação ao qual possa haver razões legitimas para duvidar de sua imparcialidade deve abster-se de julgar o processo. O que está em jogo é a confiança que os tribunais devem inspirar nos cidadãos em uma sociedade democrática”. [2]
Como bem assevera Geraldo Prado, “uma atividade decisionista do juiz, baseada na sua credibilidade social, mas intangível pelas partes, na medida em que se apresenta como exercício da sua potestade, máxima representação da vontade pessoal, não é legítima, mesmo quando parecer mais eficiente porque atende às pautas de repressão penal”.[3]
Os diálogos revelados pelo Intercept desnudam o herói, demonstram que o ex-juiz e hoje ministro da Justiça agiu como cúmplice dos Agentes da famigerada Força-Tarefa da Lava-Jato. Ao longo de determinados processos, réus foram tratados como inimigos (não-cidadãos), sem direitos e garantias. A perversa lógica de que os fins justificam os meios, em nome de um fantasmagórico combate a corrupção, corroeu os alicerces de uma justiça que deveria ser cega, independente e imparcial. Prevaleceu o autoritarismo.
A ausência de limites, observa Rubens Casara, que caracteriza a sociedade pós-democrática atinge a todos. “Pense-se nos juízes, elevados à condição de protagonistas da política brasileira: ao abandonarem a função de efetuar julgamentos direcionados à concretização dos direitos e garantias fundamentais, tornaram-se, para se ajustar à racionalidade neoliberal, meros gestores de interesses políticos e/ou econômicos (…) Passou-se a julgar sem os limites típicos do Estado Democrático de Direito, sem observância as regras do jogo que distinguem as democracias dos regimes totalitários”.[4]
Ao mandarem todos os limites impostos pelo Estado de direito as favas, tergiversando com princípios constitucionais, os Agentes da Lava-Jato se colocaram acima da lei, do direito e da própria sociedade.
Aconteça o que for, os fatos revelados já causaram um dano irreparável. Themis está corada de vergonha.
Não se sabe se as provas que em tese incriminam Agentes da Lava-Jato poderão ser utilizadas para tais fins, mas é certo, em nome do princípio da proporcionalidade da prova “pro reo”[5], que, ainda que eventualmente ilícita, a prova poderá e deverá ser admitida e valorada para, no mínimo, anular as condenações que decorreram da parcialidade do juiz e da sua espúria relação com uma das partes.
Por fim, a sociedade precisa, definitivamente, entender que não existem salvadores da pátria e que fora do Estado Democrático de Direito só há lugar para barbárie.
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Notas e Referências:
[1] Título inspirado na obra de Rubens Casara (CASARA, Rubens R. R. Sociedade sem lei: pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018).
[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 45.
[3] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 42.
[4] CASARA, Rubens R. R. Sociedade sem lei: pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, p. 29.
[5] Neste sentido GRINOVER, Ada Pellegrini, SCARANCE FERNANDES, Antonio e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 118. LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018 p. 398, entre outros.
Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Doutor em Ciências Penais pela UFMG.