A Amazônia está à venda: quem der menos leva

Leis federais e estaduais vêm sofrendo mudanças que estimulam o roubo de florestas públicas, que são desmatadas para assegurar sua posterior privatização

Por Brenda Brito e Jeferson Almeida, no El País

O desmatamento na Amazônia continua crescendo e afasta cada vez mais a chance de o país cumprir a meta de redução prevista para 2020. Pelos compromissos assumidos em 2010, o Governo Federal definiu que chegaria no próximo ano com uma taxa anual de 3.900 km2 de perda da cobertura florestal na Amazônia. No entanto, em 2018 esse índice chegou a 7.900 km2 (o maior da década) e os sistemas de alerta já indicam aumento de 20% do desmatamento entre agosto de 2018 e abril de 2019. Esses números mostram que Brasil continua destruindo um de seus maiores patrimônios sem gerar melhoria de qualidade de vida na região, que continua com indicadores socioeconômicos abaixo da média nacional.

Esse processo de devastação ocorre pelo enfraquecimento de políticas públicas de comando e controle do desmatamento, pela ausência de uma estratégia para desenvolvimento da região que valorize a floresta em pé e pela existência de leis federais e estaduais que estimulam o roubo de florestas públicas, que são desmatadas para assegurar sua posterior privatização. De fato, essas regras fundiárias que incentivam o desmatamento estão sofrendo uma leva de alterações preocupantes desde 2017, que tem passado despercebida por boa parte da sociedade brasileira. Em todas essas mudanças, a justificativa é de modernização da regularização fundiária e eliminação de burocracia. Porém, na prática as novas leis acabam favorecendo a grilagem.

A primeira grande alteração na legislação fundiária, que renovou os estímulos e benefícios à grilagem de terras na Amazônia, ocorreu em 2017, quando o Congresso Nacional aprovou a Medida Provisória nº 759/2016. Dentre os benefícios dessa nova regra estão a ampliação da área passível de titulação para 2.500 hectares (mil hectares a mais que a norma anterior); a anistia a quem invadiu terra pública entre 2005 e 2011, bem como a definição de valores muito abaixo do mercado na privatização dessas áreas.

Os prejuízos para a sociedade trazidos por essa mudança de regras começam a ser melhor conhecidos agora. Um estudo do Imazon demonstrou que o governo já alocou para privatização uma área de 27,8 milhões de hectares na Amazônia. Se toda essa área for vendida pelas regras atuais, a sociedade brasileira poderá custear subsídios na ordem de 118 bilhões de reais, que representam a diferença entre o valor de mercado das terras e o valor cobrado pelo governo de acordo como a lei. Isso significa que os brasileiros custearão o roubo de terras públicas. Além disso, a privatização dessa área pode levar a um desmatamento adicional de 16.000 km2 até 2027, com emissões de gases do efeito estufa na ordem de 6,5 megatoneladas de CO2, que equivale a 15 anos de emissões do setor de energia no Brasil.

Após a alteração da lei federal, os estados da Amazônia também iniciaram uma nova onda de mudanças nas suas regras fundiárias que adota a mesma direção: legaliza o que era ilegal e estimula mais roubo de terra pública no futuro. A existência de leis nas diferentes esferas de governo sobre o tema ocorre porque a lei federal se aplica apenas às terras da União e cada estado tem o poder de estabelecer suas regras para tratar das áreas estaduais. Estimativas do Imazon apontam 33% da Amazônia Legal não possuem destinação fundiária ou não tem informação disponível publicamente a respeito. Desse total, a maior parte pertence aos estados (75%). Por isso, as regras estaduais importam até mais que as regras federais para decidir a destinação de uma enorme área de florestas públicas não destinadas.

O primeiro a alterar a lei foi o Amapá com um projeto de lei que tramitou em 2017 em regime de urgência por 50 dias na Assembleia Estadual, contando com apenas uma audiência pública para discutir o projeto. Publicada em 2018, a nova lei estadual é quase uma cópia da federal, adotando os mesmos problemas, como os valores irrisórios para a venda de terras. A lei estadual permite inclusive que o estado use a mesma planilha de preços de terra elaborada pelo Incra.

Continuando a leva de mudanças, em 2019 o Mato Grosso alterou seu código de terras de 1977, que era um dos mais antigos em vigência na Amazônia. A tramitação ocorreu em 133 dias, já excluído o período de recesso da Assembleia Legislativa, e não há registro de audiência pública. A mudança foi parcial e retirou algumas exigências que eram cumpridas apenas no papel, além de fazer alguns ajustes. Por exemplo, a lei anterior exigia que todas as áreas estaduais fossem tituladas por meio de um processo de licitação. De fato, o órgão de terra publicava editais de licitação em diário oficial, mas na prática só recebia um lance: o do ocupante atual do imóvel. Outra mudança, essa positiva, foi estabelecer cláusulas que devem ser cumpridas pelos beneficiários dos títulos de terra para manterem o imóvel, como respeito à legislação ambiental e impedimento de trabalho análogo à escravidão. A falha em cumprir essas cláusulas em até 5 anos após a titulação enseja a retomada do imóvel pelo estado.

Porém, a lei estadual do Mato Grosso em vigor também favorece a grilagem de terras públicas de três formas. Primeiro, não institui um marco temporal para início de ocupações que podem ser regularizadas. Ou seja, uma área pública ocupada após a publicação da lei poderá ser regularizada se cumprir os requisitos legais, o que incentiva a continuidade das ocupações ilegais de terra pública no estado. Segundo, não define um tempo mínimo de ocupação da área para dar direito à regularização nos casos de venda, que abrangem áreas de até 2.500 hectares. Assim, alguém que ocupar uma área pública por apenas 1 ano poderia solicitar a regularização. Terceiro, flexibiliza os requisitos de regularização ao permitir a titulação para quem não ocupa o imóvel diretamente e não pratica cultura efetiva na área. A combinação desses três fatores resulta na possibilidade de regularizar aqueles que passarem a controlar uma área pública estadual a qualquer tempo, mesmo sem implementar atividades ou residir na área, o que são características típicas da especulação de terras.

Mais recentemente, a leva de afrouxamento das regras fundiárias chegou no Pará, estado campeão de conflitos agrários na Amazônia nos últimos quinze anos. Numa tramitação de apenas 33 dias e sem audiência pública, a Assembleia Legislativa aprovou em 11 de junho uma nova lei de regularização fundiária nas terras estaduais, que aguarda sanção do governador. O projeto foi encaminhado pelo próprio governo estadual sob justificativa de que as novas regras trarão a modernização da regularização fundiária no estado. No entanto, há vários aspectos controversos no texto aprovado.

É essencial que a sociedade se manifeste pela criação de grupos permanentes de acompanhamento da regularização fundiária pelos órgãos de terra

Por exemplo, se sancionado, o projeto cria um novo conceito de legítimo ocupante de terra pública, que inclui pessoas que possuem outros imóveis e que não precisam morar na terra ocupada ou exercer qualquer atividade agrária na área, desde que pretendam fazê-lo no futuro. Ou seja, assim como na lei do Mato Grosso, trata-se do grileiro que especula terra para lucrar com a venda posterior do imóvel. O texto também elimina uma previsão legal que exigia cobrança de preços de mercado na venda de terras públicas. Mesmo com essa regra até então em vigor, um estudo do Imazon estimou que o governo do Pará deixaria de arrecadar R$ 9 bilhões na venda de terras, por praticar preços abaixo do mercado. Com a retirada dessa exigência, o órgão de terra não poderá ser contestado para aplicar valores de mercado.

Outro aspecto que merecia um amplo debate público no Pará é a possibilidade de privatização de florestas do estado. O texto aprovado na Assembleia Estadual considera que áreas públicas ocupadas ilegalmente com grande proporção de florestas conservadas estariam aptas à venda. Porém, ao admitir essa possibilidade, o projeto acabará estimulando a privatização das florestas públicas e entrará em conflito com o instrumento de concessão florestal previsto na Lei Federal nº 11.284/2006, que é aplicada pelo governo estadual.

Essa decisão sobre o destino das florestas paraenses necessita de uma discussão mais ampla e técnica, já que a privatização dessas áreas vai permitir que parte seja desmatada legalmente, além do risco de avanço do desmatamento ilegal. O Pará é o maior emissor de gases do efeito estufa entre os estados brasileiros, especialmente por conta do desmatamento de suas florestas. Mas até o momento o estado não possui uma política de mitigação e adaptação às mudanças do clima e o Fórum Paraense de Mudanças Climáticas aguarda há mais de dois meses a assinatura pelo Governador de um novo decreto para voltar a se reunir. Ou seja, a criação de um grupo de discussão de mudanças do clima, sem qualquer poder decisório, está aguardando há mais tempo que a tramitação e aprovação um projeto de lei que pode ter um impacto direto nas florestas públicas estaduais, incluindo desmatamento e emissões associadas de gases do efeito estufa.

Os casos de alterações das leis com trâmite acelerado e sem suficiente debate público chamam atenção para a baixa transparência das Assembleias Legislativas dos estados. Uma semana após a aprovar o PL no mesmo dia em primeiro e segundo turno, a Assembleia Legislativa do Pará ainda exibia uma notícia em seu sítio eletrônico de que apenas a votação de primeiro turno havia ocorrido. E o texto aprovado não estava disponível para consulta. A transparência também é deficiente nos órgãos estaduais de terra da Amazônia. Em média, apenas 22% das informações de divulgação obrigatória estavam disponíveis nos sítios eletrônicos destes institutos até 2017.

Esses exemplos mostram a dificuldade de fazer valer o interesse da sociedade ao invés de privilegiar interesses privados quando se discute terra e floresta na Amazônia. Governos federal e estaduais priorizam a venda do patrimônio da sociedade, replicando um modelo que historicamente gera desmatamento, conflitos e não traz progresso social à população da região. Diante da baixa transparência no destino das áreas públicas, é essencial que a sociedade se manifeste pela criação de grupos permanentes de acompanhamento da regularização fundiária pelos órgãos de terra. Do contrário, a tendência será de privatização, mas pelas regras atuais, quem chegar antes e pagar menos ficará com a terra.

Brenda Brito é doutora em ciência do direito pela Universidade Stanford, pesquisadora associada ao Imazon e membro do Movimento Agora!.

Jeferson Almeida é advogado e trainee do Imazon.

Fronteira entre uma fazenda, à esquerda, e o Território Indígena Suruí. Foto: Victor Moriyama

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