Na Sur/Conectas
Este artigo expõe de que forma mulheres negras têm sido criminalmente punidas no Brasil. Resgata-se que desde o período da escravidão no Brasil, mulheres negras eram punidas por meio do estupro sistemático. Contemporaneamente, quando mulheres são punidas criminalmente, a elas é reservado o lugar de anormalidade, desequilíbrio emocional, desestabilidade moral, levando a diagnósticos “incorrigíveis” como loucura e histeria, corroborando inclusive para sustentar uma esfera privada de punição por redes religiosas e estabelecimentos psiquiátricos. Constata-se que 62% das mulheres está confinada pela tipificação de associação ou tráfico. Este dado leva o artigo a questionar por fim a precariedade da guerra às drogas e levantar a necessidade de potencializar a voz das mulheres em situação prisional como uma pauta emergente de direitos humanos.
Desde a primeira lei criminal do Brasil, datada de 1830, já se estabelecia um regime diferenciado de penalização entre brancos e negros. Diversos documentos históricos comprovam penalidades maiores aos negros, sendo esses escravizados ou libertos, além de uma série de códigos e leis que agudizavam esta seletividade.1 Nas sociedades contemporâneas, corpos de cor são tidos como corpos matáveis e descartáveis, corpos a serem controlados. O discurso lombrosiano2 de que as populações pobres e pretas têm tendências delinquentes segue presente na maneira de construir a figura do criminoso na sociedade. A este ser criminalizado, desumanizado, desalmado, resta a punição e a penitência. As instituições penitenciárias – “Purgatórios de purificação” – seguem na sua engrenagem ideologias de violência e racismo: se antes utilizavam-se de fogo, suplícios e calabouços, hoje utilizam a tortura psicológica e física, a ponto dos versos do poeta de “Sobrevivendo no Inferno”3 servirem de metáfora.
O Sistema de Justiça Criminal é um exemplo contundente da íntima atuação entre precariedade e necropolítica. O conceito de necropolítica, formulado pelo sociólogo camaronês Achille Mbembe em diálogo com a obra de Michel Foucault e o conceito de “biopolítica”,4 trata sobre o poder de decidir quem deve viver e quem deve morrer em uma administração racionalizada da morte. É um poder de determinação sobre a vida e a morte ao desprover o status político dos sujeitos. Nesse sentido, a precariedade à qual vidas negras são submetidas está diretamente ligada a um projeto de controle e extermínio. Precarizar vidas negras significa, mais do que prendê-las à ideia de corpo-objeto, operar um projeto político desmotivador, desmobilizador, de insegurança e vulnerabilidade constante
Com a Primeira República e as reformas nas leis criminais no Brasil, a criminalização da população negra atingiu novos níveis, como por meio do Decreto-Lei nº 3.688/41 que traz em seu artigo 59 o tipo penal de “vadiagem”, o qual continuou sendo aplicado fundamentalmente contra negros e pobres até poucos anos atrás.
O proibicionismo, apesar de pensarmos ser uma invenção norte-americana, tem no Brasil sua vanguarda e terreno mais fértil. Em 1830, o Código de Costumes da Cidade do Rio de Janeiro tinha uma lei municipal que proibia a venda e o uso do “pito do pango”5, punia vendedores com uma determinada quantia em dinheiro, mas aprisionava usuários, sendo que o uso era realizado largamente entre escravizados.
Em A História da Maconha no Brasil,6 revela-se que a cannabis chegou ao país trazida por africanos escravizados. O uso do “pito do pango” era tido como hábito e não dispendia atenção das autoridades públicas, senão dos senhores de escravos que consideravam o uso realizado pelos escravizados como o motivo da recusa ao trabalho forçado e das rebeliões, associando-o à “vagabundagem”. A participação do Brasil na Liga das Nações de 1925, em atuação com o Egito, foi vanguardista no entendimento do uso de cannabis como caso de proibição e política. O médico Pernambucano Filho afirmava que o “pito do pango” era mais perigoso que outras substâncias largamente utilizadas no período, por considerar que este seria um atraso ao país e à construção eugenista da figura do negro como ser de “natureza criminosa”. No mesmo período e reforçando a criminalização, o psiquiatra Rodrigues Dória chegou a afirmar que a maconha era como uma vingança dos negros contra os brancos pela escravização.7 Não é à toa, portanto, que, neste contexto, a guerra às drogas seja a narrativa que acelera e aprofunda o superencarceramento no Brasil.
1. Escravidão e prisão no Brasil
Angela Davis – mulher negra, intelectual e ativista radical, como ela mesma se denomina – afirma que, quando as mulheres negras se movimentam, toda a estrutura da sociedade se movimenta com elas.8 Essa afirmação não parte do abstrato. Mulheres negras compõem a base da pirâmide sociorracial e mulheres de cor lideram em números a parcela mais vulnerável e precária no mundo. Este não é um dado do acaso. Em O Que é Racismo Estrutural?,9 Silvio Almeida afirma ser impossível tratarmos do capitalismo se não analisarmos o fenômeno do colonialismo e, portanto, do racismo. Neste sentido, significa dizer que o racismo é um elemento estruturador de todas as relações sociais e instituições, compondo uma pirâmide de desigualdades estabelecidas por hierarquias raciais. Assim, mulheres negras estão na base da pirâmide de desigualdades descrita por Almeida. Pessoas comprometidas com a transformação da sociedade devem, urgentemente, lutar ao lado dessas mulheres, garantindo que suas vozes e pensamentos sejam protagonistas e ecoem na luta política.
A construção do Brasil foi sustentada na escravização de populações sequestradas do continente africano. O processo de colonização brasileiro, assim como em outros países das Américas, utilizou-se da mão de obra escravizada com foco na extração e exportação de recursos naturais. Foi um processo, portanto, baseado na violência. E, ao pensarmos em violência, é importante que não nos prendamos apenas à ideia de violência física, mas em um processo que estrutura o ordenamento e funcionamento sociopolítico do país. Contraditoriamente, nosso país vive sob os mitos da democracia racial e de uma nação pacífica, colocando-nos no ranking de países que menos têm percepção sobre sua realidade.10 Ao mesmo tempo em que o brasileiro afirma-se como um povo alegre, receptivo e amável, estatísticas apontam que, por ano, mais de 30 mil jovens são assassinados no país fruto da violência urbana e cotidiana – sendo que, no quadro geral, temos mais de 60 mil mortes registradas por ano.
A ideologia predominante durante o período colonial era de que os povos africanos deveriam ser escravizados, como um sofrimento e uma punição divina aos “desalmados”. O trabalho era uma atividade disciplinadora e civilizatória aos “selvagens”. Os castigos e as punições eram práticas incentivadas para evitar desobediência. As punições públicas visavam produzir exemplos pelo corpo marcado, isto é: através do medo, garantir autoridade. Essa hierarquização pela cor, cultura e territórios ainda persiste nos dias atuais. Contudo, passou por diversas transformações e ganhou, inclusive, no século XIX, uma roupagem científica pela eugenia.
As teorias eugenistas ganham força no Brasil entre médicos, engenheiros, psiquiatras e literatos em um momento de tentativa de modernização do país. Nesse sentido, ideias eugenistas de que as capacidades, ou incapacidades, eram hereditárias e naturais, incorporam-se em formulações de desenvolvimento nacional. Com isso, negros, deficientes, asiáticos, indígenas eram classificados como inferiores, decorrendo disso a elaboração de políticas visando o embranquecimento e o predomínio da raça branca. A criminalização deveria, portanto, ser encarada como uma política que passava pelo embranquecimento, pelo incentivo à imigração, por tentativa de “sanear” a população, assim como pela intensificação da repressão e controle da população negra. Assim se constrói o discurso do negro como inimigo, figura “naturalmente” criminosa, a qual terá no cárcere o aparato para seu controle.
2. Políticas de encarceramento de mulheres negras no Brasil
Apesar de haver um número muito menor de mulheres em situação prisional em relação aos homens, entre 2006 e 2014, a população feminina nos presídios aumentou em 567,4%, ao passo que a média de aumento da população masculina foi de 220% no mesmo período.11 As mulheres no cárcere sofrem dupla invisibilidade: por serem mulheres e por estarem aprisionadas, o que aprofunda a precarização de suas vidas.
Em diversos debates e artigos sobre a temática do cárcere, o uso de dados muitas vezes causa incômodo, considerando a necessidade de humanização das pessoas em situação prisional, algo difícil quando nos fixamos em números. Contudo, é inegável a importância do levantamento de dados para conseguirmos visualizar o panorama assustador dos presídios brasileiros e de como funcionam as engrenagens do sistema de Justiça Criminal no país. Neste sentido, recorro aos dados não como reprodutora da desumanização, mas fazendo uso de um recurso útil para dimensionar a importância de um diagnóstico, como também para buscar alternativas a uma saída punitiva que poucos resultados positivos têm mostrado na sociedade.
O Brasil é o 4o país que mais encarcera mulheres no mundo. Cerca de 50% das mulheres encarceradas têm entre 18 e 29 anos e 67% são negras,12 mostrando que o foco punitivo é a juventude negra. Segundo Angela Davis, os sistemas punitivos têm sido marcados pela masculinidade porque refletem a estrutura legal, política e econômica negada às mulheres. O que significa dizer que, sendo o espaço doméstico e privado sua determinação de vida, as punições das mulheres ocorriam neste domínio. Estupros foram utilizados, exponencialmente, como medida punitiva contra mulheres negras escravizadas. Ainda vemos relatos de “estupros corretivos”, que são a ideia de que pela punição e pelo sofrimento se alcançaria alguma “salvação”.
Estas punições com um foco na sexualidade feminina darão o arcabouço ao discurso e visão hipersexualizada das mulheres negras, principalmente no estabelecimento de relações desiguais e de poder. São relações perversas que se estabelecem criando conexão entre criminalidade e sexualidade, aprofundando vulnerabilidades. Como aponta Davis, é possível estabelecer uma relação entre a dimensão doméstica da punição e a violência doméstica nos tempos atuais pelos sentidos de propriedade e de “não cidadãs” que se conferem às mulheres.
Por serem considerados cidadãos, a criminalidade e a punição aos homens se previa na esfera pública como se, estabelecendo-se uma pena, esses homens pudessem ser reintegrados à sociedade. Ou seja, ser considerado cidadão posicionava homens como sujeitos no contrato social, respondendo, portanto, publicamente às quebras destes acordos sociais. Já com as mulheres, por não serem consideradas sujeitas de direitos, o âmbito da moralidade ganha força na relação entre criminalidade e punição. Para elas, portanto, é construído o discurso da anormalidade, desequilíbrio emocional, desestabilidade moral, levando a diagnósticos “incorrigíveis” como loucura e histeria. Com isso, por muito tempo, foram redes religiosas e estabelecimentos psiquiátricos que controlavam a esfera punitiva em relação às mulheres.
O que quero dizer é que o entendimento de crime é uma construção social e as sanções a este crime são estabelecidas por este contrato social que mediará a vida em sociedade.13 Pela esfera moral, os sistemas punitivos reproduziam a lógica de que mulheres, por serem incorrigíveis, deveriam passar por espaços de domesticação. A perspectiva de “cura” e correção adentrava o campo da criminologia, ganhando roupagem científica.
A partir de demandas de setores dos Feminismos, ganha força um discurso de “separação com igualdade” nos sistemas punitivos. Com isso, cárceres femininos passam a ser implementados como forma de atendimento a esta demanda. Contudo, a igualdade garantida não trouxe melhorias, senão uma igualdade de repressão e agravamento da punição em relação às mulheres por conta do juízo moral ao qual foram submetidas.
As necessidades de mulheres não são as mesmas necessidades dos homens no cárcere e o discurso de suposta igualdade teve como consequência a intensificação do contexto de violência que estas mulheres passam e o contínuo desrespeito aos Direitos Humanos nas unidades prisionais. Um exemplo mais urgente é a falta de absorventes, fazendo com que várias tenham que recorrer a práticas insalubres, como o uso de miolo de pão em seus ciclos menstruais. Outro exemplo é do uso de papel higiênico: a disponibilização da mesma quantidade do material quando é sabido que mulheres utilizam e necessitam mais do sanitário que homens, obriga-as a se submeterem a situações aviltantes.
Por isso, gênero é tão importante para pensarmos a punição. Várias são as formas de violência que são aprofundadas no confinamento: negligência médica, negação de acesso ao controle reprodutivo e a remédios são alguns dos exemplos de desrespeito e violências às quais são submetidas as mulheres encarceradas. No campo da saúde, há mais chances de se contrair HIV/AIDS no sistema prisional, por exemplo.
3. Guerra às drogas como guerra às mulheres
A maioria de mulheres presas (62%) está confinada pela tipificação de associação ou tráfico.14 Se pensarmos o tráfico como uma indústria, a estrutura reflete a do mercado formal de trabalho. Ou seja, cabe às mulheres posições mais vulneráveis e precarizadas, com diferenças salariais e de espaço de direção. Pensando o patriarcado, se adicionarmos o quesito cor – relembrando a interseccionalidade citada anteriormente –, as mulheres negras sofrem dupla penalização, a qual muitas vezes terá o componente moral nas decisões dos juízes, tanto para o cárcere como para o afastamento familiar. É sabido que as mulheres enfrentam, mais do que os homens, o abandono após o cárcere, seja afetivo, seja parental. E quando estes vínculos são mantidos, também são garantidos por outras mulheres (mães, irmãs, filhas, companheiras etc.).15 Contudo, ao analisarmos os números, mais uma vez, percebemos as fortes consequências sociais para isso: mais de 40% delas estavam desempregadas quando foram presas e a maioria delas é chefe de suas famílias. A esmagadora maioria delas (72%) não chegou a concluir o Ensino Médio e, apesar da Lei de Execução Penal determinar que é dever do Estado fornecer assistência educacional, tanto instrução escolar quanto profissional, apenas 25,3% das mulheres em situação prisional estão envolvidas em atividades educacionais formais.
A narrativa de “guerra às drogas” é o pretexto de uma ação ideológica articulada com o intuito de militarizar e atender a especulação imobiliária de territórios e exterminar subjetividades e vidas, já que não se “guerreia” contra substâncias. É uma guerra que ocorre cotidianamente em diversos territórios negros e periféricos e atua apenas na ponta da economia das drogas. O mercado de drogas mantido na ilegalidade não nos permite visualizar todas as suas ramificações e extensões, além de colocar em risco, inclusive, instituições, já que se move e se mantém corrompendo estruturas.
Ao passo que não é politicamente correto afirmar-se como racista, inclusive por racismo ser tipificado como crime, não é preciso esconder preconceitos em relação a criminosos. A figura do criminoso abre espaço para todo tipo de discriminação e reprovação com total respaldo social para isso. No caso das mulheres, é muito comum o relato de buscas e “apreensões”, invasões sem mandado de busca em seus domicílios; tortura e humilhação para obter informações que sequer elas têm conhecimento; relatos de prisão pela proximidade com algum familiar envolvido com o tráfico; prisões quando transportando pequenas quantidades de drogas, sendo que muitas são intimidadas a fazer isso. A imensa maioria dessas mulheres é ré primária, ou seja, jamais teve passagem pelos registros policiais e, quando estabelece algum tipo de relação com o tráfico, este processo se dá na base da cadeia econômica do tráfico, ao que conclui a advogada e pesquisadora Luciana Boiteux que suas prisões não têm nenhum impacto na dinâmica e funcionamento da economia das drogas.
A prisão provisória é uma regra no sistema de justiça criminal, sendo 54,6% dos processos transcorridos com a prisão provisória decretada. Um dado preocupante e que demonstra as falhas do sistema é que em 46% dos casos houve troca de defensores, em 75,4% houve troca de promotores e em 73,5% houve troca de juízes. Isso significa maiores dificuldades ao acusado e distorções nas penas, uma vez que defensores não terão tempo para conhecer o processo com a qualidade necessária, e promotores e juízes, sendo decisivos na definição da pena, também não terão condições desejáveis para o entendimento do caso e, portanto, decisão adequada.
4. Conclusão: pelo fim das prisões como a conhecemos
Angela Davis diz em uma frase contundente que “as prisões são os depósitos dos detritos do capitalismo contemporâneo”16. Ou seja, constitutivas deste processo de precarização de vidas negras, de mortes simbólicas dessas vidas precárias, as prisões servem ao projeto genocida do capitalismo.
Na medida em que os dados demonstram as vulnerabilidades sociais das pessoas encarceradas, fica evidente que foram essas exposições e ausências que levaram elas à criminalidade e à punição e não o contrário. Portanto, é de nossa responsabilidade pensar em alternativas, vislumbrar futuros harmônicos e de igualdade radical. Ou seja, quando vemos um dado que aponta que 50% das pessoas em situação prisional não têm o Ensino Fundamental completo17, podemos entender que a precariedade da vida dessas pessoas e as condições de vulnerabilidade às quais elas foram expostas é que levaram a este cenário. Este indicador deveria ajudar na formulação de políticas educacionais eficientes e verdadeiramente inclusivas. Mas o que temos visto é o contrário.
Prisões seguem sendo como únicas saídas à solução de conflitos e à criminalização de questões sociais. São produtos de negligência e de políticas que tratam as diferenças como desigualdades. As prisões são, ainda, este aparato que reforça a precariedade das vidas negras, inseridas na ideologia racista que visa controle, punição e extermínio de corpos negros em todas as esferas de organização e das relações de nossa sociedade.
Estes temas envolvem diretamente a questão das liberdades e, por isso, são tão importantes para as mulheres negras como pautas fundamentais. Uma vez que as mulheres compõem a base da pirâmide, mudar a vida de mulheres negras trará mudanças radicais e positivas para toda a sociedade.
O pensamento feminista negro é um interessante e, a meu ver, central ponto de partida para vislumbrarmos um futuro com diversidade. Nesse sentido, é importante não enxergar este pensamento como vertente ou aditivo de um suposto feminismo “universal”. A defesa da humanidade dos indivíduos negros – de que somos diversos e temos direitos à vida, à liberdade e à opinião – é uma premissa desse pensamento, posto todo o processo de desumanização pelo qual passaram. Além disso, a luta anticapitalista se apresenta fundamental e se explicita em maior intensidade pela interseccionalidade, que mostra como as opressões sistêmicas e estruturais estão imbricadas e como é preciso compreender as diversidades, contrapondo-se a uma pretensão universalizante que, na verdade, inviabiliza a complexidade dos fenômenos de opressão. Muda-se a sociedade ao se disputar o poder e se destruir os privilégios. Portanto, as mulheres negras desejam travar não apenas uma luta por identidades, mas também uma luta por transformação radical da sociedade, e isso passa, fundamentalmente, pela desbrancalização do modo político de pensar, atuar e agir. A liberdade só será alcançada quando todas as amarras, físicas e simbólicas, forem desmanteladas.
Assim, discutir as condições de vida e de vulnerabilidade de nossas comunidades, questionar a precariedade e dar voz às mulheres em situação prisional é uma pauta emergente. O relatório “Cartas do Cárcere”, uma sistematização de cartas enviadas pelas pessoas privadas de liberdade à Ouvidoria Nacional do Sistema Penitenciário, realizou o mapeamento de demandas e narrativas sobre o cárcere. O projeto foi uma parceria entre o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), coordenado pela Professora Thula Pires (PUC-RJ). Neste projeto, é possível visualizar quão profundas são as violações no cárcere, invadindo a esfera simbólica e de obstrução violenta ao dificultar e barrar a possibilidade de reflexão e de expressão. A capacidade de reflexão, de pensamento e de produção, que se espraia seja pela fala, seja pela escrita, é uma capacidade humana inata. Portanto, a expressão dessas capacidades é um direito humano. O projeto aponta que há obstruções e práticas de censura nas cartas escritas pelas pessoas em situação prisional, o que impacta no baixo número de denúncias de abuso e violência. Ao evidenciar padrões de escrita, percebe-se que a instituição prisional busca moldar a palavra e, portanto, invadir a esfera do pensamento ao tentar aprisioná-lo.
Essas práticas podem ser, sem dúvidas, lidas como violação de direitos humanos dos mais básicos da existência. É como se o sistema penal buscasse não apenas privar de liberdade, mas fazer sumir aqueles corpos, fazer desaparecer mentes e pensamentos, fazer esquecerem-se de si mesmos.
Portanto, cabe aos pesquisadores e, principalmente às pesquisadoras negras, também fazerem de suas pesquisas e escritas espaços de ativismo e de luta que se amplia pela liberdade e pela voz das pessoas em situação prisional. Lutar por liberdade passa necessariamente pela liberdade de mulheres negras e, notadamente, pelo fim ao controle e extermínio das populações negras. Como aponta Angela Davis, não há liberdade enquanto existirem prisões. Não há liberdade enquanto hierarquias sociorraciais persistirem.
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Juliana Borges é escritora e pesquisadora em Antropologia. Estuda Sociologia e Política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Foi articuladora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (2017), Secretária Adjunta da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres e Assessoria Especial da Secretaria do Governo Municipal da Prefeitura de São Paulo (2013-2016). Estudou Letras na Universidade de São Paulo. Autora do livro O que é encarceramento em massa?, da coleção “Feminismos Plurais”, coordenada por Djamila Ribeiro.