Os argumentos para julgar os torturadores da ditadura brasileira — rejeitados mais uma vez pela Justiça

Nesta quinta, os desembargadores do TRF-3 decidiram não reabrir denúncia contra três agentes públicos pela morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino, em 1971. Tribunais brasileiros ignoram decisão da CIDH

Por Felipe Betim, no El País

O entendimento de que os crimes cometidos pela ditadura militar (1964-1985) não devem ser julgados não é uma posição apenas do presidente Jair Bolsonaro, aberto defensor do regime. Várias instâncias da Justiça brasileira a endossam. Por dois votos a um, os desembargadores da 11ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região de São Paulo rejeitaram, nesta quinta-feira, a denúncia criminal contra três agentes públicos pela morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino, em julho de 1971, o momento de maior repressão da ditadura. Merlino tinha apenas 23 anos.

O principal responsável por sua morte, de acordo informes públicos e com o relatório da oficial Comissão Nacional da Verdade, de 2014, é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um reconhecido, até pela Justiça, como torturador da ditadura que comandou o DOI-Codi em São Paulo. Porém, a punibilidade criminal contra ele foi extinta com a morte de Ustra, em 2015. Os outros apontados como responsáveis são os delegados Aparecido Laertes Calandra e Dirceu Gravina, acusados de homicídio doloso qualificado, além do médico Abeylard de Queiroz Orsini, acusado de falsidade ideológica, por ter falsificado o laudo necroscópico do jornalista.

O recurso fora apresentado pelo Ministério Público Federal (MPF) após ser rejeitada em primeira instância pela Justiça Federal, em setembro de 2014, com base na Lei de Anistia, de 1979. E foi, mais uma vez com base nesta legislação, que os desembargadores José Lunardelli, relator do caso, e Nino Toldo, presidente da turma, bloquearam a denúncia. Ambos se mostraram solidários com a família e não negaram a existência dos crimes, mas enfatizaram que a legislação foi, nas palavras do relator, “fruto de um processo histórico” que resultou na transição para a democracia, estabelecendo para isso um “esquecimento penal”.

Incorporada na Constituição de 1988 e reconhecida pelo Supremo, a Lei da Anistia, no entanto, foi rejeitada por duas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em 2018, a então procuradora-geral, Raquel Dodge, pediu ao STF que reavalie o posicionamento em ação pela reabertura fo caso do ex-deputado Rubens Paiva, também morto pelo regime em 1971. O caso ainda não foi avaliado.

Com a decisão desta quinta-feira, uma das vias analisadas agora pela família de Merlino é internacionalização do caso, via CIDH. “Nós já sabíamos como seriam o votos. São 48 anos, mas o pior é que essa decisão é um incentivo a tortura”, afirmou Angela Maria Mendes. “A luta vai sobreviver a mim. 48 anos, 50, 60, ela vai continuar”, garantiu.

Apesar de o MPF ter sido o responsável pela ação penal, a família se manifestou no papel de assistente de acusação. Em sua sustentação oral, a advogada Eloísa Machado de Almeida, professora de direito constitucional da FGV, apresentou três argumentos básicos contra a ideia de que os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar devem permanecer esquecidos pela Justiça com base na Lei da Anistia. Abaixo, em itálico, os trechos da argumentação.

Um crime de lesa-humanidade

O primeiro argumento da advogada diz respeito à natureza do crime cometido:

“Estamos diante de graves violações a direitos humanos, dos chamados crimes de lesa-humanidade. O debate jurídico é outro. Foi muito bem descrito na denúncia: o homicídio qualificado de Luiz Eduardo Merlino (para ser precisa, seu sequestro, a prisão ilegal, a tortura, o assassinato, o vilipendio do corpo e da verdade, documentos forjados) se deram em um contexto de ataques sistemáticos e generalizados contra a população, perpetrados pela ditadura militar brasileira, o que qualifica este homicídio como crime contra a humanidade.

Crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis e inanistiáveis. Isso é o que há de mais robusto no Direito Internacional dos direitos humanos, o seu núcleo duro, o ius cogens. Submeter a noção de ius cogens à positivação pelo ordenamento brasileiro é não só um contra senso como também um equívoco jurídico”

Além das normas básicas do Direito Internacional, o Brasil é signatário de tratados internacionais que enfatizam que delitos como o de tortura, enquadrado como crime contra a humanidade, não é passível de prescrição e nem da aplicação da Lei da Anistia, conforme recordou o procurador federal que moveu a denúncia. A Constituição de 1988 afirma que os tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos serão equivalentes às emendas constitucionais sempre que for aprovada pelo Congresso Nacional por 3/5 dos votos de senadores e deputados. Caso não tenha passado por esse procedimento, o Supremo determinou que tenha status supralegal — acima da legislação interna e abaixo da Constituição. Contudo, o STF não se pronunciou expressamente sobre a prescrição do crime de tortura e entendeu, posteriormente, que a Lei da Anistia não fere a Carta Magna, mostrando-se contrário a sua revisão. Assim, a questão da prescrição ainda está aberta a interpretações no meio jurídico, o que vem gerando decisões como a dos dois desembargadores do TRF-3.

Condenação na CIDH

Em seguida, Machado de Almeida aborda a demanda do Conselho Interamericano de Direitos Humanos (CIDH) da OEA para que o Brasil responda às graves violações de direitos humanos ocorridas na ditadura militar:

“A Corte Interamericana condenou o Brasil no caso Gomes Lund, ou Guerrilha do Araguaia [em 2010]. Diante da argumentação por parte do Estado brasileiro de que uma lei de anistia e uma decisão da corte constitucional impediam as investigações, a Corte foi enfática ao afirmar que leis de autoanistia não são consideradas válidas frente à Convenção Americana e que as famílias dos desaparecidos tinham o direito de saber a verdade e receber justiça — o que passaria pela efetiva responsabilização criminal dos agentes públicos envolvidos.

Mais recentemente [em 2018], a Corte condenou o Brasil mais uma vez pelas graves violações a direitos humanos contra Vladimir Herzog e sua família.

Na sentença, a Corte determinou que os fatos ocorridos contra Vladimir Herzog deveriam ser considerados crime contra a humanidade, de acordo com a definição dada pelo Direito Internacional.

Por isso, concluiu que o Estado não poderia invocar a existência da figura da prescrição ou aplicar a lei de anistia ou qualquer outra disposição semelhante ou excludente de responsabilidade para escusar-se de seu dever de investigar e punir os responsáveis”.

Lei de Anistia

Em terceiro lugar, e finalmente, a advogada traz uma discussão sobre a própria Lei da Anistia: a legislação fala em anistiar crimes políticos, mas não aborda quais são eles. Nesse sentido, um delito de tortura, homicídio ou estupro poderiam ser julgados como tais:

“Mesmo insistindo na incidência da Lei de Anistia no caso (como se ela fosse capaz de derrogar o mais essencial ius cogens do Direito Internacional dos Direitos Humanos e contrariar expressamente texto de tratados e decisões da Corte Interamericana), a verdade é que não se pode afirmar agora, neste momento, que são crimes conexos a políticos.

É verdade, a ADPF 153 [que tramitou no Supremo] considerou a lei recepcionada pela Constituição, mas não procedeu a nenhuma interpretação conforme da lei, deixando ao Judiciário essa interpretação, em cada caso concreto.

Não podemos considerar que homicídios — devidamente tipificados, obviamente à época — sejam enquadrados como crimes conexos a crimes políticos automaticamente. Se porventura houver essa conexão, ela deverá ser elucidada justamente no curso da ação penal.

O TRF da 2ª Região, recentemente, ordenou o recebimento da denúncia contra vulgo Camarão pelo crimes cometidos contra Ines Etienne Romeu, sequestrada, presa ilegalmente e estuprada na Casa da Morte, centro de prisão e tortura clandestino do Exército brasileiro em Petrópolis, no Rio de Janeiro.

Os desembargadores tiveram o bom senso de não considerar estupro um crime conexo a crime político, além de reconhecerem que, no caso, se tratava de crimes de lesa humanidade.

A verdade é que, aos poucos, o Judiciário brasileiro vai procurando acertar as contas com o passado. A recente decisão do TRF-2 é um exemplo, assim como a multiplicidade de votos — por enquanto, vencidos — que têm criado frestas pelas quais a verdade vai acabar passando”.

Desaparecimento e morte de Merlino

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instaurada pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a Comissão Nacional da Verdade, instaurada pelo Governo Dilma Rousseff (PT), e a Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo.  Os documentos narram com detalhe a captura, prisão e tortura de Merlino, que trabalhou em veículos como o Jornal da Tarde e a Folha da Tarde e militava no Partido Operário Comunista (POC). Também reconhecem a responsabilidade do Estado brasileiro e de Ustra pela morte do jornalista.

No dia 15 de julho de 1971, logo depois de retornar da França, foi detido por agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-CODI/SP) na casa de sua mãe, em Santos. O jornalista foi submetido a 24 horas de tortura no pau de arara e, depois, abandonado em uma solitária. Sofreu gangrena nas pernas decorrente da tortura e não recebeu tratamento médico. Deixado de lado por seus algozes, acabou morrendo. “Entre seu sequestro, prisão e morte passaram-se cinco dias. (…) Não bastasse, seu corpo foi vilipendiado após sua morte, assim como tem sido a verdade desde então”, disse Machado de Almeida durante sua sustentação oral.

O horror pelo qual passou foi testemunhado por pessoas como Eleonora Menicucci de Oliveira, Laurindo Junqueira Filho e Paulo Vanuchi. “Todos testemunharam e corroboraram os fatos. Alguns ficaram na mesma cela, compartilhando as dores da tortura; outros compartilharam os mesmos dias de prisão. Nenhum compartilhou seu destino, a morte”, acrescentou a advogada. O regime militar tentou apagar o ocorrido com um atestado de óbito falso — e já retificado —, afirmando que o jornalista “ao fugir da escolta que o levava para Porto Alegre (RS), na estrada BR-116, foi atropelado e, em consequência dos ferimentos, faleceu”.

Quarenta e oito anos depois, sua companheira na ocasião, Angela Maria Mendes, sua irmã, Regina Maria Merlino, e sua sobrinha, a também jornalista Tatiana Merlino, continuam buscando por Justiça, conforme recordou a advogada assistente da acusação no momento final de sua sustentação oral:

“O STJ está nesse momento, debruçado sobre a imprescritibilidade de crimes de lesa humanidade; o STF tem encontro marcado com a revisão de sua posição sobre a lei de anistia e o impacto das decisões da Corte Interamericana. Além disso, cinco ministros já decidiram que fatos muito semelhantes aos deste caso são crimes contra a humanidade, imprescritíveis.

Obstar os caminhos de devida responsabilização criminal de homicidas e torturadores é um estímulo a que estes crimes sigam ocorrendo. É o carinhoso manto da impunidade dado a torturadores, homicidas, estupradores e sádicos de toda ordem da ditadura que faz com que alguns se atrevam a comemorar o golpe, banalizar a tortura, repetir os erros do passado.

Manter acriticamente à lei da anistia como empecilho à responsabilização, mesmo após reiteradas decisões da Corte Interamericana, é seguir violando os direitos das vítimas.

O jornalista Luiz Eduardo Merlino. Foto: INSTITUTO VLADIMIR HERZOG

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