Breve, será possível produzir todo tipo de alimento sem a devastação provocada pela grande agricultura e pecuária. O que isso revela sobre as oportunidades de nossa época e as sabotagens de um sistema que insiste em não morrer
Parece um milagre, mas não é necessário nenhum grande salto tecnológico. Em um laboratório comercial no entorno de Helsinque, capital finlandesa, observei cientistas transformarem água em comida. Através de uma escotilha em um tanque de metal, eu via uma espuma amarela agitando. É a sopa primeva de bactérias, tirada do solo, com a utilização de hidrogênio extraído da água como fonte de energia. Quando a espuma foi desviada através de um emaranhado de canos, e esguichada em tambores aquecidos, transformou-se em uma farinha amarela rica.
A farinha ainda não tem licença para ser vendida. Mas os cientistas, que trabalham para uma empresa chamada Solar Foods, tinham a permissão para me deixar experimentar. Pedi a eles, enquanto filmava o documentário Apocalypse Cow [em tradução literal, “apocalipse vaca” — um trocadilho, em inglês, com o filme “Apocalypse Now” (1979)], que me fizessem uma panqueca: eu seria a primeira pessoa na Terra, fora os funcionários do laboratório, a comer tal alimento. Eles arrumaram uma frigideira, misturaram a farinha com leite de aveia e eu dei um pequeno passo para o homem. Tinha gosto… de panqueca.
Mas a ideia não é produzir panquecas. Esses tipos de farinha podem se transformar em matérias-primas para quase tudo. Em seu estado cru, podem substituir os preenchedores que hoje são usados em milhares de produtos alimentícios. Quando as bactérias forem modificadas, criarão as proteínas específicas necessárias para fazer carne, leite e ovos cultivados. Com outros ajustes, produzirão ácido láurico — adeus azeite de dendê — e ácidos graxos ômega-3 de cadeia longa: bem-vindo, peixe artificial. Os carboidratos que permanecem, quando as proteínas e gorduras são extraídas, poderiam substituir tudo, de farinha para massas a batata chips. A primeira fábrica comercial construída pela Solar Foods deve começar a funcionar no ano que vem.
A via do hidrogênio é cerca de dez vezes mais eficiente que a fotossíntese. Como apenas algumas partes de uma planta podem ser ingeridas, enquanto a farinha feita de bactérias é mange tout, é possível multiplicar essa eficiência muitas vezes. E por ser produzida em cubas gigantes, o aproveitamento da terra, estima a empresa, é aproximadamente 20 mil vezes maior. Todas as pessoas na Terra poderiam ser generosamente alimentadas, usando apenas uma pequena parte de sua superfície. Se, como a empresa pretende, a água for eletrolisada com energia solar, os melhores lugares para produzir essas plantas serão os desertos.
Estamos na culminância da maior transformação econômica, de qualquer tipo, dos últimos 200 anos. Hoje as discussões variam entre dietas baseadas em carne ou em vegetais. Novas tecnologias vão em breve torná-las irrelevantes. Logo, a maior parte de nossa comida não virá nem de animais e nem de plantas, mas da vida unicelular. Depois de 12 mil anos alimentando a raça humana, toda a agricultura exceto a produção de frutas e vegetais, poderá ser substituída pela cultura por fermentação de micróbios com precisão. Eu sei que algumas pessoas ficarão horrorizadas com essa perspectiva. Consigo ver algumas desvantagens. Mas acredito que isso está chegando na hora certa.
Vários desastres iminentes convergem para nossa alimentação. A catástrofe climática ameaça causar o que os cientistas chamam de “múltiplas falhas na cesta de pão”, por meio de ondas de calor síncronas e outros impactos. Pesquisas da ONU preveem que, até 2050, alimentar o mundo vai exigir uma expansão de 20% no uso mundial da água. Mas o uso da água já chegou ao limite em muitos lugares: aquíferos estão desaparecendo, rios não conseguem alcançar o mar. As geleiras que suprem metade da população da Ásia estão rapidamente diminuindo. O aquecimento global inevitável — devido aos gases do efeito estufa que já estão sendo emitidos — provavelmente reduzirá as precipitações na estação seca em áreas críticas, tomando planícies férteis com tempestades de areia.
Uma crise global do solo ameaça a base de nossa subsistência: grandes extensões de terra arável perdem sua fertilidade por causa da erosão, compactação e contaminação. Reservas de fosfato, cruciais para a agricultura, estão diminuindo rapidamente. O apocalipse dos insetos ameaça causar falhas catastróficas na polinização. É difícil ver como a agricultura vai conseguir alimentar todos nós mesmo até 2050 — que dirá até o fim do século e em diante.
A produção de comida está destruindo o mundo vivo. A pesca e a agricultura são, de longe, a maior causa de extinção e perda de diversidade e de abundância da vida selvagem. O agronegócio é a maior causa da catástrofe climática, a maior causa da poluição dos rios e uma fonte robusta de poluição do ar. Em grandes extensões da superfície do mundo, ecossistemas selvagens já foram substituídos por cadeias alimentares humanas reduzidas. A pesca industrial está levando ao colapso ecológico em cascata ao redor do mundo. Comer é, agora, um campo minado moral, já que quase tudo que colocamos em nossas bocas — de bifes a abacates, de queijo a chocolate, de amêndoas a doritos, de salmão a nutella — tem um custo ambiental insuportável. Mas no momento em que a esperança parecia estar evaporando, essas novas tecnologias que chamo de “alimentos pós-agro” criam possibilidades surpreendentes para salvar tanto as pessoas quanto o planeta.
Alimentos não-agrários vão nos permitir devolver áreas enormes de terra e mar à natureza, permitindo a renaturezae diminuindo os níveis de carbono em uma enorme escala. Significa um fim à exploração de animais, um fim para a maior parte do desmatamento, uma grande redução no uso de agrotóxicos e fertilizantes, o fim de traineiras e palangreiros. É nossa maior esperança para interromper o Grande Extermínio. E, se fizermos da maneira correta, resultará em comida barata e abundante para toda a população.
Pesquisas feitas pelo thinktank RethinkX sugerem que proteínas de fermentação de precisão serão cerca de dez vezes mais baratas que proteína animal, em 2035. O resultado, segundo o estudo, será o colapso quase completo da indústria pecuária. A nova economia alimentar vai “substituir um sistema de extravagante ineficiência que requer enormes quantidades de insumos e produz imensos volumes de resíduos, por um sistema preciso, direcionado e tratável”. Utilizando pequenas áreas de terra, com uma necessidade muito reduzida de água e nutrientes, ele “apresenta a maior oportunidade de restauração ambiental da história humana”.
A comida não ficará apenas mais barata, mas mais saudável. Como os alimentos pós-agro serão produzidos a partir de ingredientes simples, ao invés de fragmentados a partir de outros maiores, alergênicos, gorduras dura e outros componentes que fazem mal à saúde podem ser eliminados. A carne continuará sendo carne, mas será feita em fábricas, em andaimes de colágeno, ao invés de nos corpos de animais. O amido ainda será amido, gorduras serão gorduras. Mas a comida poderá ser melhor, mais barata e muito menos prejudicial aos seres vivos e ao planeta.
Pode parecer estranho para alguém que passou a vida inteira lutando por mudanças políticas virar um entusiasta da mudança tecnológica. Mas não enxergo em nenhum lugar no mundo políticas agrícolas sensatas se desenvolvendo. Os governos fornecem um número assustador de 3 trilhões bilhões de reais ao ano em subsídios agrícolas, e quase tudo este financiamentoj é perverso e destrutivo, levando ao desmatamento, poluição e aniquilação da vida selvagem. Uma pesquisa da Food and Land Use Coalition descobriu que apenas 1% dessa quantia é usada para proteger o mundo vivo. O estudo não foi capaz de encontrar “nenhum exemplo de governos usando instrumentos fiscais para direcionar apoio à expansão de fornecimento de alimentos mais saudáveis e mais nutritivos”.
O debate corrente sobre a agricultura também não está nos levando a lugar algum, exceto em direção a mais uma catástrofe. Existe uma crença generalizada de que o problema é a agricultura intensiva e a resposta é a extensificação (produção de menos alimentos por hectare). É verdade que a agricultura intensiva é altamente prejudicial, mas a agricultura extensiva é ainda pior. Muitas pessoas estão justamente preocupadas com a expansão urbana. Mas a expansão agrícola — que cobre uma área bem mais ampla — é uma ameaça muito maior ao mundo natural. Cada hectare de terra usado pela agricultura é um hectare não usado para a vida selvagem e sistemas de vida complexos.
Um artigo da revista Nature sugere que, para cada quilo de alimento produzido, a agricultura extensiva gera mais emissões de gases de efeito estufa, perda de solo, uso da água e poluição por nitrogênio e fosfato do que a agricultura intensiva. Se todos comessem carne de gado alimentado em pasto, precisaríamos de novos planetas para produzi-la.
A produção de alimento pós-agro promete um abastecimento muito mais estável e confiável, que pode ser cultivado em qualquer lugar — mesmo em países sem terras agricultáveis. Poderá ser crucial para acabar com a fome no mundo. Mas há um problema: haverá um choque entre os interesses do consumidor e do agronegócio. Milhões de pessoas, trabalhando na agricultura e no processamento de alimentos, acabarão perdendo seus empregos. Como os novos processos serão muito eficientes, as funções que eles criarão não corresponderão ao desemprego gerado.
O RethinkX prevê que, muito em breve, haverá uma “espiral da morte” na indústria pecuária. Apenas alguns componentes, como as proteínas caseína e o soro encontrados no leite, precisam ser produzidos através da fermentação para que as margens de lucro de todo um setor entrem em colapso. A indústria de laticínios nos Estados Unidos, afirma-se, estará “quase falida em 2030”. Acredita-se que a receita da indústria de carne bovina dos EUA cairá 90% até 2035.
Embora eu duvide que o colapso seja tão rápido, em um aspecto, o thinktank subestima a escala da transformação. Ele não menciona a mudança extraordinária e pioneira que ocorreu na produção de matérias-primas em Helsinque. É provável que isso atinja a agricultura com tanta força quanto a produção de carne e leite atingirá a pecuária. As novas tecnologias poderá chegar, em cinco anos, a preços iguais aos proteína mais barata produzida no mundo (a soja da América do Sul).
Em vez de injetar cada vez mais subsídios em um setor em vias de extinção, os governos podem investir em um programa intensivo para ajudar os agricultores a buscarem recolocação no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que fornecem fundos de ajuda para aqueles que de repente perdem seus meios de subsistência.
Outra ameaça é a concentração potencial da indústria de alimentos não-agrários. Deveríamos nos opor fortemente ao patenteamento de tecnologias-chave, para garantir a maior distribuição possível da propriedade. Se os governos regulamentarem isso adequadamente, conseguiremos quebrar a hegemonia das grandes empresas que agora controlam as commodities alimentares globais. Se não o fizerem, acabarão fortalecendo-as. Nesse setor, como em todos os outros, precisamos de fortes leis antitruste. Devemos também garantir que os novos alimentos tenham sempre rastros de carbono mais baixos do que os antigos: os produtores agrícolas precisam começar a alimentar suas operações somente a partir de fontes de baixo carbono. Este é um momento de escolhas importantes, e devemos tomá-las juntas.
Não podemos nos dar ao luxo de aguardar, de forma passiva, que a tecnologia venha nos salvar. Nos próximos anos, podemos perder tudo, ao passo em que habitats naturais incríveis como as florestas de Madagascar, da Papua Ocidental e do Brasil vão sendo desmatadas para plantar soja e óleo de dendê ou para criar gado. Alternando para uma dieta baseada em vegetais cujas lavouras causem o menor impacto possível, podemos ajudar a obter o tempo necessário para salvar espécies e lugares magníficos, enquanto as novas tecnologias amadurecem. Mas a comida pós-agro oferece esperança onde esta faltava. Em breve seremos capazes de alimentar o mundo sem devorá-lo.
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Tradução: Gabriela Leite
GEORGE MONBIOT – Jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido.