Enquanto dados revelam explosão de queimadas no território em 2019, povo Tapirapé denuncia aumento de posseiros e madeireiros em sua terra
Por Tiago Miotto, no Cimi*
As invasões na Terra Indígena (TI) Urubu Branco, em Mato Grosso, têm se intensificado e preocupado o povo Apyãwa, também conhecido como Tapirapé. Os indígenas sofrem há algum tempo com a presença de madeireiros, grileiros e fazendeiros em seu território. Em 2019, contudo, as queimadas e a devastação no território atingiram um patamar crítico e os Apyãwa, junto a outros povos da região do rio Araguaia, vêm buscando apoio das autoridades para coibir a destruição de suas terras e a ação dos invasores.
Em outubro do ano passado, os Tapirapé de Urubu Branco estiveram em Brasília junto a liderança dos povos Karaja, Kanela do Araguaia, Xavante, Xerente, Yudja-Juruna e Krenak-Maxakali, e cobraram do Ibama a fiscalização das invasões a suas terras tradicionais e a criação de equipes indígenas do Prevfogo nos territórios, com treinamento e condições de atuar para combater os incêndios.
As lideranças informaram que as queimadas afetaram praticamente todas as terras da região e a atuação dos órgãos públicos foi insuficiente para conter os incêndios e a devastação. Registros de focos de incêndio e alertas de desmatamento e degradação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) corroboram as denúncias das lideranças. Os dados do centro de pesquisas apontam que em 2019, especialmente a partir do mês de setembro, aproximadamente 17,5% da TI Urubu Branco foi atingida por queimadas.
“Esse ano foram vários focos de fogo e não conseguimos acompanhar todos, foi muito ruim para nós em relação aos incêndios”, afirma Elber Kamoriwa’i Tapirapé, cacique-geral do povo Tapirapé. “O futuro das gerações do povo Apyãwa está em risco. Não tem como manter a cultura sem seguir preservando a floresta”.
88% dos focos de incêndio na TI Urubu Branco em 2019 ocorreram no mês de setembro
Explosão de queimadas em setembro
No mês de setembro, dados do satélite de referência utilizado pelo Inpe para monitorar as queimadas indicaram um aumento expressivo das ocorrências no interior da TI Urubu Branco. De 416 focos de incêndio identificados na terra indígena em 2019, 365 ocorreram no mês de setembro, o que equivale a 88,2% do total.
Entre janeiro e agosto de 2019, de acordo com os dados do Inpe, 9.078 focos de incêndio haviam sido registrados em 274 terras indígenas do Brasil. Em setembro, esse número aumentou consideravelmente: foram 5.967 novos focos de incêndio em terras indígenas, um acréscimo de 65,7% ao registro dos oito meses anteriores.
Localizada na transição entre o Cerrado e a Amazônia, a TI Urubu Branco foi a quarta terra indígena do Brasil com maior número de focos de incêndio no mês de setembro.
Se considerada também uma faixa de cinco quilômetros no entorno da área demarcada – um indicativo da pressão que o território sofre em seus limites – o número de queimadas identificadas nos nove primeiros meses de 2019 sobe para 503.
O ápice das queimadas, nos primeiros dias de setembro, também pode ser verificado em imagens de satélite da Nasa, que apresentam colunas de fumaça saindo do perímetro da TI Urubu Branco. Depois deste mês, com o início do período de chuvas, apenas dois novos focos de incêndio foram identificados pelo satélite de referência do Inpe.
Queimada afetaram até 17% da TI Urubu Branco em 2019
“A mata está morrendo”
As consequências dos incêndios no interior da terra indígena são indicadas pelos alertas de “cicatrizes de queimada” do sistema Deter, um programa de monitoramento do Inpe voltado para o apoio à fiscalização e ao controle do desmatamento e da degradação florestal na Amazônia.
Estes alertas apontam que, no segundo semestre de 2019, cerca de 29,4 mil hectares da terra indígena foram atingidos pelos incêndios florestais. Isso equivale a cerca de 17% da área total da demarcação. Além disso, outros 256 hectares receberam alertas de desmatamento neste mesmo período, não diretamente ligados às queimadas.
O sistema Deter emite alertas de desmatamento e degradação em tempo real para os órgãos de fiscalização e, segundo o Inpe, não é utilizado para estimar taxas de desmatamento acumulado. Ainda assim, os alertas baseiam-se em imagens de satélite e indicam tendências e situações de risco.
Ao contrário do Deter, o programa Prodes, também do Inpe, divulga dados consolidados de desmatamento ano a ano, com base em imagens espaciais de melhor resolução. Segundo as informações deste outro sistema, entre 1988 e 2018 a TI Urubu Branco teve 30,9 mil de seus 167.533 hectares devastados pelo desmatamento – aproximadamente 18% de sua área total.
Os alertas no segundo semestre de 2019, portanto, indicam que as queimadas e o desmatamento naquele ano podem ter afetado uma área equivalente à que foi desmatada na TI Urubu Branco nos 30 anos anteriores.
Importante notar que estes alertas são todos posteriores ao período abrangido pelo último levantamento do sistema Prodes, que estimou um aumento de 29,5% na taxa de desmatamento na Amazônia Legal entre agosto de 2018 a julho de 2019. Divulgada recentemente, a taxa estima o desmatamento acumulado em relação ao período anterior.
Os números para a TI Urubu Branco foram obtidos com base nos dados abertos disponibilizados pelo Inpe e na base cartográfica da Fundação Nacional do Índio (Funai).
“A queimada atingiu praticamente toda a TI Urubu Branco. Os Apyãwa dizem que apelaram à Funai, Ibama e outros órgãos, mas não obtiveram sequer um mínimo de resposta efetiva no sentido de apagar o fogo”, afirma Luiz Gouvêa de Paula, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – regional Mato Grosso.
“Eles tentaram várias vezes apagar eles mesmos, mas sem equipamentos pouco puderam fazer. O pior é que isso vem acontecendo há anos e a mata está morrendo”, lamenta Luiz.
“Queremos que seja criada uma equipe do Prevfogo, para que os próprios indígenas possam ter como trabalhar para proteger a floresta”, corrobora Carlos Tapirapé, liderança da TI Urubu Branco.
Queimadas, degradação e desmatamento
As cicatrizes identificadas pelo sistema de alertas do Inpe não são sinônimo de desmatamento, explica o coordenador do Programa Amazônia do Inpe, Claudio Aparecido De Almeida.
“Esse alerta indica que a área foi afetada por queimada, mas não posso dizer que ela foi efetivamente desmatada. É um bom indício de que aquela área passou por uma degradação ambiental que pode resultar em desmatamento”, avalia.
“A floresta é bastante úmida, é o que dificulta tanto a proliferação de incêndios. Mas quando você vai desmatando, a borda dessa floresta fica mais ressecada, fica mais sujeita a fogo, porque existe uma degradação causada pelo desmatamento. No limite do desmatamento, nos primeiros quinhentos metros de floresta, ela vai ficar mais seca, mais exposta, vai sofrer o processo de morte de várias árvores. Isso favorece muito o espalhamento do fogo”, prossegue.
As áreas afetadas pelo fogo até podem florescer novamente, mas guardarão as marcas dos incêndios. Por isso, o pesquisador do Inpe salienta que o processo de degradação de uma área florestal se retroalimenta.
“Tem uma área degradada, então ela está sujeita a fogo. Aí ela pega fogo, ela fica mais degradada, e consequentemente fica mais sujeita a fogo. Como ela está vizinha de pastos em que eventualmente alguém faz manejo usando fogo, ele está sujeito a ampliar essa área de fogo”, aponta Claudio.
Ele também explica que o Prodes, programa responsável pelo estudo e a consolidação das taxas de desmatamento acumulado ao longo dos anos, não inclui informações sobre áreas degradadas. Por isso, cicatrizes de queimada, como as da TI Urubu Branco, não são incluídas nos dados de desmatamento acumulado e podem não constar do próximo levantamento consolidado do Inpe.
“Quando o Prodes olha para uma área que está degradada, ela continua sendo tratada como uma área que tem floresta, ainda que tenha passado por degradação”.
Questionado sobre o que chamou mais a atenção nos dados do Prodes que incluem o primeiro semestre do ano de 2019, o pesquisador afirma ter percebido “um aumento da ilegalidade”.
“O que a gente percebe é que houve um aumento do desmatamento em terras indígenas, um aumento do desmatamento em unidades de conservação, um aumento intenso do desmatamento em áreas que não tem CAR, ou seja, existiu um aumento da ilegalidade. Quem está abrindo terra não está mais se preocupando se aquela área, em tese, não podia ser desmatada, talvez até tentando forçar uma situação para que ele possa legalizar futuramente”, pondera.
“O fogo vem principalmente das fazendas que estão na região norte e se espalha pelo território indígena. Fica difícil a gente controlar”
Posseiros e fazendeiros
Apesar da gravidade da situação, as queimadas são apenas uma das preocupações dos Tapirapé. As invasões para a retirada ilegal de madeira ainda são constantes, e a presença de fazendeiros e posseiros na porção norte da terra indígena colocam a própria segurança do povo em risco.
Um grupo de fazendeiros permanece nesta região da TI Urubu Branco desde sua homologação, em 1998. Apesar de já terem perdido o processo em que questionavam a demarcação da terra indígena na Justiça, sua retirada do território vem sendo protelada há anos por recursos judiciais.
Enquanto a desintrusão não ocorre, os indígenas denunciam que o arrendamento dessas propriedades e a chegada de novos posseiros na região vêm aumentando consideravelmente as invasões e, consequentemente, a devastação na área, que concentra os alertas de desmatamento em 2019.
“As pessoas que estão com a liminar para permanecer na terra indígena continuam lá, mas elas estão causando muito problema e devastação”, afirma o cacique-geral Tapirapé.
“Os pecuaristas continuam queimando os pastos e, com isso, queimando a maior parte do território. O fogo vem principalmente das fazendas que estão na região norte e se espalha pelo território indígena. Fica difícil a gente controlar”, avalia a liderança.
Em dezembro de 2019, o MPF ajuizou ações civis públicas e fez uma representação à Procuradoria-Geral da República para garantir aos indígenas o usufruto exclusivo de seu território. Além de pedir a retirada imediata dos invasores, o MPF de Barra do Garças, em Mato Grosso, pede que a Funai e a União indenizem os Tapirapé de Urubu Branco em R$ 6,3 milhões por “danos morais coletivos”.
O mesmo pedido, no valor de R$ 1 milhão por “danos morais coletivos” e R$ 1 milhão por danos sociais, é feito em relação à Energisa, empresa que instalou energia elétrica para os fazendeiros que ocupam ilegalmente o interior da terra demarcada.
“Com a eletricidade podem ser utilizados maquinários, automatizar atividades econômicas, aumentar a produtividade, além de gerar percepção de regularidade para os ocupantes desta área, o que contribui para a valorização das posses, ainda que ilícitas, e sua negociação por parte dos grileiros”, argumenta o MPF.
“Enquanto não houver desintrusão, não haverá trégua”
Madeira roubada
Em maio de 2019, doze pessoas foram presas por extração ilegal de madeira após uma ação do Ibama. Outras quatro pessoas já haviam sido presas pela Polícia Federal pelo roubo de pau-brasil, no mês anterior. Para os indígenas, entretanto, ações pontuais não são suficientes para coibir a ação dos invasores.
“Está tendo um grande desmatamento da madeireira. Não é qualquer madeira, é pau-brasil, uma árvore que é muito importante para nós. Nossa riqueza está sendo destruída pelo não índio”, afirma Carlos Tapirapé.
O missionário Luiz Gouvêa conta que, quando vão para a roça, os Apyãwa frequentemente ouvem barulho de motosserras ou de caminhões próximo das aldeias.
“Sinal de que continuam os cortes e roubo de madeira do território, basta a Polícia Federal virar as costas. Enquanto não houver desintrusão, não haverá trégua”, avalia Luiz Gouvêa.
“Os satélites não mostram toda a devastação, pois há lugares em que a mata parece intacta, mas por baixo pode haver pastagem ou mata fragilizada pela retirada da madeira de maior valor comercial. Esta é uma técnica muito usada na região”, alerta o missionário.
Para os Apyãwa, o discurso do presidente Jair Bolsonaro em defesa da exploração das terras indígenas tem potencializado as ações de invasores, que se sentem mais confiantes para agir.
“Entendemos que o governo também incentivou muito essa parte, nesse ano. Os invasores, no momento em que ouvem os governantes falarem que os territórios indígenas precisam ser ocupados pelos madeireiros, pelos garimpeiros e pelos próprios caçadores, eles estão incentivando que tudo isso aconteça nos territórios indígenas”, afirma Elber Kamoriwa’i.
Semana de cobranças em Brasília
Junto aos outros povos da região, os Apyãwa também aproveitaram a ida à Brasília para cobrar providências de outros órgãos do governo federal. Uma das incidências foi feita na Fundação Nacional do Índio (Funai), onde eles exigiram a abertura do processo de revisão de limites da TI Urubu Branco.
Os Tapirapé afirmam que uma importante parte de seu território ficou fora da demarcação feita nos anos 1990. “É a área de caçada dos Apyãwa para a festa da Tawã, Cara-Grande”, explica o missionário do Cimi.
Em Brasília, os povos do Araguaia também tiveram reuniões no Ministério da Educação, na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e em outros órgãos, onde protocolaram a declaração final do Primeiro Seminário dos Povos Indígenas da Região do Araguaia, realizado no início de setembro.
Em reunião no Ibama, as lideranças reforçaram o pedido para a criação de equipes indígenas de prevenção de incêndios nos territórios e exigiram consulta prévia acerca dos projetos de infraestrutura que podem afetar suas terras indígenas, como a rodovia TO-500, conhecida como Transbananal.
“No Ibama, também trouxemos a necessidade de ter uma fiscalização permanente nas terras indígenas, nos rios Tapirapé, Araguaia, onde está tendo muita pesca predatória e retirada dos nossos peixes”, informa Carlos Tapirapé.
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Área queimada em frente a cerca cenário desolador no interior da TI Urubu Branco, parcialmente ocupada por posseiros. Foto: Povo Tapirapé