Alcântara, a aritmética do racismo institucional: breves considerações acerca do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas e suas implicações às comunidades quilombolas*. Por Danilo Serejo Lopes**

INTRODUÇÃO

Os perdedores são sempre perdedores! Sentencia a romancista Maryse Condé em sua clássica obra Corações Migrantes[1]. Ambientado no século XIX na ilha caribenha de Guadalupe, o romance conta trajetória de um casal negro que jamais pôde viver seu amor porque fora sucumbido pelas relações raciais vigentes na época.

Tomando como ponto de análise a sentença capital prolatada pela autora da obra acima referida, com a devida licença literária e guardado o devido contexto, nosso objetivo aqui é refletir sobre a cessão da Base Espacial de Alcântara para os Estados Unidos da América (EUA) por meio do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST)[2] celebrado em 18 de março de 2019 entre os governos do Brasil e dos EUA e seus desdobramentos na vida das comunidades quilombolas de Alcântara, isto é, entender como o  desamparo institucional [leia-se: fracasso] tem legado aos quilombos de Alcântara uma trajetória profundamente marcada por perdas e tragédias. Para tanto, trazemos a baila alguns elementos que consideremos centrais para entenderemos o debate proposto.

ELEMENTOS PARA O DEBATE: O AST UM PROJETO DANOSO E PERIGOSO

O CLA funciona sem licenciamento ambiental há pelo menos 38 (trinta e oito) anos, ou seja, inexiste Estudo de Impacto Ambiental e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA)[3]. Em outras palavras, a sociedade brasileira e a sociedade alcantarense não sabem mensurar e dimensionar os eventuais danos ao ambiente e à sua saúde humana, gerados pelas atividades de lançamentos de foguetes ocorridas no CLA, fato que se considera inadmissível!

Muitos são os problemas relacionados aos AST. O sociólogo Marcelo Zero[4] sintetiza, “(…) não poderia haver situação mais assimétrica: de um lado, proíbe-se que o Brasil coopere com países que não pertençam ao MTCR, que use o dinheiro do aluguel do CEA (ou CLA) para desenvolver o programa do VLS, que receba tecnologia espacial de terceiros países, que inspecione “containers” em seu território e que seus funcionários adentrem áreas em sua própria base, mas, de outro, assegura-se aos EUA o direito de vetar lançamentos por motivos políticos, de controlar áreas dentro do CEA e de fazer prevalecer as suas leis e políticas internas sobre o Acordo sempre que julgar conveniente (ZERO, 2019).

Por seu turno, o advogado e cientista político Jorge Rubem Folena de Oliveira aponta inconstitucionalidades relacionadas ao AST, e é taxativo: “(…) O acordo firmado pelo atual governo nos coloca diretamente sob a dependência dos Estados Unidos da América do Norte possam, que podem, inclusive, determinar o que deve ser feito pelo Brasil com relação a lançamento e desenvolvimento de tecnologia de foguetes e espaçonaves; o que constitui violação direta à soberania nacional (artigo 1º, I, CRFB) e a outros princípios que devem ser observados pelo governo nas suas relações com os demais países, como a independência nacional, a autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados e a defesa da paz (artigo 4º, I, III, IV, V, VI, CRFB) (OLIVEIRA, 2019)[5].

No nosso sentir, existem problemas igualmente sérios nessa situação e que estão sendo tratados de maneira secundária, conforme dissemos anteriormente. Apontamos a seguir questões que devem ser tomadas como centrais para o debate. Quais sejam:

Primeiro, o município de Alcântara, Estado Maranhão constitui-se em dos maiores territórios tradicionais do país, com mais de 200 comunidades quilombolas distribuídas em três grandes territórios: Território Quilombola de Alcântara (área de conflito direto com CLA), o Território de Santa Tereza e o Território da Ilha do Cajual que mantêm entre si relações de interdependência cultural, social e econômica e, a despeito disso, lutam há pelo menos duas décadas na justiça pela titulação do seu território, tendo obtido decisões judiciais em seu favor, determinando à União Federal a regularização e titulação do território em favor das comunidades. 

Ainda assim, jamais tiveram seu direito à propriedade coletiva assegurado, conforme determina o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 (CF/88, ADCT), permanecendo, portanto, num cenário de total insegurança jurídica e incerteza quanto ao seu próprio futuro. Cumpre destacar, o processo de identificação do território quilombola de Alcântara já superou suas principais fases e procedimentos e teve seu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado no Diário Oficial da União em novembro de 2008.

Segundo, O AST implicará em novos deslocamentos de comunidades quilombolas e deverá interferir no cotidiano das comunidades. Na década de 1980, para que o CLA fosse instalado, foram compulsoriamente deslocadas 312 famílias, de 23 comunidades localizadas no litoral do município, e reassentadas em 07 (sete) agrovilas especialmente construídas para este fim. As famílias deslocadas sofrem diversas arbitrariedades e violações de direitos humanos, que estão relacionadas à negativa de acesso ao mar, rios, igarapés, florestas de manguezais e áreas de roça. Ademais, pasmem, por muitos anos essas famílias foram proibidas de fazer reformas em suas casas ou edificações nas agrovilas. O motivo para isso é aberrante: as agrovilas são construídas em formato de símbolos da Força Aérea Brasileira e essa lógica não poderia ser alterada, o que ilustra o quanto essas comunidades estiveram (e ainda estão) expostas ao autoritarismo militar.

Pois bem. O AST traz à baila a ameaça real de novos deslocamentos de comunidades, posto que, ao ser questionado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, o governo federal, via Ministério da Defesa[6], responde sem titubear: […] caso a ratificação do AST pelo Congresso promova, como se espera, um incremento nos negócios e isso leve o governo brasileiro a prosseguir com a consolidação do CEA, a população quilombola, que ora habita a área a ser futuramente utilizada pelo Centro, será assentada em outra área da mesma região…” (Grifo nosso).

Quando questionado se os corredores de pescas para as comunidades serão de algum modo afetados e se os EUA terão algum controle sobre o acesso a essas vias, responde-se: […] o controle sobre quaisquer vias que estiverem dentro do raio de segurança de algum sítio no qual seja iminente o lançamento caberá, conjuntamente, aos órgãos brasileiros e às empresas envolvidas no lançamento propriamente dito, sejam empresas de que País for, conforme uma matriz de responsabilidades e protocolos a serem acordados bastante tempo antes de cada atividade de lançamento. (Grifo nosso).

Se assim for, tem-se que, de imediato, serão expulsas do seu território aproximadamente 800 famílias de 30 comunidades quilombolas, em um total aproximado de 2.121 pessoas, conforme levantamento preliminar realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR), pelo Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE) e pelo Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (MOMTRA).

Em 27.03.2020 o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da Republica publicou a Resolução nº 11 em que estabelece a matriz de responsabilidades e competência para remoção dos quilombos de Alcântara. A referida resolução derruba de uma vez por todas o argumento dos defensores do AST de que este nada tinha a ver com remoção de comunidades em Alcântara. Ao contrário, explicita o caráter obscuro e racista por detrás desse projeto.

Os efeitos, alcance e abrangência dessa resolução merecem uma reflexão à parte e mais aprofundada, da qual já estamos nos ocupando e oportunamente publicizaremos.

Terceiro, cabe perguntar: o AST ameaça colocar Alcântara e o Brasil em rota de guerra?  Se quisermos oferecer uma resposta rasa, pudemos afirmar que não. No entanto, há riscos colocados à mesa. É preciso dizer que, atualmente, os Estados Unidos da América “estão liberados para utilizar armas nucleares, uma vez que o governo de Donald Trump decidiu abandonar o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário” (Tratado INF), firmado em 1987 com a então União Soviética, que estava em vigor até o início do mês de agosto do ano passado. Assim, abre-se o temor de uma nova Guerra Armamentista no mundo, liderada pelos russos e estadunidenses.

É de se destacar o histórico intervencionista e belicista dos EUA contra vários países. Na nossa região, é sabido por toda a sociedade as reiteradas tentativas de os Estados Unidos intervirem no nosso país vizinho, a Venezuela, que tem como seu principal parceiro bélico a Rússia.

Somando-se a isso está o item 04, do artigo V do AST, que dá ao governo dos Estados Unidos exclusividade de decidir sobre prestar, ou não, informações ao governo brasileiro acerca da presença de materiais radioativos ou outras substâncias potencialmente danosas ao meio ambiente ou à saúde humana, que possam estar presentes nos veículos de lançamento, espaçonaves ou equipamentos dos Estados Unidos da América do Norte (OLIVEIRA, 2019).

É igualmente sabido que os EUA acumulam histórico de não cumprimento de Acordos internacionais. A Base de Guantánamo[7], localizada em Cuba, nos mostra exatamente isso, bem como, o caso do Tratado INF referido anteriormente.

Do ponto de vista da geopolítica regional (América Latina), o AST poderá impor à sociedade brasileira uma emblemática rota de conflitos bélicos internacionais, cujos efeitos serão danosos, sobretudo, do ponto de vista da relação comercial com outros países.

As questões que temos de colocar em reflexão aqui são: vale a pena correr esse risco? Temos condições bélicas de entrar em coalização com os Estados Unidos contra outros Estados Nações? Bom, estas são questões que merecem um debate à parte, dada sua importância e complexidade.

EM CONCLUSÃO

Alcântara, uma luta nacional: ainda é possível defender o fracasso[8], com este artigo publicado em dezembro de 2017 defendemos a tese de que apesar dos sucessivos fracassos experimentados pelo Programa Aeroespacial em Alcântara, é preciso ter a Base Espacial de Alcântara como um patrimônio científico do povo brasileiro e que esta deve estar a serviço do seu povo.

Já é tardia a defesa que sustentamos no mencionado artigo acima. O atual governo federal já concluiu a entrega da Base de Alcântara aos Estados Unidos, renunciando ao investimento próprio da sua política aeroespacial, e numa clara afronta à soberania nacional. E é de se destacar, a entrega da Base de Alcântara contou com a irrestrita chancela do governo do Estado do Maranhão, o comunista Flávio Dino.

Mas não é só. Se considerarmos a discussão e os elementos que trouxemos no presente texto, pudemos afirmar com absoluta tranquilidade: o AST só é possível em detrimento dos direitos territoriais, culturais, sociais e econômicos das comunidades quilombolas de Alcântara.

O AST aprovado nas condições que foi, isto é, em regime de urgência, sem que se realizasse amplo e devido debate com diversos setores da sociedade, sobretudo, a comunidade quilombola e científica, e sem que se tenha regularizado e titulado o território quilombola, sem a realização da consulta prévia, livre e informada nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho é certo que teremos como resultado o aprofundamento do cenário de violações de direitos humanos a que estas comunidades estão expostas desde sempre, uma vez que, os/as quilombolas de Alcântara permanecerão no eterno campo da insegurança jurídica e da incerteza quanto ao seu futuro.

Na prática, quando o Estado brasileiro nos nega a consulta prévia, nos rouba o direito de decidir sobre nossas vidas e futuro. Reproduz, com isso, uma lógica racista que só encontra paralelo no Brasil colônia, em que a elite escravocrata não reconhecia o povo negro como sujeitos de direitos. Ao que nos parece, ainda não se rompeu com esta lógica.

 Ao negar o amplo e qualificado debate público acerca do AST, o Estado brasileiro e os defensores desse projeto optaram pelo desemparo institucional posto em Alcântara há 40 anos, consagrando, assim, o pensamento escravocrata da elite política atual em relação às comunidades quilombolas, neste caso, de Alcântara. Somente o pensamento racista explica a aritmética norteadora desse debate em que os quilombos saem perdendo, em todos os cálculos possíveis. Em outras palavras, a lógica racista estruturante com a qual abrimos o presente texto – Os perdedores são sempre perdedores – continua a determinar as vidas negras nesta sociedade ainda escravocrata. A negativa do direito constitucional de propriedade coletiva das comunidades de Alcântara e do direito ao futuro representa uma aritmética racista em que apenas o povo negro perde, conforme já se afirmou aqui, sendo diariamente subtraído no seu direito básico de existir. Até quando?


* O texto que ora apresento ao leitor foi originalmente publicado no Relatório Direitos Humanos 2019 da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. No entanto, para a presente publicação busquei atualizá-lo com dados e informações recentes sobre a questão quilombola em Alcântara, sem, contudo, mudar a essência do debate proposto.

** Danilo Serejo é quilombola de Alcântara comunidade de Canelatíua (ameaçada de expulsão), possui formação em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG), é mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), é pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) com ampla experiência em pesquisa sobre direitos dos povos e comunidades tradicionais, e é assessor jurídico do Movimento dos Atingidos pela Espacial de Alcântara (MABE).

Notas:

[1] Consultar: CONDÉ, Maryse. Corações Migrantes –Trad.: Júlio Bandeira. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

[2]Cf. Conhecendo o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas Brasil e Estados Unidos. Disponível em: https://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/publicacao/arquivos/Entenda-o-AST.pdf

[3] A esse respeito, tramita na Justiça Federal do Maranhão a Ação Civil Publica nº 1999.37.00.007382-0 proposta pelo Ministério Público Federal em face do IBAMA.

[4] Cf. ZERO, Marcelo.  A Soberania foi para o Espaço. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/a-soberania-foi-para-o-espaco. Acesso em: 28 ago. 2019. 

[5] Cf. OLIVEIRA, Jorge Rubem Folena de. Base de Alcântara: análise constitucional do acordo entre Brasil e EUA. Disponível em: https://jornalggn.com.br/artigos/base-de-alcantara-analise-constitucional-do-acordo-entre-brasil-e-eua-por-jorge-rubem-folena/. Acessado em: 28 ago. 2019.

[6] Ofício nº 12719/GM-MD de 21 de maio de 2019 enviada a Sra. Soraya Santos, Deputada Federal, Primeira-Secretária da Câmara dos Deputados.

[7] Cf. Como e quanto os EUA pagam a Cuba pelo aluguel da baía de Guantánamo. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160321_eua_cuba_guantanamo_dgm_cc . Acesso em: 28 ago. 2019.

[8] Consultar: SEREJO LOPES, Danilo. Alcântara, uma luta nacional: ainda é possível defender o fracasso. Disponível em: http://www.justificando.com/2017/12/02/alcantara-uma-luta-nacional-ainda-e-possivel-defender-o-fracasso/

Ampliação da base de Alcântara, no Maranhão, pode afetar quase 800 famílias. Foto: Agência Senado

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