O que a morte do indigenista Rieli Franciscato nos diz sobre os misteriosos povos isolados da Amazônia

Por Fernando Duarte, na BBC

A memória mais vívida que Moisés Kampe tem dos eventos de 9 de setembro é um som. Foi um baque que ele ouviu, segundos antes de perceber que algo terrível havia acontecido. O chefe de Kampe, o renomado especialista brasileiro em assuntos indígenas Rieli Franciscato, jazia imóvel no chão, atingido no peito por uma flecha. Ele seria declarado morto na chegada a um hospital local, minutos depois.

A flecha foi disparada por um grupo de indígenas brasileiros avistados nas proximidades de uma fazenda em Seringueiras, uma pequena cidade com menos de 13 mil habitantes em Rondônia – um dos nove Estados brasileiros pelos quais a Floresta Amazônica se espalha. Fica nas profundezas da floresta tropical, a 500 km de distância do centro urbano mais próximo, a capital Porto Velho.

A cidade rural é um dos muitos assentamentos em torno de uma reserva indígena conhecida como Uru-Eu-Wau-Wau. É um local conhecido por ser habitado por nove povos diferentes – incluindo cinco grupos classificados como “isolados”.

Isolamento

Franciscato estava seguindo o grupo avistado perto da fazenda como parte de seu trabalho para a Funai, agência do governo brasileiro para assuntos indígenas.

Ele era o líder de uma das forças-tarefa cuja missão é monitorar e proteger comunidades como essa.

“Pode ser que esses indígenas nunca saibam que Rieli foi um dos maiores defensores dos direitos indígenas do Brasil”, diz Kampe à BBC.

Ao contrário de países como os Estados Unidos e o México, o Brasil e algumas outras nações sul-americanas têm um número relevante de grupos indígenas classificados como isolados – povos tribais que não tiveram contato pacífico com ninguém de fora.

Podem ser povos inteiros ou grupos menores de tribos já contatadas.

Estima-se que existam mais de 100 desses grupos ao redor do mundo, e mais da metade está na região amazônica.

Eles vivem sem contato contínuo com seus vizinhos e com o mundo.

Pouco se sabe sobre eles – não se sabe nem o número de sua população ou mesmo que línguas falam.

Tentar adivinhar não é realmente uma opção, considerando que o Brasil tem mais de 305 grupos indígenas conhecidos e 274 línguas diferentes.

Sabe-se tão pouco sobre o grupo que supostamente matou Rieli Franciscato, que ele é apenas descrito pela Funai como “os isolados do Cautário”, em referência a um rio da região.

Infelizmente, é mais do que provável que as pessoas isoladas que Rieli encontrou em Seringueiras tivessem más lembranças de encontros anteriores com o mundo exterior.

“Essas pessoas são sempre perseguidas por caçadores, madeireiros e fazendeiros. Não há como saberem quem as está ameaçando ou não”, explica Moisés Kampe.

“Eles nos viram e pensaram que éramos os agressores. Não podemos culpá-los pelo que aconteceu.”

Risco de extinção

Kampe não está exagerando. Especialistas de grupos de direitos indígenas, como a ONG Survival International, dizem que o desmatamento na Amazônia colocou muitas tribos isoladas em risco de extinção.

Os conflitos com invasores são uma das principais ameaças enfrentadas por esses grupos.

Um exemplo comovente é o caso do “Índigena do Buraco”.

Este é um dos apelidos usados ​​por autoridades e pela mídia no Brasil para descrever um homem que, desde 1996, era o único sobrevivente de um povo isolado.

Ele ganhou o apelido graças à sua técnica de cavar buracos para caçar animais. Nem se sabe qual língua ele fala.

Outra ameaça para esses grupos indígenas é a destruição do habitat, algo que afeta seu suprimento de alimentos.

Desde 2014, um povo anteriormente conhecido por seu modo de vida isolado, chamado Mashco-Piro, fez várias excursões para fora de seu território.

Em uma dessas ocasiões, perguntaram abertamente sobre o desaparecimento dos javalis, que são uma de suas principais fontes de alimentação.

“Tribos isoladas são os povos mais vulneráveis ​​do planeta”, diz Sarah Shenker, pesquisadora sênior da Survival International.

“Na Amazônia, populações inteiras de indígenas estão sendo empurradas para o abismo”.

Histórias de ninar

Moisés Kampe é um indígena brasileiro.

Seu sobrenome vem do nome dessa tribo, os Kampe, que há muito tempo se integraram aos não indígenas.

É pelo WhatsApp que Kampe fala à BBC sobre a morte de Rieli Franciscato.

Ele cresceu ouvindo histórias de seus avós sobre os “povos que ainda viviam na floresta” muitos anos depois que outras tribos fizeram contato com os homens brancos.

Esse status mítico ganha intensidade com a decepção com a vida integrada: os indígenas brasileiros são desproporcionalmente afetados por problemas socioeconômicos.

De acordo com o último censo brasileiro, de 2010, embora representem apenas 900 mil pessoas em uma população de 209 milhões do país, quase 20% deles vivem em extrema pobreza.

Entre a população brasileira em geral, a proporção de pessoas que vivem em extrema pobreza é de 6,5%.

As tribos isoladas permanecem misteriosas para Kampe, já que ele nunca viu “um isolado” na vida real – mesmo no dia em que seu chefe foi morto, a flecha veio de modo invisível da floresta.

Indígenas em isolamento voluntário assistem ao helicóptero passar. O grupo vive em uma região protegida nas nascentes dos rios Humaitá e Envira. Foto: Ricardo Stuckert

Uma política de não contato

O principal motivo para a permanência do mistério é que, desde o final dos anos 1980, a Funai adota uma política de não contato que encerrou décadas de encontros guiados com tribos indígenas isoladas.

“Em primeiro lugar, podemos ser muito perigosos para os indígenas simplesmente por estarmos muito próximos deles”, diz Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai, à BBC por meio de uma videochamada.

“Mas o principal problema é que não temos o direito de interferir na maneira como essas pessoas estão vivendo.”

Possuelo, de 80 anos, é o mais famoso “sertanista” do Brasil – um tipo de especialista indígena que é uma mistura de antropólogo, aventureiro e ativista.

No passado, ele participou de expedições que resultaram em primeiros encontros com sete tribos até então desconhecidas. Mas Possuelo também é conhecido como o homem que mudou as regras de interação.

A principal orientação é que as tribos isoladas sejam monitoradas para que as equipes obtenham o máximo de informações possível sobre seu território e hábitos – o que inclui seguir seus rastros e investigar avistamentos.

Mas fazer contato é proibido, a menos que seja iniciado pelos próprios indígenas.

Uma das poucas exceções é deixar para trás ferramentas como machados e facões – eles são presentes muito úteis para tribos que dependem de caça e da agricultura de pequena escala.

A ameaça de um simples resfriado

“Sim, praticamente acabamos com o sentimento de glória pessoal de fazer contato com grupos de pessoas que às vezes viviam da mesma forma que seus ancestrais antes da chegada dos conquistadores europeus no século 16”, diz Possuelo.

“Mas se realmente queremos proteger essas pessoas, precisamos deixá-las em paz. Raramente o contato beneficia os indígenas. Cada vez que acontece, eles perdem um pouco da cultura”, acrescenta.

Como o próprio Possuelo aprendeu durante uma operação com uma tribo amazônica em 1979, um simples resfriado pode se espalhar e matar rapidamente as pessoas desses grupos, pois eles não têm contato regular com muitas doenças que temos – e consequentemente não têm imunidade.

“Aquele episódio de 1979 me fez mudar totalmente a maneira como fazíamos as coisas em relação às tribos isoladas. Tínhamos tomado todas as precauções, mas os indígenas que nos encontraram ainda se infectaram e alguns deles morreram em pouco mais de 24 horas.”

Nesta época de pandemia de covid-19, isso é ainda mais importante.

Há outro argumento convincente a favor do aumento da proteção para as tribos isoladas: vários estudos mostraram que as terras indígenas são as áreas menos desmatadas na Amazônia.

“Eles são os verdadeiros guardiões da natureza”, diz Sarah Shencker, da Survival International.

“São os verdadeiros especialistas em preservação. É a vida deles, e estão contribuindo para o bem-estar do planeta como um todo.”

Uma administração hostil

No entanto, o presidente Jair Bolsonaro expressou publicamente seu apoio a uma maior exploração comercial da Amazônia. E essa política inclui avançar sobre terras indígenas.

Desde que ele assumiu o cargo, grupos de direitos indígenas relataram um aumento nos episódios de conflito envolvendo povos indígenas em áreas rurais.

O presidente também prometeu que não haverá novas reservas protegidas “enquanto ele estiver no cargo”.

O governo Bolsonaro até mesmo transferiu a responsabilidade de tomar decisões sobre aprovações de terras indígenas do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura – uma mudança que foi posteriormente revertida pelo Supremo Tribunal Federal.

Outra decisão polêmica foi nomear um ex-missionário evangélico para chefiar o departamento da Funai para tribos isoladas.

Ricardo Lopes Dias trabalhou na Amazônia como parte de um programa de conversão de indígenas ao cristianismo muito criticado e financiado por uma organização americana.

“As tribos isoladas merecem proteção, não um novo processo de colonização”, disse Joenia Wapichana, a única parlamentar indígena no atual congresso, à BBC na época.

“Algo muito errado deve ter acontecido”

Rieli Franciscato foi uma figura famosa em Seringueiras, pequena cidade perto de onde morreu.

Ele fez amizade com os locais em sua tentativa de manter a paz entre os fazendeiros e os indígenas.

Seus conhecidos incluem os pais de Dhuliana Pereira, de 18 anos, donos de uma pequena fazenda perto da divisa com a reserva.

Foi Dhuliana quem viu o grupo indígena no dia 9 de setembro enquanto eles vagavam pelo quintal de um vizinho.

“Meus pais moram aqui há mais de 25 anos e nunca tinham visto os indígenas isolados”, diz ela à BBC.

“Gritamos com eles para tentar fazê-los ir embora. Não sabíamos se outras pessoas entrariam em confronto com eles”, acrescentou ela.

Preocupações

A notícia da morte de Rieli chocou Dhuliana, principalmente porque foi ela e seu pai que alertaram as autoridades. Mas ela parece mais preocupada com o efeito que novas incursões terão em Seringueiras.

As autoridades locais pediram ao público que se abstenha de se envolver com os indígenas se eles retornarem e também alertaram que, de acordo com a legislação brasileira, a pessoa que matou o perito não pode ser processada se a polícia concluir que eles são de um grupo indígena isolado.

“Algo muito errado deve ter acontecido na floresta para aqueles indígenas virem para cá, mas alguns de meus vizinhos estão vendo isso como uma simples invasão de suas propriedades”, diz ela.

“O que as pessoas vão fazer se os indígenas continuarem voltando?”

Rieli Franciscato, um defensor dos direitos indígenas, morreu enquanto tentava garantir que não ocorresse nenhuma escalada nessas tensões.

Indígenas em isolamento voluntário assistem ao helicóptero passar. O grupo vive em uma região protegida nas nascentes dos rios Humaitá e Envira. Foto: Ricardo Stuckert

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

14 + três =