Na Conjur
A defesa da supremacia constitucional e do Estado de Direito contra maiorias eventuais — que porventura tenham o controle do Executivo e do Legislativo — é uma das maiores responsabilidades institucionais do Poder Judiciário. No longínquo século 17, o juiz Edward Coke ensinou uma importante lição por meio do julgamento do Bonham’s case. Segundo esse juiz inglês, diante de qualquer violação do common law, seja ela proveniente do monarca ou do Parlamento, os tribunais deviam assegurar a supremacia do Common Law. No entanto, no mês em que o Brasil aproxima-se rapidamente dos 300 mil mortos por Covid-19, sendo que muitos desses casos poderiam ser evitados se o país não fosse governado por um negacionista da ciência, a maioria dos desembargadores da 3ª Turma do TRF-5 e a unanimidade dos desembargadores da 6ª Turma do TRF-3 preferiram se portar de maneira subserviente diante do negacionismo histórico do governo.
Na decisão do TRF-5, prevaleceu o entendimento de que o governo federal e as Forças Armadas têm o direito constitucional de celebrar o golpe de estado que deu origem à ditadura militar. De acordo com o recurso apresentado pela AGU e julgado procedente pelo tribunal, “[…] o Estado democrático de Direito (artigo 1º, caput, Constituição da República) pressupõe o pluralismo de ideais e projetos. Querer que não haja a efeméride para o dia 31 de março de 1964, representa impor somente um tipo de projeto para a sociedade brasileira, sem possibilitar a discussão das visões dos fatos do passado — ainda que para a sua refutação”.
Desse modo, no entendimento da AGU, a defesa de um projeto político que negou o Estado de Direito e que se impôs por meio da tortura e do assassinato de seus opositores está assegurada pela Constituição de 1988. Seria como se a democracia assegurasse o direito de defender a sua própria destruição. Posição com a qual o TRF-5 concordou, ao sustentar que a nota comemorativa do golpe civil-militar de 1964, publicada na página da internet do Ministério da Defesa, “(não) ofende os postulados do Estado democrático de Direito nem os valores constitucionais da separação dos Poderes ou da liberdade, de modo a ensejar a interferência do Judiciário em sede de ação popular” [1]. Ou seja, segundo a posição do TRF-5, realizar a efeméride de um regime nefasto que suspendeu liberdades, fechou o Congresso Nacional e acabou com a autonomia funcional do Poder Judiciário não seria ofensivo às liberdades e à separação dos poderes asseguradas pela Constituição de 1988.
Na outra decisão da Justiça federal, o TRF-3 reverteu a sentença que havia condenado a União a pagar uma indenização no valor de R$ 150 mil à viúva do operário Antonio Torini. Em agosto de 1972, Torini foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) nas dependências da Volkswagen, empresa na qual trabalhava na época. O motivo da prisão de Torini foi sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro. De 1972 a 1975, Torini permaneceu nas mãos do órgão de repressão política da ditadura e foi torturado por seus agentes. Após sua libertação, a empresa o demitiu por entender que ele não era confiável. Diante de tudo isso, o nome de Torini passou a constar nas listas sujas trocadas entre as empresas e ele nunca mais conseguiu encontrar um emprego. Viveu desempregado até o ano da sua morte, em 1998.
Aqui é importante recordar que a Volkswagen apoiou a ditadura durante os 21 anos que os militares permaneceram no poder. Tanto é que, com base em um relatório feito externamente pelo historiador Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, a própria empresa reconheceu os laços que manteve com o regime de exceção e os benefícios econômicos que recebeu por sua colaboração [2]. Por esse motivo, a Volkswagen homologou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão — órgão do Ministério Público Federal (MPF) — que a obrigou a pagar R$ 16,8 milhões para a Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Volkswagen do Brasil [3].
Acompanhando a mesma tendência negacionista do TRF-5, o TRF-3 entendeu que quem combateu a ditadura militar assumiu o risco de ser perseguido pelos órgãos de repressão, pois encontrava-se naquela época em discordância com o aparato legal autoritário imposto pelo regime, como no caso dos atos institucionais e da Lei de Segurança Nacional. De acordo com o relator, o desembargador Luis Antonio Johonsom Di Salvo, “isto é dito para que fique claro que a prisão, a incomunicabilidade, o julgamento e o banimento sofridos por Torini eram as consequências jurídicas de seus atos que tendiam à implantação de uma ditadura comunista no Brasil, em confronto com a opção política vigente. Logo, não há espaço para indenização do agente dessas condutas a ser paga, via judicial, pela União, eis que o infrator das leis vigentes era Antonio Torini, vinculado a movimentos e partidos defensores da ditadura do proletariado. Tanto era infrator, que foi anistiado” [4]. Todas essas considerações apresentadas pelo relator dão a impressão de que o Brasil vivia um momento de normalidade constitucional em plena ditadura militar.
É importante explicar para o desembargador Johonsom Di Salvo que desde John Locke — que, por sinal, não era um bolchevique — a luta contra o despotismo sempre foi vista como uma ação legítima. Em seu “Segundo tratado sobre o governo civil“, um clássico da filosofia política liberal, Locke defendeu que o direito de resistência contra um tirano é um direito que deve ser conservado por todos os indivíduos mesmo após a realização do contrato social. Nesse sentido, a resistência contra um regime sem legitimidade democrática e que se impôs por meio da violação da Constituição de 1946 não foi uma atitude extremista, mas, sim, um meio de defesa da liberdade, como o liberal John Locke já ensinava no século 17. E aqui mais uma vez é importante esclarecer um fato histórico. Pessoas como Torini, que militavam no PCB, não resistiram à ditadura com armas nas mãos, até porque o PCB foi contra a luta armada [5]. O que Torini utilizou para se opor ao regime de exceção foi apenas as suas ideias. Algo considerado muito perigoso por um regime político que se constituiu na base da intolerância ao pluralismo político.
O movimento civil-militar, que depôs o presidente constitucional João Goulart em 1964, foi um golpe de Estado. Somente os terraplanistas da História e do Direito o denominam de outra forma. A Constituição de 1946 foi violada para que os militares pudessem assumir o poder. Afinal, não havia previsão constitucional para que as Forças Armadas pudessem afastar um presidente da República eleito democraticamente, muito menos para que os militares agissem como poder moderador, um argumento estapafúrdio e autoritário que até hoje é apresentado pelas viúvas da ditadura militar. O que surgiu após o carnaval do golpe foi uma longa quarta-feira cinzas que durou 21 anos [6], com a suspensão dos direitos e garantias fundamentais e a imposição dos atos institucionais. Desse modo, negar a natureza ditatorial do regime político instaurado em 1964 também não passa de terraplanismo.
Diante disso, como é possível que uma parcela do Judiciário brasileiro concilie a Constituição de 1988 com a defesa do autoritarismo? Como é possível que o Judiciário negue uma reparação pecuniária, à família de um perseguido pela ditadura, com o fundamento de que ele teria violado as leis do regime de exceção? O juiz Coke dizia que os juízes deviam se comportar como verdadeiros leões para custodiar, frente ao rei, os direitos dos cidadãos [7]. Não foi essa a postura que o TRF-5 e o TRF-3 assumiram nos dois casos citados acima. Como se não bastasse o negacionismo de um presidente da República que vira as costas para a ciência diante de uma crise sanitária gravíssima que atinge o mundo todo; ainda temos que nos deparar com o negacionismo histórico, que por sinal acaba obscurecendo o significado democrático da Constituição de 1988. Afinal, se alguns juízes ainda não perceberam que a Constituição de 1988 é a antípoda da ditadura militar, e que a celebração do autoritarismo por órgãos públicos não está assegurada pelo Estado de Direito, isso é sinal de que o país caminha rumo ao abismo.
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[1] Revista Consultor Jurídico. TRF-5 autoriza governo a manter texto que celebra golpe de 1964. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-17/trf-autoriza-governo-manter-texto-celebra-golpe-1964. Acesso em: 19/03/2021.
[2] KOPPER, Christopher. A VW do Brasil durante a Ditadura Militar brasileira 1964-1985: uma abordagem histórica. Alemanha: Universidade de Bielefeld. Faculdade de História, Filosofia e Teologia, 2017. Disponível em: https://www.volkswagenag.com/presence/konzern/documents/Historische_Studie_Christopher_Kopper_VW_B_DoBrasil_14_12_2017_PORTUGIESISCH.pdf. Acesso em: 19/3/2021.
[3] Revista Consultor Jurídico. Volkswagen vai pagar R$ 36,3 milhões por ter colaborado com a ditadura brasileira. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-15/volkswagen-pagar-36-milhoes-colaborar-ditadura. Acesso em: 19/03/2021.
[4] Revista Consultor Jurídico. Quem combateu a ditadura assumiu o risco de ser perseguido, diz TRF-3. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-13/quem-combateu-ditadura-assumiu-risco-perseguido?fbclid=IwAR3lSgqFKvPMlmhOqwZdjabEJIETFwLFah47BDGXOfr6iXpKN9WCjZTkoXw. Acesso em: 19/03/2021.
[5] GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 5ª ed., São Paulo: Ática, 1998.
[6] NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do Regime Militar brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2014, p. 67.
[7] MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad: história del constitucionalismo moderno. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p 89.
Danilo Pereira Lima é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar), doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica, vinculado ao CNPq, e do grupo DASEIN — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.
Ilustração: MPF