A questão indígena no centro da crise humanitária: os direitos indígenas nas mãos do STF

A INA é amicus curiae no julgamento que começa hoje e é decisivo para o rumo dos direitos dos povos indígenas

Em INA

O Supremo Tribunal Federal (STF) está por julgar tema da maior importância para os direitos indígenas. Trata-se do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, no qual se discute o Tema 1031, que tem por objeto a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no art. 231 do texto constitucional brasileiro. O julgamento está pautado para hoje, 30 de junho.

Os povos indígenas e seus aliados defendem a integridade dos direitos originários, que são aferidos por vetores antropológicos. Seus adversários, capitaneados pelos ruralistas e alguns governos estaduais, atacam com a tese do marco temporal, que restringe a aferição da ocupação indígena ao marco de 05 de outubro de 1988, data da promulgação da CF/88. O julgamento é decisivo para o rumo da matéria indígena nas próximas décadas, num contexto de sistemática violação dos direitos fundamentais desses povos, em que a paralisação das demarcações se soma à grave deterioração da fiscalização ambiental e das normas de proteção dos recursos naturais, e ao avanço concreto, predatório e violento de garimpeiros, madeireiros e grileiros sobre as terras indígenas.

O julgamento se dá também em contexto de escalada de perseguição[1] contra indígenas e indigenistas. Com a maioria dos postos de gestão da Funai confiada a pessoas de fora do quadro, sem nenhuma experiência com a questão indígena, vem sendo imposta uma política que parece considerar o servidor público como inimigo da sua própria instituição. Processos administrativos disciplinares (PADs) de caráter meramente persecutório são instaurados e relatos e denúncias sobre assédio e perseguição se multiplicam.

Com atos praticados pela gestão da Funai e pelo governo federal, com o intuito de abrir as Terras Indígenas ao agronegócio, à mineração e grandes empreendimentos, além de favorecer a grilagem de terras e dilapidação do patrimônio da União, há elementos concretos para indicar que a Funai talvez seja um dos maiores exemplos de assédio institucional, com o desvio de sua missão de proteção aos direitos indígenas.

Violência contra os povos indígenas

A Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), é amicus curiae no leading case. Reunindo estudos de casos concretos e diversos exemplos etnográficos, a INA sustenta que a tese do marco temporal é um critério fictício e artificial, incapaz de abranger toda a complexidade da matéria. O meticuloso estudo da INA demonstrou a exigência de uma hermenêutica sofisticada que seja capaz de passar pelo escrutínio de casos singularmente considerados.

O caso-paradigma elegido para tratar da matéria constitucional é o da Terra Indígena (TI) Ibirama Laklãno (SC), de ocupação tradicional dos Xokleng, Kaingang e Guarani. Seu exemplo estampa de maneira robusta e inequívoca a comprovação quanto à situação de sistemática usurpação do patrimônio indígena, sucessivas diminuições do território indígena, chacinas, vendas a non domino, remoções forçadas etc. Este caso específico e os demais apresentados pela INA são particularmente emblemáticos porque exigem que o Poder Público não deve proceder a interpretações restritivas, sem aferir as circunstâncias de interdição da fruição dos direitos originários, conforme o caso concreto. Para tanto, deve recorrer a perícias técnicas capazes de vasculhar fontes escritas e não escritas para elucidar o histórico de expulsões, massacres, confinamentos e remoções que costuma caracterizar a violência fundiária sofrida pelos povos indígenas.

Deve, além disso, atentar para históricos de depopulação causados por matanças e epidemias advindas da pressão colonizadora (violência física e epidemiológica) — como fatores que restringiram a circulação dos povos indígenas pelas terras —, obstaculizando fortemente sua reprodução física e cultural. Ademais, é imprescindível considerar a violência socioambiental, por meio do levantamento de episódios de desmatamento e degradação ambiental, identificando seus impactos para as presentes e futuras gerações.

A falácia da Tese do Marco Temporal

Estudos sérios desses tipos permitem identificar a reverberação das citadas formas de violência sobre as dinâmicas sociocosmológicas, etnoambientais e econômicas de grupos indígenas: desarranjos, por um lado; estratégias de resistência e sobrevivência, por outro. Tudo etnograficamente detectável, na contramão de generalizações jurídicas à moda do “acabaremos tendo de demarcar Copacabana como terra indígena”.

Nunca se viu algum grupo indígena estar vinte, trinta anos a reivindicar que se lhe demarque Copacabana, ou alguma outra área-símbolo da urbanidade brasileira. Sustentar uma reivindicação através das gerações não é algo que se faça sob o regime da brincadeira, da farsa, da fraude. O marco temporal, o “não demarcar nem mais um centímetro” não se ocupa dessa quimera. Muito noutra direção, ele é a expressão retórica de um avanço de fato sobre as terras indígenas.

Nos últimos anos, judicializações objetivando anular demarcações com base na tese do marco temporal passaram por um boom, acentuando vertiginosamente a violência fundiária, física e socioambiental. Interesses econômicos pressionam o conjunto inteiro de procedimentos demarcatórios, inclusive os mais antigos, há muito tempo já finalizados. Vejam-se os exemplos da TI Parabubure (MT), homologada em 1991, da TI Apiaká/ Kayabi (MT), regularizada em 1991, da TI Ribeirão Silveira (SP), homologada em 1987, e da TI Karajá de Aruanã (GO), declarada em 1996. Não são poupadas nem mesmo as TIs destinadas à proteção de índios isolados, como nos casos das TIs Kawahiva do Rio Pardo (MT), TI Piripkura (MT) e TI Ituna/Itatá (PA).

Sobre os indígenas isolados, a exigência de comprovação da presença física na data de 05/10/1988 é particularmente absurda e grave. Há grupos isolados cuja localização o Estado brasileiro somente veio a tomar ciência após 1988, e outros que ainda carecem de confirmação. Além disso, para os isolados, a tese do marco temporal significa o fim da política de respeito ao isolamento voluntário, e uma sentença de, no mínimo, morte cultural.

Para além do caso dos isolados, deve-se reconhecer aqueles em que os modos de ocupação indígena diferem bastante do tipicamente civilista, envolvendo alternâncias, longas expedições, rotatividades — o que, no entanto, não retira o caráter da presença permanente numa determinada região. Ora, os direitos originários são direitos coletivos e congênitos e, como tal, nascem e morrem com um povo, sendo que tais direitos são imprescritíveis.

Os procedimentos demarcatórios estão orientados por técnicas e procedimentos de saberes científicos específicos, extrapolando, portanto, as capacidades do saber estritamente jurídico. E ao contrário do que supõem aqueles que questionam os direitos territoriais indígenas, há critérios concretos e objetivos para a identificação e delimitação dos ambientes e paisagens indígenas a partir dos modos da ocupação indígena.

Nesse sentido, é imprescindível um diagnóstico que vá além dos recortes fotográficos ou reprográficos em data determinada, sendo de fato capaz de retratar fidedignamente os processos de destruição e os diversos tipos de violência exercidas contra os povos indígenas, isto é, vetores esses que podemos representar como “pesados maquinários” em alusão às pressões econômicas que avançam sobre as terras indígenas derrubando partes substantivas dessa rica floresta pluriétnica.

Compreender a tradicionalidade da ocupação indígena exige estudos densos

A seguir, elencamos alguns dos pontos centrais identificados pela INA para uma adequada hermenêutica que seja capaz de resguardar a integridade do indigenismo constitucional, considerando a complexidade e especificidade da matéria, bem como o respeito à sua história constitucional:

1) há a necessidade de se levar à sério a matriz principiológica contida no caput do art. 231, a fim de não se confundir os critérios adotados pela Constituição com conceitos civilistas, daí falar-se em “Indigenismo Constitucional”;

2) os critérios que definem o conceito constitucional de terras de ocupação tradicional (§ 1º do art. 231) devem ser compreendidos de maneira interpenetrada e entrelaçada, como enraizamentos que se entrecruzam, descabendo qualquer hierarquização entre eles, daí falar-se em inadequação da teoria dos círculos concêntricos (círculos justapostos em ordem de precedência entre os critérios);

3) não se deve condicionar os critérios do § 1º do art. 231 às imputações de conceitos civilistas autônomos, vez que os conceitos do Indigenismo Constitucional têm por guias os princípios norteadores do caput do art. 231 (o necessário respeito às tradições, mundivisões, línguas, organização social dos povos indígenas) e por guardiões os princípios do § 4º (inalienabilidade e indisponibilidade das terras de ocupação tradicional e imprescritibilidade dos direitos originários e do reconhecimento das tradições, mundivisões, línguas, organização social dos povos indígenas);

4) a CF/88 adotou vetores antropológicos e não cronológicos: usos, costumes e tradições de cada povo – daí a necessidade de se prevalecer um efetivo diálogo intercientífico;

5) ao adotar vetores antropológicos, o Constituinte pretendeu justamente evitar se enveredar por complexidades acerca da imemorialidade da ocupação (ou substitutivos temporais);

6) a análise de vários casos etnográficos demonstra que as compreensões endógenas de tempo-espaço de diversos povos indígenas não estão necessariamente contidas nas imputações homogêneas de temporalidade ocidentais, o que traz um problema sem precedentes para as pretensões de se instituir um marco temporal alheio às suas mundivisões;

7) os direitos originários são direitos coletivos e congênitos e, como tal, nascem e morrem com um povo, sendo que tais direitos são imprescritíveis;

8) os procedimentos administrativos realizados por equipes multidisciplinares estão orientados por técnicas e procedimentos de saberes científicos de diversas áreas, como a antropologia, a etnohistória, a arqueologia, a linguística, as ciências ambientais etc, extrapolando, portanto, as acepções e compreensões do saber estritamente jurídico. E além disso, ao contrário do que seus adversários supõem, há critérios concretos e objetivos no âmbito dos trabalhos das equipes multidisciplinares para a identificação e delimitação dos ambientes e paisagens indígenas a partir dos modos da ocupação indígena;

9) há o problema em se limitar o Indigenismo Constitucional pelo recorte de um “fato” indígena, já que o chamado “fato” geralmente retratado pelo “click” da semântica narrada pelos não indígenas tende inevitavelmente a ocultar ou apagar inúmeros elementos atômicos e relações diferenciais de dentro do âmago daquilo que se pode vagamente denominar pelo termo “tradicionalidade”;

10) os intrincados cenários anteriores ao fatídico momento capturado pelo “click” em data escolhida (05/10/1988), incluindo os frequentes históricos de violências e esbulhos contra os indígenas, tendem a desaparecer com uma certa dominância dos quadros instantaneamente retratados das semânticas feitas pelos não índios;

11) o critério de um marco temporal é alheio à moldura do texto constitucional e, na prática, atua como um mecanismo de captura semântica sobre todo o conjunto normativo, colocando todos os procedimentos demarcatórios (inclusive os mais antigos, finalizados há bastante tempo) em absoluta insegurança jurídica;

12) essa captura semântica impõe uma espécie de suspeição inexorável sobre todos os procedimentos demarcatórios, conforme se verifica no boom de judicilizações sobre inúmeros procedimentos administrativos (alguns, aliás, finalizados no começo na década de 1990), desconsiderando as especificidades técnicas de cada etnia e os modos de ocupação singulares de cada povo;

13) essa captura semântica faz inverter a lógica constitucional da anterioridade dos direitos primários e congênitos, fazendo com que, ao invés de se exigir a comprovação por parte dos ocupantes não indígenas de que sua ocupação não decorre de desocupação forçada dos indígenas e de práticas ostensivamente atentatórias contra os direitos existenciais e territoriais dos indígenas, passa na prática a exigir dos indígenas prova quanto a um direito que em tese é congênito ao seu povo e anterior ao próprio texto constitucional;14) essa captura semântica, ademais, tende a excluir da análise toda a dimensão do esbulho e da violência cometidos contra os povos indígenas;

15) além disso, esse mecanismo engrenado pelo binômio “marco temporal-renitente esbulho” deixa de levar em consideração toda a dimensão das possibilidades e formas de resistência desenvolvidas e encontradas como estratégias de sobrevivência pelos povos indígenas ao longo do tempo, na medida em que o judiciário passa a reconhecer tão somente a violência física e a formalização de disputas judiciais como formas de resistência, quando se sabe que a violência física nem de longe é a única forma de luta e resistência e quando se sabe que antes da CF/88 os indígenas não detinham capacidade civil para ingressar com ações judiciais, sendo que os órgãos que os representavam sabidamente deixavam de fazê-lo;

16) a exigência de comprovação da presença física na data de 05/10/1988 implica um inevitável óbice aos direitos territoriais de povos indígenas isolados, conforme anteriormente apontado.

Em síntese, na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), a tese do marco temporal é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar, levando a um processo de contínua e sistemática destruição da cultura, dos modos de vida e das condições para exercer os direitos existenciais de um povo enquanto coletividade sociocultural diferenciada.

Como servidores da Funai, nos alinhamos firmemente com a defesa da Constituição Federal e dos direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Fundamental fazê-lo, sobretudo no quadro atual, em que o órgão indigenista tem se distanciado da sua missão constitucional, defendendo mais os interesses de proprietários rurais do que os direitos indígenas. A sociedade brasileira precisa saber que a Funai não tem a cara apenas do delegado da Polícia Federal que hoje a preside, desavergonhado em solicitar inquéritos criminais contra lideranças indígenas e, agora, também servidores do próprio órgão. Respiramos fundo e seguimos, com confiança na Justiça, na Constituição e, em particular, neste momento, no que sairá do Plenário do STF.

Nas mãos do STF foi colocado o destino dos povos indígenas. E no centro da crise humanitária se encontra a questão indígena. Tal crise sem precedentes se manifesta não apenas como climática e ambiental, mas também como social, política e sobretudo crise ética. Mas os povos indígenas não são o problema; são, muito ao contrário, parte fundamental para a solução. Só há futuro plausível com os povos indígenas, respeitando-se suas formas de vida.

O que aí está não pode permanecer, porque é moribundo. A terra clama por transformação, para formas mais saudáveis de interação, que não pautadas pela mera relação de exploração predatória, de egocentrismo e extenuação dos recursos naturais.

“Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei,
transformai as velhas formas do viver”. (Gilberto Gil)

Foto: José Cruz/Agência Brasil.

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