Por Leandro Prazeres. da BBC News Brasil em Brasília
Nesta semana, a reunião do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) chamou atenção de ambientalistas e defensores dos direitos humanos. A pauta do órgão, que é vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), da ministra Damares Alves, previa a discussão sobre os critérios para incluir garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais.
O fato gerou polêmica por conta do apoio público do presidente Jair Bolsonaro a garimpeiros e ruralistas e pelo fato de os dois grupos serem frequentemente associados à destruição do meio ambiente. O ministério negou que a iniciativa tenha partido dele e disse que o órgão teria sido procurado por garimpeiros e pecuaristas que buscam o reconhecimento como povos e comunidades tradicionais.
Na quarta-feira (8/12), o MMFDH divulgou uma nota informando que teria sido procurado por representantes de garimpeiros e pecuaristas pedindo o reconhecimento como comunidades tradicionais. A nota não informava, porém, que grupos seriam esses.
Na nota, o ministério disse ser uma “temeridade” o reconhecimento de garimpeiros e pecuaristas como povos e comunidades tradicionais.
A BBC News Brasil pediu que o ministério informasse os nomes das entidades responsáveis pelos pedidos em nome dos garimpeiros, mas o órgão não enviou resposta.
Motivos
O que estaria levando esses dois grupos a tentarem obter esse status? Que vantagens garimpeiros e criadores de gado teriam ao serem “reconhecidos” como povos tradicionais?
- Os projetos herdados da ditadura militar que ameaçam terras de indígenas isolados
- Estudo mostra campeões de desmatamento cada vez menos desenvolvidos na Amazônia
- A etnia indígena brasileira à beira da extinção que pode estar reduzida a só 3 pessoas
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que essa manobra teria dois objetivos: legitimar a presença desses grupos em territórios sensíveis e conseguir tratamento diferenciado do estado; e esvaziar a legislação atual sobre o assunto.
De acordo com o decreto nº 6.040 de fevereiro de 2007, povos e comunidades tradicionais são “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais” e “usam territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução” e utilizam “conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
Os representantes mais conhecidos dessas populações são os povos indígenas e quilombolas, mas, no Brasil, há uma série de outras comunidades que se reconhecem como tradicionais como pescadores caiçaras, que vivem em algumas regiões do litoral brasileiro.
A legislação não estabelece procedimentos e critérios rígidos para que uma determinada comunidade seja considerada tradicional. A política nacional sobre o assunto foi criada em 2007 e um dos seus principais pontos é a possibilidade de “autorreconhecimento”.
Para a ex-secretária de extrativismo do Ministério do Meio Ambiente e atual gerente-adjunta da estratégia de povos indígenas e comunidades tradicionais da organização não-governamental The Nature Conservancy, Juliana Simões, essa flexibilidade é uma forma de permitir que grupos historicamente marginalizados possam se reconhecer como tradicionais e evita que o estado impeça esse movimento.
“A possibilidade de autorreconhecimento é importante porque não permite que o estado possa definir, de forma discricionária, quem é e quem não é uma comunidade ou povo tradicional”, afirmou.
Se por um lado a legislação não prevê um órgão que centraliza a tarefa de determinar quem é e quem não é povo tradicional, por outro esse reconhecimento acontece caso a caso e em diferentes instâncias.
No caso de povos indígenas, cabe à Fundação Nacional do Índio (Funai) avaliar, por meio de estudos antropológicos, pleitos de populações que queiram ser reconhecidas como tais. No caso de quilombolas, quem cuida do assunto é a Fundação Palmares. No caso de povos que vivam em unidades de conservação federal, por exemplo, o responsável por fazer essas avaliações é o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Pecuaristas contra mineradora na origem da polêmica
Parte dessa história começou bem longe de Brasília ou mesmo da Amazônia, para onde boa parte das atenções estão voltadas. Há alguns anos, uma mineradora especializada na extração de fosfato tenta se instalar no município de Lavras do Sul, no interior do Rio Grande do Sul.
A ideia era instalar uma mina a céu aberto para a retirada do mineral utilizado para a fabricação de fertilizantes.
Um grupo de pecuaristas que vive na região do Pampa gaúcho se manifestou contra a iniciativa alegando que a mina colocaria em risco o seu modo de vida. Desde 2015, pecuaristas familiares da região buscavam o reconhecimento do governo federal como povo tradicional.
Em 2020, o Ministério Público Federal (MPF) elaborou um laudo pericial antropológico afirmando que aquele grupo de criadores de gado apresentava características condizentes com o conceito de povos e comunidades tradicionais.
De acordo com a convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, essas populações precisam ser consultadas diante de obras ou empreendimentos que possam afetá-las.
Para o MPF, esse reconhecimento seria importante porque se os pecuaristas não fossem considerados povos tradicionais, o caso sairia da esfera federal e seria tocado pelas autoridades estaduais.
De acordo com uma nota dos representantes da sociedade civil do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), o pedido para o órgão deliberasse sobre os critérios para reconhecimento de pecuaristas como povos tradicionais teria o respaldo do MPF.
Procurado, o MPF no Rio Grande do Sul não respondeu.
O coordenador do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, Fernando Aristimunho, diz lamentar que o pleito dos pecuaristas familiares da região tenha sido misturado com o de garimpeiros.
“Nós somos contra a pecuária que destroi a Amazônia. Nossa pecuária é totalmente diferente. Aqui, há uma harmonia com o meio ambiente, com o bioma Pampa. A gente lamenta que nosso pleito tenha sido misturado com o de garimpeiros. Não temos nada a ver com isso”, afirmou.
O que não se sabe até o momento, no entanto, é como é a categoria dos garimpeiros foi incluída na pauta da reunião do conselho. A dúvida surge porque nem o pedido dos pecuaristas familiares do Pampa e nem atuação do MPF gaúcho fazem qualquer menção a garimpeiros.
“Não sei quem está por trás disso. Todos nós ficamos surpresos”, disse Raimundo Nonato Pereira da Silva, conhecido como Taata Konmannanjy, representante da Associação Nacional Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (ACBANTU) e membro do conselho.
Quais as vantagens de ser considerado povo tradicional?
A doutora em Direito Sheilla Borges Dourado estuda os direitos dos povos tradicionais há mais de uma década. Durante esse período, ela percorreu diversos estados da Amazônia. Ela explica que a possibilidade de pleitear políticas públicas ou até mesmo proteção do estado são as principais vantagens do reconhecimento como povo tradicional.
“Esse reconhecimento abre a possibilidade para que eles tenham acesso a recursos e políticas públicas específicas. Há algum tempo, por exemplo, tínhamos verbas de bancos públicos específicas para populações tradicionais. Eles (garimpeiros e pecuaristas) querem entrar nesse balaio para se aproveitar desse reconhecimento legal”, afirma.
Outro motivo pelo qual esse reconhecimento pode estar sendo buscado é uma tentativa de legitimar a presença de pessoas que não deveriam estar em determinados territórios.
Isso seria especialmente importante para garimpeiros que vêm atraindo a atenção da opinião pública nos últimos anos por conta do rastro de destruição deixado em terras indígenas e em rios da Amazônia.
Nas últimas duas semanas, após imagens revelaram centenas de balsas de garimpo irregulares no rio Madeira, centenas de garimpeiros procuraram políticos na tentativa de legalizar suas atividades. Parte do argumento usado por eles era, justamente, o fato de atuarem como garimpeiros na região há muitas décadas.
“Eles não querem mais ser reconhecidos como invasores, como pessoas que ameaçam o modo de vida tradicional. Não querem mais ser vistos como os de fora, mas como os de dentro. É uma estratégia ardilosa”, afirmou.
A professora diz desconhecer base científica para enquadrar garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais. Isso acontece, em parte, porque o conceito de tradicionalidade, ela explica, está fortemente associado ao uso sustentável dos recursos naturais do território onde essas pessoas vivem.
“Não vejo base para esses pedidos prosperarem. A ideia de povo tradicional está muito associada à sustentabilidade. Eu interpreto esse movimento como uma apropriação, uma tentativa de distorcer um mecanismo criado para proteger pessoas”, explica.
Juliana Simões explica que, em tese, garimpeiros que sejam reconhecidos como povos tradicionais na Amazônia poderiam reivindicar a sua permanência nessas regiões e a possibilidade de continuarem a explorar os minérios da região livremente.
“Isso tudo é uma disputa fundiária. É disputa por terra e recursos. No caso dos garimpeiros, eles podem pleitear território para continuar garimpando sem serem incomodados. No limite, seria necessária uma alteração da lei, mas eles poderiam reivindicar a criação de reservas garimpeiras na Amazônia”, diz.
Juliana Simões alerta para um outro perigo: o esvaziamento do conceito de autorreconhecimento. Segundo ela, quando o conselho se propõe a estabelecer critérios sobre quem pode quem não pode ser considerado povo tradicional, isso abre margem para o uso indevido desses conceitos.
“Não é atribuição do conselho fazer essa deliberação. Para mim, isso é como se fosse um cavalo de troia. Eles introduziram essa discussão para criar esses mecanismos de reconhecimento, mas isso vai acabar esvaziando a política de autorreconhecimento. Amanhã ou depois, isso pode ser usado contra povos que, efetivamente, sejam tradicionais”, afirmou.
Em meio à polêmica, o conselho decidiu não criar a câmara técnica para debater o pleito de pecuaristas e garimpeiros.
Em nota divulgada na quarta-feira (8/12), o MMFDH disse que a inclusão do debate sobre a criação de uma câmara temática para estabelecer critérios de reconhecimento de pecuaristas e garimpeiros como povos tradicionais foi feita pela presidência do conselho, exercida por Carlos Alberto Pinto Santos.
Os representantes da sociedade civil que fazem parte do conselho divulgaram uma nota nesta quinta-feira (9/12) afirmando que a inclusão do tema não foi feita pela presidência do conselho, mas pela Secretaria Nacional de Política de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR), sob o comando do ministério.
Em meio à polêmica, o CNPCT decidiu criar um grupo de trabalho com quatro representantes para discutir, ao longo de um ano, critérios para o reconhecimento de povos e comunidades tradicionais. O resultado do grupo será avaliado em dezembro do ano que vem.
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Ilustração: De Olho nos Ruralistas