A escravatura atual chama-se fome. Por Elaine Azevedo

O colonialismo aqui iniciou em 1500 com a invasão portuguesa e, como Estado e como nação, seguimos desqualificando as questões estruturais responsáveis pela fome e o sofrimento social do povo

No Le Monde Diplomatique Brasil

A escravatura atual chama-se fome.
Carolina de Jesus

No início de dezembro, aconteceu na Faculdade de Saúde Pública da USP o Seminário “75 Anos da Geografia da Fome”, promovido pela Cátedra Josué de Castro. A questão que moveu o encontro foi “o que mudou e o que precisa mudar desde Josué de Castro até hoje – de modo a erradicar a fome no Brasil?”.

Fui convidada a participar de uma mesa e minha opção foi falar do que não mudou. E não foi há 75 anos. Apresentei uma racionalidade colonial que se mantém no Brasil desde 1500 e que influencia a fome e o modo de produzir e consumir comida nesse país.

Já sabemos que por trás da fome existe um sistema agroalimentar hegemônico e predador que foi bem explorado no seminário, por diferentes atores. E que por trás desse sistema agroalimentar – que inclui o sistema carne que foi muito enfatizado na minha mesa redonda do evento – estão outros sistemas: o capitalismo/o sistema neoliberal. São eles que movem os fios do fantasma da fome e da desigualdade social – principal causa desse flagelo.

Mas o capitalismo não é um substantivo singular. Há muitos tipos de capitalismo e vários países capitalistas no mundo superaram a fome e as desigualdades sociais. Países que ampliaram as premissas do capitalismo clássico que têm o âmbito econômico como central. Como os escandinavos que assumiram o que chamam de um capitalismo compassivo. Um capitalismo que assume uma economia do cuidado que, para além do âmbito econômico incorpora questões humanas, sociais e ambientais como cerne da sua atuação.

O nosso capitalismo aqui no Brasil é o clássico e ainda mais perverso porque tem duas outras qualidades já discutidas pelo Caio Prado Júnior e pelo argentino Sergio Bagú. É um capitalismo colonial e racial.

O colonialismo aqui iniciou em 1500 com a invasão portuguesa e, como Estado e como nação, seguimos desqualificando as questões estruturais responsáveis pela fome e o sofrimento social do povo brasileiro. E como o nosso capitalismo é colonial e racial, nosso sistema agroalimentar, fruto desse capitalismo, também assume essas qualidades.

Vamos analisar os elementos que ainda nos conectam ao colonialismo e que constroem a nossa colonialidade alimentar. Colonialidade é o termo usado para analisar as repercussões presentes do colonialismo, ou seja, do passado colonial.

Desde a invasão portuguesa, fortalecemos aqui a monocultura nas terras que até hoje estão concentradas nas mãos das elites privilegiadas pela Coroa. Algumas dessas famílias estão há 520 anos no poder e na política.

Nem o açúcar e nem o melaço da monocultura colonial eram destinados para alimentação do povo, mas eram artigos para estimular o tráfico de escravos e a exportação. Ou seja, uma mercadoria. Depois veio o café e pecuária. E seguimos com a cana para o agrocombustível e os grãos, especialmente a soja, para produzir proteína animal para o mundo.

Então a racionalidade colonizadora de fortalecer a monocultura, as mercadorias em vez de comida no prato para o povo e enviar grande parte da nossa soberania alimentar para mãos estrangeiras se mantém.

E hoje – um elemento novo no cenário mundial – usamos esses produtos da monocultura para alimentar a indústria dos ultraprocessados que produz, além de comida de baixa qualidade, doenças.

Além da elite econômica do agronegócio que mantém seus interesses desde a invasão, o mercado – que controla o Estado – faz hoje o papel dos nossos colonizadores. Portugal virou Brasília com a mesma mentalidade de exploração do povo.

E quem esta por trás de Brasília – outro elemento novo nessa análise colonialista – são os czares da alimentação, as corporações agroalimentares. Aquelas que dominam o sistema agroalimentar hegemônico que inicia com destruição das florestas e dos cerrados, expulsando os povos ancestrais como sempre fez a colonização. Continua com os insumos e a tecnologia agrícolas, base do agronegócio. Estaciona seus caminhões de grãos nos portos como sempre fizeram as caravelas. E também nos frigoríficos e nas indústrias de ultraprocessados que usam os produtos da monocultura – soja, açúcar, trigo, milho e carne de baixa qualidade – maquiados pela indústria química de aditivos sintéticos e termina nos supermercados. Ou melhor, esse sistema agroalimentar termina mesmo no sistema farmacêutico/médico tecnológico e hospitalocêntrico que lucra com as doenças e mazelas produzidas por esse sistema que é um só – como o casamento da Bayer-Monsanto ironicamente nos revelou. Falamos sobre tais corporações aqui mesmo, no Dossiê Agro é Fome.

Atualmente, esse mesmo sistema agroalimentar hegemônico continua a seduzir o comedor com o apelo do alimento saudável e ambientalmente correto, sem escapar da mesma racionalidade de concentração de terras e renda e da destruição da autonomia – e da existência – do agricultor familiar que produz comida de verdade. Iludem produzindo ultraprocessados hightech: fibras proteicas a partir de impressoras 3D e proteína a base de insetos, bactérias e microrganismos nos laboratórios e startups. Dissimulam seus reais objetivos com o desenvolvimento de fazendas verticais hidropônicas e “ambientalmente menos impactantes que a agricultura”, produzindo alimentos “sem agrotóxicos”, mas igualmente contaminados por doses maciças de fertilizantes. Iludem, inclusive, os ativistas alimentares desavisados, oferecendo alimentos orgânicos ultraprocessados e hambúrgueres veganos de um futuro que se manterá insustentavelmente colonial por aqui.

Na analogia do Jesse de Souza, a racionalidade do capitão do mato, filho bastardo da negra estuprada, que sempre serviu os senhores do engenho, se mantém na classe média – secularmente analfabeta social e ambiental – que ainda apoia a elite da monocultura, vive de suas migalhas e se volta contra o povo, contra a reforma agrária, contra a educação libertadora, na esperança de chegar à casa grande como filho legítimo do sistema.

E a colonialidade alimentar segue explorado e se apropriando da natureza – a base do sistema agroalimentar e outra grande vítima dele. Além do domínio da natureza, mantemos a militarização das relações humanas presentes em todo tipo de colonialismo. A mesma Polícia Militar que foi criada para proteger os interesses dos senhores e da coroa continua defendendo a elite do agronegócio, a concentração de terras e os interesses do Estado. Essa militarização colonial cala ativistas e mata líderes indígenas, quilombolas, ambientalistas e assentados nos conflitos fundiários.

E nesse sistema agroalimentar colonial existe também o que chamamos de colonialidade cultural alimentar. A comida é um patrimônio cultural imaterial e destruir essa cultura também é uma forma de enfraquecer o povo e dominá-lo. Assim, nosso amendoim, arroz/feijão, mandioca, milho, taioba, frutas do cerrado foram sequestrados pelos ultraprocessados, pelo trigo, pela maçã e pela alface americana. O milho ameríndio é a perda cultural alimentar mais emblemática

A verdadeira história da gastronomia brasileira ainda não foi contada. Está sendo esboçada e não é um melting pot de três influências harmônicas – branca, negra e indígena – como enfatizaram Câmara Cascudo e Gilberto Freire. Trata-se de uma história de invisibilidades e destruição da cultura alimentar dos nativos e dos negros.

E a erosão da nossa cultura alimentar resulta em menos saúde, pois a cultura é o maior e mais eficiente elemento definidor de uma dieta saudável. E interfere na nossa soberania promovendo insegurança alimentar. Lembrando quem não tem comida, tem o medo mais antigo que a humanidade conhece. O medo de morrer de fome, causado pelo desejo de poder e de controle sobre outros seres humanos. Nas palavras da artista portuguesa Grada Kilombo, “o colonialismo é a política do medo”.

Então, a fome no Brasil é secular; é colonial e tem etnia, tem cor. Sabemos sim como controlá-la e fizemos isso durante o último governo apostando em muitas dessas frentes aqui mencionadas. Mas não foram mudanças incorporadas e nem usamos esse breve período de miradas à esquerda para explorar profundamente nosso passado colonial.

A fome também tem a ver com valores humanos individuais. Como dizia o Josué de Castro, “é um flagelo de seres humanos contra seres humanos”. O sistema agroalimentar predatório e o capitalismo são sistemas. E os sistemas, como fala o geógrafo Tim Lang, são feitos e mantidos por pessoas. São também nossos desejos e valores que mantêm esses sistemas. Então para erradicar a fome no Brasil é preciso pensar para além do sistema agroalimentar. Porque a racionalidade colonizadora dos invasores permanece entre nós em muitas instâncias.

Na educação, por exemplo, que ainda repousa em uma estrutura acadêmico-científica e em referências bibliográficas estrangeiras, que desqualifica os saberes tradicionais, locais e leigos e legitima uma ciência hierarquizante e pouco inclusiva. Universidades cujos representantes privilegiam o campus, com pouca disponibilidade para conhecer a realidade do campo.

Outro âmbito que revela nossa herança colonial é a religião. O pensamento cristão colonial ainda é hegemônico e continua moldando a sociedade da resignação, da ideia da caridade e da filantropia para amenizar a fome dos pobres e garantir as boas ações – e o reino do céu – em vez de promover justiça social e mudanças estruturais. As nossas relações cotidianas, trabalhistas e pessoais também revelam um passado colonial, escravagista e racista.

Muitos comedores privilegiados mantém uma dieta à base de ultraprocessados com alto consumo de proteína animal, apoiando, assim, o sistema agroalimentar que promove a fome e a degradação ambiental.

Uma nação que em pleno século XXI elegeu líderes que apoiam o agronegócio, o militarismo, a destruição da nossa sociobiodiversidade, da cultura e da educação, a matança de indígenas e negros e que não se levanta diante da fome de 19 milhões de pessoas, claramente não conseguiu superar a perspectiva colonial que a anestesia há 520 anos.

A responsabilidade da fome é todos nós. De alguma forma cabe a cada um refletir. Repensando nossas ações individuais e coletivas; a nossa relação com a natureza e com os outros humanos e reinos. Analisar nossas crenças e valores morais; o formato da nossa educação; o que entendemos por ética, progresso e futuro. O que entendemos por dividir.

Vou acabar contando a história do Turu. Turu era um indígena, avô da Janir, mulher da etnia terena de Aquidauana (MS) que me contou essa história recentemente. Ela me contou que o Turu costumava observar bem seus netos e netas na aldeia. E na hora de comer, era ele quem fazia questão de preparar e servir a comida das crianças. E sempre servia a refeição em uma cuia grande para ser compartilhada em duplas. Para ensinar a dividir o alimento desde criança. E sempre fazia as duplas entre crianças que haviam brigado durante o dia.

Queria terminar com essa história sobre a importância de compartilhar a comida e de observar as necessidades do outro. Quem nos ensina esses valores capazes de mudar o quadro da fome não é a tecnologia agroalimentar. O nosso futuro tem muito que aprender com o passado dessa nação pindorama. A racionalidade das sociedades tradicionais locais nunca foi tão necessária porque os mesmos sistemas tecnológicos, científicos e econômicos modernos e exógenos que construíram essa crise socioambiental e a fome não têm se mostrado capazes de erradicá-las por aqui.

Elaine Azevedo é nutricionista e doutora em Sociologia Política. É vinculada ao Depto de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo, coordena a Escola Livre ComidaETC e é autora do podcast Panela de Impressão.

Fotos: Scarlett Rocha

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