Desastres em Petrópolis e em outros municípios no início deste ano revelam falta de planejamento urbano e descaso com urgência climática
As intensas chuvas em Petrópolis (RJ) — que deixaram pelo menos 217 pessoas mortas e 33 desaparecidas até o momento, de acordo com as autoridades locais — somam-se a outras tragédias climáticas que assolaram municípios de Minas Gerais, Bahia, São Paulo e Espírito Santo nestes dois primeiros meses do ano e revelam as dificuldades do Brasil em realizar planejamento urbano, bem como de propor soluções concretas no enfrentamento à emergência climática.
Como consequência do despreparo e descaso pelo país afora, as regiões atingidas pelas chuvas contam seus mortos, enfrentam desastres socioambientais e registram prejuízos amargos nas economias locais.
“A tendência do aumento de eventos de chuva extremos, como o que aconteceu em Petrópolis, vem sendo observada em vários lugares do mundo”, diz José Marengo, diretor do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), em entrevista ao Observatório do Clima. Para ele, isso é “consequência do aumento do risco climático [o possível impacto negativo que um evento climático pode causar], o que está diretamente associado ao aquecimento global”.
Racismo ambiental e climático
Chuvas, cheias e deslizamentos, no entanto, não afetam toda a população de forma igual. São as pessoas pobres e, geralmente, comunidades negras e tradicionais e povos indígenas, grupos que vivem nas chamadas áreas de risco, ou seja, as tragédias climáticas aprofundam desigualdades sociais históricas: falta de moradia digna, saneamento básico e trabalho.
Para Júlia Neiva, diretora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da Conectas, é preciso reconhecer a relação entre estes acontecimentos, bem como suas consequências, com o racismo, especialmente a intersecção entre injustiça racial, ambiental e climática. “São pessoas de grupos sociais historicamente subalternizados que perdem suas vidas nestes momentos. Se sobrevivem, além de ter que viver o luto pela perda de vizinhos e familiares, precisam enfrentar processos longos e burocráticos em busca de suporte do Estado, abrigo e outras coisas básicas, como alimentação e medicamentos”.
Esta dimensão racial pode ser explicada pelo chamado racismo ambiental. Como explica Rita Maria da Silva Passos, especialista em Sociologia Urbana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, este tipo de racismo se refere “à carga desproporcional dos riscos, dos danos e dos impactos sociais e ambientais que recaem sobre os grupos étnicos mais vulneráveis”, mostrando que nem a destruição do planeta acontece de forma democrática.
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Se após os desastres existe grande dificuldade em apoiar e acolher as vítimas, sendo a ajuda humanitária essencial neste momento, a falta de planejamento e prevenção é ainda maior. A equação é simples: sem ferramentas de prevenção, mais vidas serão perdidas. O mesmo se aplica à crise climática. Petrópolis é um exemplo disso. Em 2011, outra tragédia climática na região deixou 918 pessoas mortas e mais de 35 mil pessoas desabrigadas.
Tragédias seguidas
Para o CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), “infelizmente, as medidas necessárias para evitar outra tragédia não foram tomadas e mais uma vez pessoas e famílias são sacrificadas por residirem em áreas de risco”. O colegiado do CNDH segue dizendo que “as tragédias que presenciamos nestes períodos de fortes chuvas são ocasionadas pelas mudanças climáticas e potencializadas pela degradação socioambiental, mas são principalmente causadas pela falta de infraestrutura, planejamento e políticas urbanas, o que tem sido agravado pela crise econômica e pela paralisação de programas de construção de moradias, resultando no aumento do número de famílias morando em áreas de risco em todo o país”.
Neiva, da Conectas, avalia que “os governos federal e estadual precisam levar a sério a questão climática e entender que não é algo abstrato ou que pode ser resolvido com propostas superficiais apenas para agradar a comunidade internacional, é preciso entender que este é um problema real, que prejudica a vida das pessoas, consequentemente violando seus direitos humanos”.
Agravamento da crise
O governo federal se mostra alheio a estes problemas. Diante da comunidade internacional, o Itamaraty rejeitou, em reunião realizada pelo CDH (Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas) no início de outubro de 2021, a utilização do termo “racismo ambiental”. O conceito aparece em relatório sobre relações entre raça e crise climática que foi apresentado no conselho da ONU.
O texto da ONU afirma que “as pessoas com ascendência africana continuam sujeitas ao racismo ambiental e são desproporcionalmente afetadas pela crise climática”.
Já em 2022, o presidente Jair Bolsonaro recebeu diversas críticas por tirar férias durante as enchentes da Bahia e não visitar as áreas atingidas, como é de praxe nestes momentos. E, quando as chuvas fortes atingiram municípios paulistas, Bolsonaro afirmou que “faltou alguma visão de futuro” por parte das pessoas que construíram suas casas em áreas de risco.
“Estas posturas do governo e do próprio presidente”, diz Neiva, “estão inseridas em um projeto mais amplo de necropolítica e destruição ambiental. Basta olhar para as propostas legislativas que são prioridades do governo federal em 2022. Muitas delas, como marco temporal das terras indígenas e flexibilização do licenciamento ambiental, agravam ainda mais a crise climática e socioambiental”.
O governo federal também é questionado no STF (Supremo Tribunal Federal) por adotar políticas contrárias à preservação socioambiental e ao enfrentamento da crise climática. A ADPF 708, ação que questiona a paralisação do Fundo do Clima e abre debate inédito sobre a crise ambiental e climática no Brasil, e a ADO-59, ação sobre o congelamento do Fundo Amazônia, são dois exemplos.
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Cratera na Nova Subida da Serra – Crédito: Prefeitura de Petrópolis