A Fundação Nacional do Índio é um agente ativo em uma estratégia política de expor povos em isolamento voluntário ao contato com pessoas de fora do território. O povo Piripkura, a Terra Indígena Pirititi e a Terra Indígena Ituna Itatá mostram o conluio do corpo indígena com o poder econômico e político que busca lucrar com seus recursos naturais: agronegócio, extração de madeira e mineração ilegal.
Durante seus três anos no cargo, as políticas de Jair Bolsonaro voltadas aos povos indígenas que vivem em isolamento voluntário na Amazônia brasileira tiveram um objetivo específico: facilitar a limpeza étnica nos territórios em que habitam. Para tanto, foram sistematicamente eliminadas quaisquer evidências que justificassem a necessidade de protegê-los daqueles que querem, legal ou ilegalmente, ocupar, explorar e comercializar essas áreas e seus recursos naturais.
Dos 120 registros da presença de povos indígenas em isolamento na Amazônia brasileira, 28 estão confirmados e 92 estão sendo estudados para confirmar sua presença. Os registros estão distribuídos em 86 territórios: 54 territórios indígenas, 24 unidades de conservação (15 federais e nove estaduais) e oito áreas sem qualquer mecanismo legal ou administrativo de proteção.
Atualmente, existem sete Terras Indígenas com Restrição de Uso (RU) que foram criadas para a proteção de povos indígenas em isolamento voluntário. A seguir, falaremos sobre três situações que demonstram uma estratégia de exposição programada de indígenas isolados . Como se vê, o governo Bolsonaro promove o contato entre comunidades e grupos sociais externos por meio do livre acesso aos seus territórios.
O avanço sobre as terras dos povos indígenas isoladamente
No estado de Mato Grosso, o povo Piripkura aguarda desde a década de 1980 que seu território seja definitivamente demarcado, aprovado e protegido pelo Estado brasileiro. Somente em 30 de setembro de 2008, a FUNAI publicou a primeira portaria que estabelecia a restrição de acesso de terceiros e uso de uma área de 243 mil hectares. A última renovação da portaria, realizada em 17 de março de 2022, estabeleceu prazo de validade de apenas seis meses, tempo insuficiente para a FUNAI concluir a delimitação e para a Presidência aprová-la.
Enquanto isso, a Fundação Nacional do Índio Bolsonarista resiste em realizar o processo de demarcação e continuam os confrontos na esfera jurídica entre a FUNAI, Ministério Público Federal, organizações indígenas, fundações indigenistas e organizações de direitos humanos. No território, o agronegócio, madeireiros e ocupantes ilegais avançam dentro da Terra Indígena: desmatam a mata, promovem queimadas e retiram a madeira.
Em Roraima, os povos isolados que habitam a Terra Indígena Pirititi com Restrição de Uso contam apenas com a proteção temporária de uma portaria de 2012. Esse instrumento jurídico-administrativo que restringe o uso de terceiros foi prorrogado em diversas ocasiões. A última foi em 22 de fevereiro de 2022 e, passados três meses, não há notícias de que a FUNAI tenha iniciado os estudos definitivos de identificação e delimitação da Terra Indígena. Enquanto isso, o crescimento das atividades ilegais coloca os indígenas em risco, por meio da disseminação de doenças e potenciais conflitos de terra.
No estado do Pará, a primeira portaria restringindo o uso da Terra Indígena Ituna Itatá, área de 142 mil hectares, foi publicada em 11 de janeiro de 2011. Apesar da oposição do Governo Federal, a última renovação ocorreu em 28 de janeiro de 2022. A FUNAI foi obrigada a fazê-lo quando a imprensa noticiou que seus funcionários haviam se reunido com segundas linhas do Governo para abrir este território à exploração madeireira, agropecuária e mineração.
A estratégia consistia em negar a presença dos indígenas e denunciar que se tratava de uma invenção de antropólogos. Ao mesmo tempo, perseguiram funcionários e técnicos que encontraram indícios da presença de indígenas em isolamento voluntário. Enquanto a FUNAI e o Governo Federal tentam revogar a medida de restrição de uso, o desmatamento e a ocupação ilegal também avançam rapidamente na Terra Indígena Ituna Itatá.
Estudos recentes mostram que, nos últimos anos, os gestores do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) permitiram o registro de imóveis rurais ilegais. Esse órgão é de responsabilidade do Serviço Florestal Brasileiro, que, por sua vez, se reporta ao Ministério da Agricultura. Cerca de 97% da Terra Indígena Ituna Itatá é afetada por cadastros irregulares e pequenas estradas foram construídas (ilegalmente) para facilitar a penetração, retirada de madeira e ocupação. Como se não bastasse, a concessionária Equatorial Energia instalou infraestrutura e forneceu energia elétrica aos invasores .
Quando a nova FUNAI aprofunda a vulnerabilidade
Mas a estratégia de fazer desaparecer os indígenas não se concentra apenas na população indígena isolada. Em 22 de abril de 2020, a FUNAI publicou a Instrução Normativa nº 9/2020 que determina novas diretrizes para a Declaração de Reconhecimento de Limites Relativos a Imóveis Privados. A portaria estabelece que, ao emitir declarações solicitadas por ocupantes não indígenas, a FUNAI só deve reconhecer como Terras Indígenas aquelas que forem aprovadas por decreto presidencial. Pior ainda, o Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), responsável pelo registro oficial dos imóveis rurais, deve seguir os conceitos e regras indicados. A medida provocou uma avalanche de pedidos.
Nas áreas não aprovadas pelo Poder Executivo, a portaria deixa indígenas isolados em total indefesa, tendo que enfrentar sozinhos o avanço agropecuário e extrativista em seus territórios. Na prática, o órgão fornece ao requerente um documento que lhe permite registrar a área como propriedade particular, requerer licença para desmatar, extrair minerais, vendê-la ou utilizá-la como ativo no mercado financeiro fundiário .
Em 29 de dezembro, a FUNAI informou à sede regional, aos Serviços de Gestão Ambiental e Territorial e à Coordenação Técnica Local que não deveriam incluir nos orçamentos de 2022 a execução de atividades de Proteção Territorial em Terras Indígenas ainda não aprovadas por decreto presidencial. Com essa instrução, a FUNAI deixou à própria sorte os povos indígenas que se encontram em contextos sociais e territoriais conflituosos em decorrência do avanço da fronteira agrícola e do garimpo ilegal .
Em vez de proteger os indígenas, a FUNAI aprofunda sua vulnerabilidade e o risco de suas vidas. Alguns casos bem específicos são a Terra Indígena Tupinambá de Olivença (na Bahia), a Terra Indígena Tekoha Dje’y/Rio Pequeno (em Paraty, estado do Rio de Janeiro) e outros 200 territórios. Se a “nova FUNAI”, como vem sendo apresentada publicamente a atual liderança, insistir em manter essa determinação, somente no estado do Amazonas, 40 Terras Indígenas permanecerão desprotegidas.
A estratégia de fazê-los desaparecer
Há uma clara intenção do Governo de Jair Bolsonaro de expor a população indígena em isolamento voluntário ao contato com os invasores e convencer a sociedade da ausência de isolados. Eles literalmente procuram fazê-los desaparecer. E a FUNAI é cúmplice. É uma forma de viabilizar e legitimar a abertura definitiva de Terras Indígenas a usurpadores, posseiros, proprietários e madeireiros.
Com essas ações, o Governo Federal dá mais um passo no caminho de relegar à própria sorte uma parcela significativa da população indígena e seus territórios tradicionais. Principalmente, daqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade, violência e risco. Isso também acontece em Terras Indígenas homologadas, como é o caso da Terra Indígena Yanomami (TIY), que é invadida por mais de 20 mil garimpeiros e milicianos armados que contam com o apoio explícito do Governo Federal.
Segundo cálculos do MapBiomas, de 2016 a 2020 a mineração na TIY cresceu 3.350%. Este é o pior momento desde que o Terra Indígena foi homologado em 1991 : desmatamento, destruição e contaminação de cursos d’água com mercúrio; afetação à saúde das pessoas; taxas alarmantes de malária; disseminação do COVID-19; crise de soberania alimentar; aumento dos casos de desnutrição; mortes violentas e abuso sexual.
Nos últimos três anos e cinco meses, o Governo de Jair Bolsonaro não demarcou ou aprovou uma única Terra Indígena. Dessa forma, ele cumpriu seu compromisso assumido durante a campanha eleitoral de 2018 e reafirmado antes de assumir o cargo: não demarcar nem um centímetro de terra para os povos indígenas.
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Ricardo Verdum é Cientista Social e Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. É pesquisador independente e membro da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
Foto: Imensa cratera aberta pelo garimpo na região do rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami | Divulgação