A estratégia do governo Bolsonaro para fazer desaparecer os povos indígenas no Brasil. Por Ricardo Verdum

A Fundação Nacional do Índio é um agente ativo em uma estratégia política de expor povos em isolamento voluntário ao contato com pessoas de fora do território. O povo Piripkura, a Terra Indígena Pirititi e a Terra Indígena Ituna Itatá mostram o conluio do corpo indígena com o poder econômico e político que busca lucrar com seus recursos naturais: agronegócio, extração de madeira e mineração ilegal.

No Debates Indígenas

Durante seus três anos no cargo, as políticas de Jair Bolsonaro voltadas aos povos indígenas que vivem em isolamento voluntário na Amazônia brasileira tiveram um objetivo específico: facilitar a limpeza étnica nos territórios em que habitam. Para tanto, foram sistematicamente eliminadas quaisquer evidências que justificassem a necessidade de protegê-los daqueles que querem, legal ou ilegalmente, ocupar, explorar e comercializar essas áreas e seus recursos naturais.

Dos 120 registros da presença de povos indígenas em isolamento na Amazônia brasileira, 28 estão confirmados e 92 estão sendo estudados para confirmar sua presença. Os registros estão distribuídos em 86 territórios: 54 territórios indígenas, 24 unidades de conservação (15 federais e nove estaduais) e oito áreas sem qualquer mecanismo legal ou administrativo de proteção.

Atualmente, existem sete Terras Indígenas com Restrição de Uso (RU) que foram criadas para a proteção de povos indígenas em isolamento voluntário. A seguir, falaremos sobre três situações que demonstram uma estratégia de exposição programada de indígenas isolados . Como se vê, o governo Bolsonaro promove o contato entre comunidades e grupos sociais externos por meio do livre acesso aos seus territórios.

O avanço sobre as terras dos povos indígenas isoladamente

No estado de Mato Grosso, o povo Piripkura aguarda desde a década de 1980 que seu território seja definitivamente demarcado, aprovado e protegido pelo Estado brasileiro. Somente em 30 de setembro de 2008, a FUNAI publicou a primeira portaria que estabelecia a restrição de acesso de terceiros e uso de uma área de 243 mil hectares. A última renovação da portaria, realizada em 17 de março de 2022, estabeleceu prazo de validade de apenas seis meses, tempo insuficiente para a FUNAI concluir a delimitação e para a Presidência aprová-la.

Enquanto isso, a Fundação Nacional do Índio Bolsonarista resiste em realizar o processo de demarcação e continuam os confrontos na esfera jurídica entre a FUNAI, Ministério Público Federal, organizações indígenas, fundações indigenistas e organizações de direitos humanos. No território, o agronegócio, madeireiros e ocupantes ilegais avançam dentro da Terra Indígena: desmatam a mata, promovem queimadas e retiram a madeira.

Em Roraima, os povos isolados que habitam a Terra Indígena Pirititi com Restrição de Uso contam apenas com a proteção temporária de uma portaria de 2012. Esse instrumento jurídico-administrativo que restringe o uso de terceiros foi prorrogado em diversas ocasiões. A última foi em 22 de fevereiro de 2022 e, passados ​​três meses, não há notícias de que a FUNAI tenha iniciado os estudos definitivos de identificação e delimitação da Terra Indígena. Enquanto isso, o crescimento das atividades ilegais coloca os indígenas em risco, por meio da disseminação de doenças e potenciais conflitos de terra.

No estado do Pará, a primeira portaria restringindo o uso da Terra Indígena Ituna Itatá, área de 142 mil hectares, foi publicada em 11 de janeiro de 2011. Apesar da oposição do Governo Federal, a última renovação ocorreu em 28 de janeiro de 2022. A FUNAI foi obrigada a fazê-lo quando a imprensa noticiou que seus funcionários haviam se reunido com segundas linhas do Governo para abrir este território à exploração madeireira, agropecuária e mineração.

A estratégia consistia em negar a presença dos indígenas e denunciar que se tratava de uma invenção de antropólogos. Ao mesmo tempo, perseguiram funcionários e técnicos que encontraram indícios da presença de indígenas em isolamento voluntário. Enquanto a FUNAI e o Governo Federal tentam revogar a medida de restrição de uso, o desmatamento e a ocupação ilegal também avançam rapidamente na Terra Indígena Ituna Itatá.

Estudos recentes mostram que, nos últimos anos, os gestores do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) permitiram o registro de imóveis rurais ilegais. Esse órgão é de responsabilidade do Serviço Florestal Brasileiro, que, por sua vez, se reporta ao Ministério da Agricultura. Cerca de 97% da Terra Indígena Ituna Itatá é afetada por cadastros irregulares e pequenas estradas foram construídas (ilegalmente) para facilitar a penetração, retirada de madeira e ocupação. Como se não bastasse, a concessionária Equatorial Energia instalou infraestrutura e forneceu energia elétrica aos invasores .

Os Piripkura Tyku e Mondé-i vivem isolados em terra indígena em Mato Grosso. Foto: Funai

Quando a nova FUNAI aprofunda a vulnerabilidade

Mas a estratégia de fazer desaparecer os indígenas não se concentra apenas na população indígena isolada. Em 22 de abril de 2020, a FUNAI publicou a Instrução Normativa nº 9/2020 que determina novas diretrizes para a Declaração de Reconhecimento de Limites Relativos a Imóveis Privados. A portaria estabelece que, ao emitir declarações solicitadas por ocupantes não indígenas, a FUNAI só deve reconhecer como Terras Indígenas aquelas que forem aprovadas por decreto presidencial. Pior ainda, o Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), responsável pelo registro oficial dos imóveis rurais, deve seguir os conceitos e regras indicados. A medida provocou uma avalanche de pedidos.

Nas áreas não aprovadas pelo Poder Executivo, a portaria deixa indígenas isolados em total indefesa, tendo que enfrentar sozinhos o avanço agropecuário e extrativista em seus territórios. Na prática, o órgão fornece ao requerente um documento que lhe permite registrar a área como propriedade particular, requerer licença para desmatar, extrair minerais, vendê-la ou utilizá-la como ativo no mercado financeiro fundiário .

Em 29 de dezembro, a FUNAI informou à sede regional, aos Serviços de Gestão Ambiental e Territorial e à Coordenação Técnica Local que não deveriam incluir nos orçamentos de 2022 a execução de atividades de Proteção Territorial em Terras Indígenas ainda não aprovadas por decreto presidencial. Com essa instrução, a FUNAI deixou à própria sorte os povos indígenas que se encontram em contextos sociais e territoriais conflituosos em decorrência do avanço da fronteira agrícola e do garimpo ilegal .

Em vez de proteger os indígenas, a FUNAI aprofunda sua vulnerabilidade e o risco de suas vidas. Alguns casos bem específicos são a Terra Indígena Tupinambá de Olivença (na Bahia), a Terra Indígena Tekoha Dje’y/Rio Pequeno (em Paraty, estado do Rio de Janeiro) e outros 200 territórios. Se a “nova FUNAI”, como vem sendo apresentada publicamente a atual liderança, insistir em manter essa determinação, somente no estado do Amazonas, 40 Terras Indígenas permanecerão desprotegidas.

A estratégia de fazê-los desaparecer

Há uma clara intenção do Governo de Jair Bolsonaro de expor a população indígena em isolamento voluntário ao contato com os invasores e convencer a sociedade da ausência de isolados. Eles literalmente procuram fazê-los desaparecer. E a FUNAI é cúmplice. É uma forma de viabilizar e legitimar a abertura definitiva de Terras Indígenas a usurpadores, posseiros, proprietários e madeireiros.

Com essas ações, o Governo Federal dá mais um passo no caminho de relegar à própria sorte uma parcela significativa da população indígena e seus territórios tradicionais. Principalmente, daqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade, violência e risco. Isso também acontece em Terras Indígenas homologadas, como é o caso da Terra Indígena Yanomami (TIY), que é invadida por mais de 20 mil garimpeiros e milicianos armados que contam com o apoio explícito do Governo Federal.

Segundo cálculos do MapBiomas, de 2016 a 2020 a mineração na TIY cresceu 3.350%. Este é o pior momento desde que o Terra Indígena foi homologado em 1991 : desmatamento, destruição e contaminação de cursos d’água com mercúrio; afetação à saúde das pessoas; taxas alarmantes de malária; disseminação do COVID-19; crise de soberania alimentar; aumento dos casos de desnutrição; mortes violentas e abuso sexual.

Nos últimos três anos e cinco meses, o Governo de Jair Bolsonaro não demarcou ou aprovou uma única Terra Indígena. Dessa forma, ele cumpriu seu compromisso assumido durante a campanha eleitoral de 2018 e reafirmado antes de assumir o cargo: não demarcar nem um centímetro de terra para os povos indígenas.

Ricardo Verdum é Cientista Social e Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. É pesquisador independente e membro da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

Foto: Imensa cratera aberta pelo garimpo na região do rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami | Divulgação

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