“Bolsonaro e Marcelo Xavier são, sim, responsáveis pela morte do Bruno”, diz indigenista da Funai

O servidor Daniel Cangussu afirma que o desmonte do órgão, a atuação anti-indígena da Funai e os discursos pró garimpo e desmatamento do presidente da República estimulam violência contra indigenistas

Por Tatiana Merlino, em O Joio e o Trigo

No celular do indigenista Daniel Cangussu, as últimas trocas de mensagem com Bruno Pereira, servidor da Funai assassinado no Vale do Javari, no Amazonas (AM), junto com o jornalista Dom Philips, eram sobre um sonho em comum que dividiam: formar novos colegas indigenistas brasileiros. Os amigos planejavam criar um curso para a formação de quadros.  “Os últimos áudios dele são sobre isso”, afirma Cangussu, servidor que atua na Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus da Funai, em Lábrea, sul do Amazonas. 

Apesar de estar licenciado da Funai desde que foi exonerado do cargo da Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGiirc), em 2019, Pereira tinha entusiasmo sobre o futuro do órgão. “Ele dizia: o governo vai acabar e nós vamos retomar a CGiirc, vamos qualificar nossos trabalhos.” 

Em entrevista ao Joio, Cangussu fala sobre Bruno, sobre a situação de perseguição, desmonte e aparelhamento da Funai e sobre a atuação anti-indígena do órgão. “Nesse governo, teria sido melhor se ela tivesse sido extinta”, afirma o indigenista. 

Ano passado, Cangussu coordenou uma expedição de indigenistas que confirmou o 29º grupo de índios isolados, nomeado como ‘isolados do Mamoriá Grande’. Os pedidos de proteção enviados à Funai de Brasília foram ignorados. “Nós nunca tivemos um ambiente de risco tão grande como vivemos hoje”, preocupa-se. Para ele, o presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Funai, Marcelo Xavier, são responsáveis pela morte de Bruno. 


Você pode falar sobre a importância do trabalho do Bruno?

Apesar da barba branca, ele é considerado também um jovem da nova geração de indigenistas. O Bruno teve protagonismo no processo contra o desmonte da Funai. Apesar de ele ter se licenciado, ele tinha um entusiasmo sobre o futuro da Funai. Nas nossas conversas no mês antes de ele ir a campo, eu falava que achava que a Funai tinha que ser extinta por ser anti-indigena, já que  historicamente ela vem da SPI [Serviço de Proteção aos Índios, criado em 1910 e que operou até 1967, quando foi substituído pela Funai], que tinha uma agenda em prol da oligarquia. Não dá para a Funai ser indigenista se o próprio governo é anti-indigena. Não sei se levanto ainda, mas nessas ocasiões, eu levantava a bandeira de que a Funai tinha que desaparecer e a gente tirar do governo essa atribuição, já que ela sempre faz isso com o propósito de destruir essa luta indígena. E o Bruno não, ele me convencia do contrário e dizia: “Não, Cangussu, o governo vai acabar e nós vamos retomar a Cgiirc [Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato], vamos qualificar nossos trabalhos.”

A gente também tinha um projeto de formar indigenistas. Estávamos escrevendo coisas juntos sobre um grande curso para formar quadros de forma sistemática.  Ele tinha esse desejo de formar novos colegas, de formar novos quadros. E estava se organizando para isso, via OPI [Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato], inclusive. Os últimos áudios dele que eu tenho no meu celular são sobre isso. 

E ele também reunia nele essa habilidade política muito grande, mas também um indigenista de campo muito habilidoso.


Você pode falar sobre o caso de servidores, indigenistas da Funai que estão afastados por conta dessa política anti-indígena que mencionou? 

Tem os casos mais drásticos, por exemplo, da Carol Santana, que trabalhava na Cgiirc, é advogada e hoje trabalha na OPI, era efetiva na Funai até poucos dias. O Fábio Ribeiro, coordenador da FPE Cuminapanema  [Frentes de Proteção Etnoambiental] , ele era efetivo até três meses atrás. Tem esses casos mais drásticos de pessoas que já consideram que não têm possibilidade de ser indigenista dentro da FunaiE tem também os casos de pessoas que não eram efetivas, que saíram do governo e foram substituídas por militares, policiais e missionários. 

Acho o caso do Bruno emblemático, ao se retirar o coordenador geral de índios isolados e colocar um missionário da mesma região e um missionário proselitista. [Em outubro de 2019, Bruno foi substituído na Cgiirc pelo missionário evangélico Ricardo Lopes Dias.]

Eu posso citar inúmeros. Tem um colega, por exemplo, o Guilherme Martins, que coordenou a expedição [à Terra Indígena] Ituna Itatá com o Jair Candor [servidor da Funai], e, em retaliação ao relatório que fez, ele foi retirado da Cgiirc e foi ser responsável por preencher folha de ponto de servidores. Ele tem expertise para trabalhar com isolados, mas foi transferido para trabalhar em setor pessoal como retaliação. Tem muitos desses casos e servidores sendo substituídos por pessoas que não conhecem o indigenismo. 

No dia em que Bruno foi exonerado a gente teve uma conversa. Ele achava que aquele era o momento de fazer um movimento grande, de talvez todo mundo entregar seus cargos e pressionar a Funai para fazer algo. E a gente poderia ter feito o que está fazendo hoje. E acho que perdemos vários momentos. É até estranho imaginar que tudo aquilo que ele sempre insistiu, que a gente fosse mais incisivo, isso acontece logo por conta da tragédia com ele. Não digo que todo mundo fosse covarde, não, mas foi preciso uma coisa nessa dimensão para a gente conseguir tomar uma atitude. 


Em uma entrevista ao Brasil de Fato você disse que a Funai representa o Estado contra o Estado. Qual é sua avaliação sobre o que a Funai representa hoje?

Eu acho que Estado contra Estado é essencialmente o que Funai é. O país historicamente foi e ainda é anti-indigena. E por conta do movimento dos indígenas, dos direitos humanos, foi obrigado praticamente a instituir a Funai, a ter um órgão para cumprir essa demanda. Só que fica sempre sendo utilizado pelo governo. O governo não utiliza a Funai em prol dos indígenas, é como se fosse uma ferramenta para atrasar os processos. Transfere-se para ela essa prerrogativa. E nesse governo especificamente, se a Funai tivesse sido extinta, teria sido melhor. Isso foi discutido entre a gente, entre missionários inclusive. Nas brigas, em uma conversa com um missionário, no pós eleições: “Eu sei que vocês vão extinguir a Funai.” E eles: “Não, agora a Funai vai atuar com os missionários, vai permitir se instalar sistemas produtivos, para indígenas produzirem com trator.”                       

Então, quando a gente fala que é contra o Estado, é pelo sentimento que existe entre os indigenistas, esse dilema eterno de você ser do governo que é anti-indigena e achar que você pode, via essas estruturas, atuar em prol das populações. E eu acho que o governo Bolsonaro, que se expressa principalmente através do [Marcelo] Xavier [presidente da Funai], não deixa dúvidas sobre essa intenção do governo, sobre qual tem sido o propósito de manter a Funai viva. 


Qual é o propósito, a quais interesses a Funai de hoje serve? 

Ela tem um interesse muito específico, que é eleitoreiro. Como quando transfere, quando executa uma política nesse molde neoextrativista no Mato Grosso, distribuindo tratores, colocando no site da Funai diversas campanhas de praticamente tudo resumido à cesta básica ou ao incentivo ao plantio de soja, por exemplo. Como se essa fosse uma ajuda indígena e não fosse uma medida do governo. Acho que o propósito dele é esse, talvez desqualificar principalmente essa perspectiva indígena, desvirtuar o conceitos de desenvolvimento e subdesenvolvimento e, principalmente, um interesse eleitoreiro para membros da bancada ruralista fazendo uso da Funai. 


Você fala que existem várias formas de matar indigenistas, ambientalistas e jornalistas. Poderia explicar isso?

Talvez essa tenha sido a grande mágoa desses últimos dias, por conta de questões internas nossas da Funai, há pessoas tentando defender uma narrativa de que “nós, indigenistas de esquerda, estamos utilizando a morte de um colega para fins políticos, querendo atribuir isso ao presidente”. Essa perspectiva, essa visão de mundo é tão estreita. E tenho falado sobre isso quase que de uma forma pedagógica, tentando explicar às pessoas como e por que exatamente o Bolsonaro e Xavier são, sim, responsáveis pela morte do Bruno. É preciso que as pessoas entendam que esse é um crime político, que há uma estratégia política por trás disso. O presidente disse como promessa de campanha que ia cortar o pescoço da Funai. Ele verbalizou isso. Ele tem interesse em ver a Funai enfraquecida. O presidente permite perseguidores e destrói por dentro o Ibama, o ICMbio, a Funai, desdenha da política ambientalista do país, promove o garimpo e acha legal ser garimpeiro. E principalmente a campanha, a forma como ele se posiciona sobre a impunidade diante desse processo de desmatamento e destruição da Amazônia que se intensificou com esse governo.

Assim como o Bruno, vários colegas e eu, por exemplo, já estivemos com madeireiros em campo, e as pessoas estavam falando claramente isso. “E aí, Cangussu, e agora que o nosso presidente ganhou e ele fala que a gente vai poder desenvolver a Amazônia e derrubar a Amazônia, o que tu vai fazer, se nosso presidente é a favor de a gente derrubar a floresta para desenvolver? Se você me apreender, tenho certeza que o nosso presidente vai me ajudar.” Se eu ouvi isso e o meu campo principal são expedições dentro da floresta, onde eu lido pouquíssimo com as pessoas, pensa como é nos locais mais agressivos, como Rondônia, Mato Grosso ou Vale do Javari? 

E com certeza atirar, alvejar, em um indigenista e um ambientalista nessa situação, não tenho dúvida de que as pessoas contam com a impunidade. E com certeza se estimulam com essa perspectiva do próprio presidente do Brasil. Acho que não precisa ligar pra um jagunço pra matar ninguém. Basta deixar claro que é legítimo que jagunços tenham arma de fogo, assim como defender a narrativa de que são pessoas que precisam proteger seus lares. 

Basta você criar uma perspectiva de que o cara que desmata a floresta está tentando desenvolver uma região pobre para matar a fome dos seus filhos. Ou ao colocar sempre a Amazônia como local a ser tomado, destruído, por pessoas do bem, e se esquece que aqui tem uma população gigantesca, incrível, com um bioma que merece uma política específica. 

Bruno foi assassinado por gente que está associada à pesca ilegal, por exemplo, e com certeza não é algo sobre as pessoas. Pensa na quantidade de pessoas que não gostam de mim em Lábrea e o quanto essas pessoas são bem financiadas? Então, esse é o grande drama que a gente vive. Eu não consigo nem ser financiado na minha instituição, e as pessoas que não gostam de mim, do meu propósito de trabalho, são pessoas milionárias, sejam missionários, que chegam a Lábrea de helicóptero, sejam grandes latifundiários, grileiros. 


Você mencionou a responsabilidade do Marcelo Xavier e do Bolsonaro.

Sim, sem dúvida, eu acho que se alguém tivesse dúvida sobre isso, o dossiê da INA [ Indigenistas Associados] publicado, ele resolve.


Você podia comentar um pouco sobre o artigo que você publicou com a antropóloga Karen Shiratori, intitulado  “Bolsonaro, uma aventura não recomendada”? 

Eu acho que o artigo é uma defesa ao Bruno e também uma defesa da Amazônia. Essa forma tosca de falar que as pessoas foram fazer uma aventura, já tenta, de alguma forma, desmerecer a profissão de um ambientalista e de um jornalista, como se fossem aventureiros, desqualifica o trabalho da pessoa. E há esse desconhecimento, essa forma de reproduzir esse tipo de coisa, como se a Amazônia precisasse ser controlada e disciplinada, essa perspectiva dos militares de achar que a Amazônia é um lugar não recomendável. 

Eu pessoalmente me senti atingido como se aqui não existisse, não fosse o lugar onde vive a minha família, não tivesse a minha esposa, a minha filha, meus amigos. Na Amazônia não tem só indígenas isolados, homens fortes, ela é composta por crianças, idosos, comunidades, extrativistas, pescadores. Então, aquele texto é também uma defesa da Amazônia, de tentar informar as pessoas de que aqui é um local de se viver, não de sobreviver. Com a narrativa de Bolsonaro, como ele diz, o local é uma aventura não recomendável. Nem foi uma aventura dos colegas e é onde eu vivo, eu trabalho.


Recentemente você confirmou a existência de um grupo de isolados. Com esse desmonte da Funai, qual é o risco que os índios isolados sofrem hoje? 

Nós nunca tivemos um ambiente de risco tão grande como o que vivemos hoje. Volto a comentar aquela questão de um país que é anti-indigena. Há uma política que é conduzida por outros ministérios para pressionar os territórios indígenas. Há uma política em  que se retira da Funai cada vez mais, retira da Funai a demarcação dos territórios indígenas… E explora os servidores. Esses territórios estão cada vez mais expostos e a Funai enfraquecida e que são grupos que não têm essa a mesma capacidade de articulação por questões óbvias, porque são grupos isolados. E nessa narrativa de achar que a Amazônia é subdesenvolvida e precisaria de mais madeireiros e garimpeiros a produzir na região. Eu acho que isso fragiliza muito e até expõe esses grupos isolados.


Você pode falar sobre a greve e como os indigenistas da Funai estão articulados?

Eu acho que é um movimento muito importante para a Funai e, com certeza, nunca, no meu tempo na Funai, isso não aconteceu. Sei que a gente não tem um movimento correspondente na história da Funai, uma greve. E a gente tem conseguido fazer uma coisa importante. Pensa que a gente tem as frentes de proteção com locais que nem têm internet, com pessoas literalmente isoladas no meio da floresta. E juntar a isso o fato de que grande parte das coordenações estão sob a chefia de militares, de pessoas que andam armadas dentro da Funai. Então, é claro que o movimento de greve dentro da Funai é muito mais difícil do que outros contextos.

O movimento, os fatos que principalmente fazem surgir a greve, com certeza é a tragédia com o Bruno, a forma com que o governo e a Funai se posicionam sobre isso, e também a publicação do dossiê que a INA articulou junto com o Inesc. A gente tem uma pauta histórica que é o enfraquecimento do órgão em si, mas também essa publicação, esse olhar mais público sobre todo o desmonte feito por esse governo, em que a atuação a cada dia que passa é um desserviço aos indígenas. Temos que parar a Funai e repensar o indigenismo oficial do país. 

Também precisamos discutir o que a tragédia [morte de Bruno e Dom]  representa para a Funai e para a política de isolados. E o governo, além de ter um papel nisso, ainda se manifesta daquele jeito, colocando que “ah, mas eles não estavam com autorização”, como se isso fosse uma resposta legítima e digna na atual conjuntura. Um desfecho diferente em respeito à memória do Bruno. E o mínimo que podemos exigir é justiça nesse caso. 

O servidor Daniel Cangussu em expedição com os indígenas Jamamadi. Foto: FPE Madeira Purus

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