Retrocessos nas práticas institucionais são novas realidades e requerem mais do que o voto bem pensado
Na Folha
A sequência de fatos com relevante implicação política, embora ainda não concluída, proporciona uma visão bastante nítida do que já são resultados profundos e não transitórios dos anos bolsonaristas. Primeiro, nas práticas institucionais em relação a seus respectivos roteiros legais, à sua devida moralidade e às perspectivas do país. Como consequência, nos reflexos sobre aspectos básicos da vida nacional.
O projeto de lei da Presidência que instala um estado de emergência inexistente na Constituição, e derruba as restrições a gastos eleitoreiros nos 90 dias pré-eleições, foi aprovado pelos senadores por uma aberração: 72 a 1 e 67 a 1 nos dois turnos (1 foi José Serra). Vive agora trapaças na Câmara para a votação final. A aprovação favorável ao candidato Jair Bolsonaro já custou mais de R$ 6 bilhões (até a quinta-feira, 7) em dinheiro do Tesouro Nacional distribuído a parlamentares, a título de emendas orçamentárias.
As sessões da Câmara exigidas entre a primeira e a segunda votações completaram-se assim: “Está aberta a sessão. (Oposicionistas pedem a palavra em vão). Está encerrada a sessão”. Menos de um minuto. Era sessão marcada desavergonhadamente para abertura às 6h30 da manhã.
A duração não foi novidade na Câmara. Mas a verdade é que não houve sessão, que é um tempo para debates e votações. O que foi feito não pode ser visto, entendido, interpretado ou aceito como sessão da Câmara de Deputados. Foi artifício fraudulento, trapaça, burla. E seu objetivo não é um projeto secundário, mas uma decisão do mais alto grau deliberativo do Congresso —derrubar um texto da Constituição e introduzir outro (para uso eleitoreiro de mais de R$ 41 bilhões por Jair Bolsonaro). É formalizar a extinção da equidade de eleições honestas.
Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco pratica a antipresidência. O Supremo precisou impor-lhe a instalação da CPI da Covid, de tão bons serviços. Mineiro sem mineiridade, só com mineirice da pior, montou agora uma “decisão de ampla maioria dos líderes” para adiar ao futuro incerto a CPI da corrupção de pastores mafiosos no Ministério da Educação do seu colega Milton Ribeiro e do Bolsonaro facilitador de uns e do outro.
A justificativa de Pacheco, evitar “influência da campanha eleitoral na CPI”, mente sobre a inversa finalidade de evitar a influência da CPI na campanha eleitoral, com as revelações da ladroagem por meio da Bíblia. Nem sequer dá algum disfarce ao retorno à Câmara e ao Senado das sujeiras para derrotar a oposição na ditadura.
O orçamento secreto, por si só, retrata a monstruosidade em que se transforma a relação das instituições com a legislação, as decisões de poder e com o próprio regime. Dezenas de bilhões saem dos cofres públicos e o país não pode saber a quem, entre os parlamentares, e a que se destinam. A população é compelida a dar o dinheiro e nem pode saber a quem o dá.
Neste cúmulo de prepotência associada a usurpação de direitos, a reprodução da ditadura se encontra com a barbaridade legislatória do general Médici e seu AI-5: o Decreto Secreto, a que todos deviam sujeitar-se sem saber a quê. E ainda como e para quê. Bem mais tarde, uns poucos físicos concluíram que seria a cessão de áreas do território a Israel, no Maranhão e no Centro-Oeste, para construção e testes de armas nucleares dos israelenses. Violação direta do Brasil a tratados e comprometimento da soberania territorial.
As Forças Armadas, por sua vez, optaram por Bolsonaro à Constituição. Não como instituição, mas pelos que com ela se fazem confundir no atual período. Numerosos militares da ativa estiveram na recente reunião para mobilizar os integrantes do governo pela candidatura de Bolsonaro. Não era lugar nem é missão de militares profissionais. Está muito claro que na polêmica das urnas os militares servem a Bolsonaro e contrariam as evidências e a racionalidade. É ação política, não é colaboração técnica, pela qual não se interessaram nem ao tempo das fraudes.
Com atos e palavras contraditórios, os militares não dão oportunidade a que se confie em sua lealdade constitucional. É o bastante para comprovar a consolidação de uma estrutura institucional e política inexistente do fim da ditadura às intervenções do general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, na eleição presidencial de 2018, em ostensivo favorecimento a Bolsonaro. Cujo governo o general integrou até o mês passado, afastando-se por doença agravada.
Esses e outros retrocessos nas práticas institucionais já são novas realidades, que requerem mais do que o voto bem pensado. A retomada do país no ponto em que se perdeu precisaria da amplitude e da força que teve nas Diretas Já e na Constituinte. Se ainda é capaz disso, não se sabe. Mas que a situação é de última chamada, pode-se saber.
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Destaque: Hieronymus Bosch – A Violent Forcing Of The Frog (detalhe).
Infelizmente uma parcela dos brasileiros entendeu que a última chamada era para os aeroportos e já estão abandonando o barco… Vão ficar e sofrer os mesmos de sempre, os pobres, os vulneráveis, os que não tem plano B, nem vovô que dê dupla cidadania, porque o avô veio num porão de navio (acorrentados uns, fugidos outros, iludidos uns quantos). No fim os problemas sempre matam as mesmas pessoas, as quais, apenas uns contribuíram para o caos atual. Tempos difíceis.