Um diagnóstico sobre a realidade das camponesas marcada por violência

Por Nildnea  Castro*, na CPT/BA

A igualdade de direitos entre os sexos vem aos poucos sendo conquistada pelo movimento feminista que denuncia as injustiças sofridas pelas mulheres, independente de idade, etnia e classe social, pressionando autoridades para atuar em prol de sua proteção, acolhimento, protagonismo e autonomia, e lutando contra os projetos de morte impostos aos territórios e seus corpos, que se agravaram com a pandemia da COVID 19 e com o aumento da pobreza e fome em nosso país. Neste sentido, o Coletivo de Mulheres Marta dos Anjos, da Diocese de Bonfim-Bahia, também articula, anima, discute e encaminha ações coletivas, principalmente no meio rural, onde o machismo é acentuado. Uma dessas foi o diagnóstico sobre relações sociais de gênero, raça, etnia e geração, que envolveu doze municípios e teve como objetivo, compreender a realidade, perceber as problemáticas e identificar as lacunas e possibilidades de políticas públicas.

Os 29 grupos foram compostos em sua maioria por camponesas e a sistematização destas respostas visibilizou as violências sofridas diariamente por elas. Sobre as cinco violências apontadas na Lei Maria da Penha (11.340/2006) que também trata dos mecanismos de prevenção, enfrentamento e assistência às mulheres, a maior parte conhece todas e entre as reconhecidas parcialmente, as violências psicológica, sexual e moral foram poucas mencionadas, a patrimonial menos ainda. Percebe-se nos relatos o quanto essas violências são comuns no meio rural principalmente a física, tornando as mulheres e meninas mais vulneráveis, por estarem isoladas e longe das redes de apoio e proteção.

Sobre os comportamentos violentos destacam-se as ameaças, insultos, calúnia, desrespeito e humilhação vindos de seus cônjuges e de pessoas da comunidade, mostrando que estas ultrapassam o limite das relações privadas. Além disso citaram: agressões, espancamento, empurrão, inclusive com filhos/as, tendo até estupro, revelando a insegurança na própria casa. Outros resultados mencionam que homens quebram tudo em casa, têm total domínio sobre os negócios da família sendo alguns desonestos, amedrontam, perseguem e julgam elas incapazes. Teve ainda, proibições a mulher de estudar, sair, trabalhar, vestir o que deseja e músicas com mensagens machistas, revelando violências disfarçadas de proteção, mas na verdade é para mantê-las dependentes e dominadas, e no último caso é assédio com aparência de elogios, mas de fato, reduzem-nas a mero desejo masculino. Outro episódio trata da não aceitação comunitária que a esposa tome decisões em casa, taxando aqueles maridos que permitem isso, como “abestado”. Observa-se que ao romper o patriarcado, os homens que são bons companheiros sofrem com a discriminação. Nesta ditadura, a mulher é responsabilizada unilateralmente pelas tarefas domésticas, enquanto ele assume as funções consideradas superiores. Assim, o instinto maternal, a sensibilidade e habilidade para cuidar do outro são tidos como “dons” que as conduzem para o cuidado com a saúde dos/as idosos/as, enfermos/as, o acompanhamento escolar, a proteção e outras demandas, levam-nas a um processo de exaustão, reforçando e naturalizando a incoerência dos papéis sociais.

Ao tratar dos principais problemas na comunidade e como afetam as mulheres, surgem o desemprego ou subemprego, a falta de autonomia delas, a desunião e pouca comunicação entre casal, revelando que algumas estão reagindo e não se deixando ser inferiorizadas, como é o caso daquelas que não aceitam ter que pedir permissão ao pai, irmão ou marido para fazer o que desejam, surgindo daí os conflitos. No primeiro exemplo, somados a escassez de água, gravidez na adolescência, baixa escolaridade, problemas financeiros, de saúde e educação, os ataques a idosas/os e alcoólatras, mães e crianças depressivas, são demonstrações de ausência ou ineficiência das políticas públicas, onde há uma transferência de responsabilidade do Estado para a família, especialmente para as mulheres, sobrecarregando-as ainda mais. A carência em dialogar o tema, somada a grande incidência de famílias que criam os filhos valorizando sua superioridade, geram homens que tratam as filhas, irmãs e esposas como propriedade, inclusive as mães e avós, impedindo sua participação em qualquer espaço que lhes proporcione apoio, conhecimento e libertação, entre outras estratégias para inibir e disciplina-las, reforçam a lógica misógina, a opressão e o controle sobre seu tempo, corpo e trabalho.

No quesito empreendimentos do capital, foi gritante a denúncia do uso de agrotóxico nas plantações, parte nas fazendas vizinhas, principalmente as que praticam o agrohidronegócio. De acordo com relatos, contamina os alimentos, polui o ar, a água, causando a morte de peixes. A mineração e a energia eólica também foram citadas, devastam matas, obrigando os animais silvestres a se abrigar nas casas e com isso afetam a saúde dos/as moradores/as; assim como provocam a concorrência dos/as proprietários/as na compra de terras e até obrigando sua saída da comunidade; além da exploração da mão-de-obra barata, casas rachadas e preconceito de gênero por não contratarem mulheres. Neste último, seja talvez por estarem na linha de frente do confronto, já que permanecem em suas casas e precisam defender a família dos estranhos enviados pelas empresas que penetram nos territórios trazendo insegurança, desrespeito e até abusos sexuais. Há referências que os empreendimentos enfraquecem os grupos, provocam a desunião e medo para o enfrentamento, desviando a atenção para as comunidades não se organizarem, reforçando os impactos socioambientais e o sofrimento das camponesas, que além de vulneráveis, tem suas dores invisibilizadas.

O Diagnóstico buscou mapear ações e iniciativas de superação das desigualdades e violências. Foram apontados os grupos produtivos femininos e os sindicatos de trabalhadores/as rurais. As evidências mostram que quando as mulheres rurais se unem, ampliam-se as oportunidades e estratégias de produção e, consequentemente, o reconhecimento e valorização dos saberes e práticas e o incentivo para denúncias. Sobressaíram as redes locais de apoio e proteção às vítimas de violências compostas por colegas de trabalho, amigas/os e família. Outros grupos foram citados como o de jovens, da igreja, de futebol, de música, de dança e de projetos do governo, mas não se tem clareza se de fato estes promovem as ações necessárias.

Relativo as dificuldades de combater a violência doméstica e outras, ficou evidente que as vítimas se calam por medo da vingança do agressor, a pouca empatia entre as moradoras e a falta de formação e informação sobre o assunto. Sabe-se que o silêncio das oprimidas, que muitas vezes desconhece seus direitos, reforça as atitudes dos opressores, situação que se agrava com a rivalidade das mulheres, que por internalizar o modelo patriarcal, acusam, condenam e potencializam os poderes masculinos. Soma-se a isso a falta de punição dos agressores e a negativa dos vizinhos em denunciar para evitar confusão, seguindo a tradição de não interferir na vida alheia. Observa-se um contexto que inibe a mulher ameaçada e machucada a buscar intervenção do Estado, já que além de acreditar que isso nada resolve, ela se expõe e é responsável sozinha por desarticular a violência sofrida, tendo que convencer outras pessoas e gerar provas, diminuindo assim a possibilidade de cumprimento da lei e mudança da sua realidade.

Na questão dos mecanismos de proteção a mulheres, crianças, adolescentes e idosos/as no território, apenas três municípios foram apontados, os quais têm Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e a Ronda Maria da Penha, não existindo a Delegacia Especializada, entretanto em um destes, foi mencionado o Núcleo Especial de Atendimento à Mulher, sendo seu acesso, na maioria das respostas, difícil e pouco divulgado. Em relação as alternativas de prevenção e enfrentamento apareceram as delegacias comuns, Centro de Referência de Assistência Social, Conselho Tutelar, Pastoral da Criança, Associação local, familiares e outros grupos que promovem a solidariedade entre si. Num cenário de ausência ou precariedade das políticas governamentais, agregam-se à rede oficial outras instituições que auxiliam, mas não as substituem com condições adequadas de acolhimento e proteção para elas.

Sobre formas de diminuição das violências, apontam para maior organização comunitária, criação de grupo de apoio, reflexão coletiva reforçadas por campanhas informativas que sejam compreensíveis a todas as idades e ainda o debate nas escolas. Ademais, cobrar atuação mais efetiva das autoridades, setores e órgãos responsáveis para articular ações de combate ao desemprego no campo, palestras, oficinas e cursos visando o conhecimento e o incentivo a projetos que garantam o protagonismo feminino com acesso adequado à terra, água e tecnologias. E, envolver os homens na discussão no combate ao machismo, reforçando a necessidade de incluir todas/os na construção de uma nova sociedade, com outras formas de masculinidades, em que ambos conscientizados/as poderão encontrar soluções para os conflitos.

Conclui o diagnóstico com provocações àquelas comunidades que não têm grupo, se consideram a necessidade de criar, se é importante um coletivo regional e se tem interesse de compor Coletivo Marta dos Anjos. Quase a totalidade respondeu que sim. E como se dariam a criação dos grupos, sugeriram as rodas de conversa envolvendo todas/os, a ampliação do debate nos diversos espaços, garantindo a participação das mulheres e a formação de redes municipais e territoriais, não propagando o machismo e suas formas de dominação, pois este é o contrário do feminismo, que reivindica a igualdade de direitos. Nota-se aqui o desejo de um ambiente acolhedor de escuta, aprendizagem e motivações, inclusive para as denúncias, diferente da maioria, onde o debate sobre gênero é malvisto e procuram controlar o modo de viver, existir e amar das pessoas, criando justificativas e legitimando as violências.

Por fim, esses diagnósticos possibilitaram constatar o quanto o patriarcado é complexo e tão enraizado nas relações de gênero, raça, etnia e geração, induzindo a violência e ódio contra tudo o que representa os femininos, principalmente no meio rural. Portanto, faz-se necessário unir forças, continuar a debater criticamente esse assunto a partir da realidade das comunidades, identificar outras violências não discutidas aqui, como a obstétrica e a laboral, além de divulgar as iniciativas de superação, as políticas públicas existentes e suas lacunas. Ao promover estas ações emancipatórias constrói-se empoderamento ideológico, político e econômico das mulheres, e contribui para a uma sociedade mais justa, equitativa e solidária, sem dominação, preconceito ou exploração, onde é garantido a todas as pessoas oportunidades iguais.

*Agente da CPT Ampliada do Centro-Norte, Diocese de Bonfim – Bahia. Engenheira agrônomaespecialista em Desenvolvimento Sustentável no Semiárido, com ênfase em recursos hídricos e especialista em Ciências Ambientais.

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