Deputada federal faz parte do governo de transição e discute novas políticas a serem implementadas para povos originários; ela é uma das cotadas para comandar o novo ministério prometido por Lula
Por Daniel Camargos, no Repórter Brasil
O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem dito que o novo Ministério dos Povos Originários será comandado por um nome indicado pelos povos indígenas. Se o critério for apoio de lideranças indígenas, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) tem boas chances de ser a escolhida, pois recebeu contribuições de peso.
Primeira mulher indígena eleita para o Congresso, em 2018, a advogada ganhou apoio do cacique Raoni Metuktire, liderança histórica do povo Kayapó, que gravou um vídeo para a deputada. O escritor Ailton Krenak também endossou o nome dela, assim como o escritor e xamã do povo Yanomami Davi Kopenawa, que lhe enviou uma carta. “Temos que ouvir os sábios”, disse Alessandra Munduruku, guerreira fundamental contra o garimpo ilegal na bacia do rio Tapajós (PA), ao comentar o vídeo de Raoni.
Joenia não conseguiu se reeleger nas eleições deste ano. Teve mais votos do que outros três deputados eleitos por Roraima, mas esbarrou no quociente eleitoral. Atribui a derrota ao bolsonarismo latente na Amazônia, principalmente em seu estado, que deu a maior vitória a Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno (76%). Após a derrota, Joenia lembrou que foi a primeira deputada indígena da história, mas que não seria a última. Não foi.
Quatro mulheres indígenas estarão na Câmara nos próximos quatro anos. Célia Xacriabá (PSOL-MG), Juliana Cardoso (PT-SP) e Sônia Guajajara (PSOL-SP), aliadas de Joenia, e a bolsonarista Silvia Waiãpi (PL-AP).
Tanto Joenia quanto Sônia fazem parte da comissão de transição para os povos originários e são as mais cotadas para assumir o ministério. Entre as questões mais urgentes debatidas pelo grupo estão o garimpo ilegal em terras indígenas (TIs). “O governo [Bolsonaro] deu total condição para o garimpo ilegal. Houve omissão”, afirma Joenia.
O primeiro desafio da pasta será entrar no orçamento. A deputada prevê dificuldades na instalação do novo ministério, que deverá estar em pleno funcionamento só em 2024. Quando ela comenta sobre o funcionamento da futura pasta, as respostas soam como a de uma ministra. “Eu me sinto pronta e capaz. Acho que já venci muitos desafios e o ministério para mim é um status de conquista dos povos indígenas”.
Primeira advogada indígena do país, Joenia atuou por décadas no movimento indígena de Roraima. Conhecedora do massacre promovido pelos garimpeiros contra o povo Yanomami, ela quer endurecer a lei contra crimes ambientais e transformar o garimpo em terra indígena em crime hediondo.
Ela sabe que é uma luta dura, mas tem história em batalhas difíceis. Com o rosto pintado de urucum, subiu à tribuna do STF, em 2008, para fazer uma sustentação oral em defesa do território Raposa Serra do Sol, em Roraima. Foi a primeira vez que um indígena ocupou esse espaço. Saiu vitoriosa conquistando a desintrusão dos invasores. Poderá ser também a primeira ministra indígena. Leia a entrevista abaixo:
Repórter Brasil: O cacique Raoni Metuktire gravou um vídeo apoiando o seu nome para ser a ministra dos povos originários no governo Lula. É um apoio e tanto, né?
Joenia Wapichana: Foi muito bonito. Eu recebi agora uma carta do Davi Kopenawa também. Para mim é uma honra reconhecerem o meu trabalho. Eu fiz o máximo possível para utilizar meu mandato de uma forma coletiva, não somente para Roraima, mas para ser uma uma voz dos povos indígenas. Para que pudesse levar algumas soluções para garimpo, invasões de terras indígenas, desenvolvimento sustentável, educação indígena e aumentar a participação política das mulheres. Então, o Raoni conhecendo essa minha atuação e me indicando para assumir um espaço mais importante ainda foi uma honra. Mas isso (ser indicada para ministra) depende muito mais agora das lideranças indígenas. O Lula falou que vai consultar a decisão dos povos indígenas. Mas ter o apoio do nosso líder tradicional Raoni é motivo de alegria.
Já que a senhora é um nome fortíssimo para assumir esse posto, como vê a importância da criação desse Ministério dos Povos Originários?
É um ministério novo, que vai ter o desafio no primeiro ano de estruturação, de articulação com outros ministérios. Porque a questão indígena está em outros ministérios. Vai ser preciso articular o diálogo dos povos indígenas com o estado brasileiro. Também será um espaço para fortalecer as políticas indigenistas e apoiar as ações e programas. É importante que seja estruturado já agora, desde a transição, para que realmente tenha funcionalidade. Não seja um ministério só de status. Para dizer: “olha, tem ministro indígena”.
O que é preciso para não ser um ministério somente de status?
Ter autonomia para propor, deliberar e realmente chegar nas pontas. Hoje nós temos muitas demandas. Tanto de demarcação como também de gestão das terras indígenas. Os povos indígenas têm 14% da responsabilidade das terras no Brasil. É preciso pensar em como gerir os próprios recursos naturais. Então, a gente precisa de uma política forte e um investimento forte.
Há recursos para isso?
Hoje nós temos vários fundos para anunciar, inclusive, na COP, discutimos um fundo de perdas e danos, fundos climáticos, fundos verdes e fundos que vão apoiar povos indígenas. A gente tem que ter uma política nesse sentido, para dar uma resposta que garimpo não é a solução. A gente pode muito bem fazer a gestão do território indígena, principalmente para fortalecer um modelo diferente de desenvolvimento. Vai ser importante esse ministério, mas talvez demore um tempo para ele funcionar. Estamos vendo que está uma briga de orçamento e o ministério precisa ser colocado no orçamento. Mas vamos ter um funcionamento mais efetivo a partir do segundo ano.
Eu me sinto, como eu vou te falar… Eu me sinto pronta e capaz. Acho que já venci muitos desafios e o ministério para mim é um status de conquista dos povos indígenas. Que seja da vontade e de acordo com o que movimento decidir. Esse processo de consulta é muito importante. É importante respeitar a decisão coletiva.
Como vai ser essa decisão coletiva?
Eu não sei como vai ser. O que foi anunciado no Acampamento Terra Livre [em abril] é que os indígenas iriam escolher. Ele (Lula) não anunciou ninguém.
Achei que o Lula ia anunciar os ministros de Meio Ambiente e Povos Originários lá na COP, no Egito…
Tem muito puxa pra cá, puxa ali. A imprensa também fica especulando, aí gera ciúmes, mas não tem nada ainda. O que eu te digo é isso. Eu sei que tem muita torcida. Quando as pessoas falam, eu digo: obrigada. A torcida é grande, principalmente na Amazônia, minha região.
O Lula foi eleito defendendo as questões dos povos indígenas, mas em vários estados da Amazônia o bolsonarismo venceu. Como enfrentar essas políticas estaduais?
A questão da democracia tem que ser uma garantia de diálogo. Até mesmo para quem pensa diferente. As divergências políticas ocorrem, mas nunca com violência. Por mais que exista um posicionamento pró-Bolsonaro de parte da sociedade, eu acredito que muitos deles foram enganados por fake news. Espero que isso seja superado a partir do momento em que Lula assumir o país e provar que não era aquilo que diziam. Como o próprio presidente fala: vamos juntos reconstruir o Brasil.
O que o novo governo pode fazer para combater o garimpo ilegal em terras indígenas e áreas de conservação?
É preciso retirar os invasores. O presidente Lula disse na campanha que vai retirar os invasores das terras indígenas. Isso já demonstra a boa vontade política de fazer acontecer. Já existem decisões judiciais que determinam a realização de operações em Roraima, além da ADPF 709 (na qual o STF determinou que a União proteja a vida, saúde e segurança dos povos Munduruku e Yanomami). O que precisa é cumprir essas decisões judiciais.
Além das operações, o que mais é possível fazer?
Seria importante apresentar uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) evidenciando a completa proibição do garimpo nas terras indígenas. Já é proibido, mas é importante deixar isso bem claro. Outra necessidade é aumentar a fiscalização financeira e o controle do comércio de ouro. A gente precisa estabelecer também o aumento da pena. Eu sei que as penas de crimes ambientais estabelecidas no artigo 55 da lei de crimes ambientais são insuficientes do ponto de vista prático. A fiscalização vai lá, apreende as máquinas, prende quem está invadindo terra pública ou terra indígena e o invasor vai na polícia prestar depoimento, mas depois vai embora. É preciso rever um pouco a consequência para quem pratica garimpo ilegal. A dosagem dessa penalidade tem que ser adequada, ou então a pessoa vai achar que vale a pena pagar uma multa para extrair ouro ilegal.
De que maneira isso está sendo tratado no grupo de transição?
É preciso o empenho de retirar os invasores das terras indígenas. Para isso, precisamos promover dentro do orçamento os projetos e ações para proteger as TIs, pois os povos indígenas estão totalmente vulneráveis às invasões. O número de garimpeiros aumentou demais nos últimos anos e houve um desmonte total, sem investimento nos órgãos de fiscalização, vigilância e monitoramento. O governo (Bolsonaro) deu total condição para o garimpo ilegal. Houve omissão. A gente agora precisa reconstruir [as políticas públicas] para que os órgãos cumpram seus deveres institucionais.
Como o governo pode sufocar os garimpos, impedindo fornecimento de máquinas, equipamentos, mercúrio, combustível e outros insumos?
Primeiro temos que mudar essa legislação liberal. Segundo, investir nos órgãos para que eles possam fiscalizar. Nos últimos quatro anos não houve qualquer investimento. Foi um verdadeiro desmonte das instituições, inclusive quem denunciava crimes de madeireiros ou garimpeiros era retirado da direção dos órgãos. Houve também uma subnotificação de crimes ambientais, pois não mandavam analista para apurar. As multas diminuíram porque não queriam multar as pessoas. É preciso resgatar essa atribuição dos órgãos e isso vai ser feito com investimento em operações para uma fiscalização permanente. Não adianta a Polícia Federal ir de tempos em tempos nas terras indígenas e áreas de conservação para correr atrás do prejuízo. Se tivesse um trabalho mais de prevenção, de segurança, de fortalecer, uma proteção mais permanente e vigilância com segurança, isso seria o ideal. Foram retiradas frentes de fiscalização para indígenas isolados, como ficou evidenciado no crime lá no Vale do Javari. O governo precisa retomar essas frentes. Muitas bases foram extintas ou fechadas. Mas com vontade política para fazer, e colocando tudo isso no orçamento, é possível sim fazer.
Sobre a contaminação de indígenas por mercúrio (usado nos garimpos para amalgamar o ouro), é possível fazer algo urgente para remediar ou acabar com isso?
Isso é muito grave e algo tem que ser feito rapidamente. Eu fiz um projeto de lei junto com alguns outros parlamentares nessa linha de proibir o uso do mercúrio.
Publicamos uma reportagem na Repórter Brasil mostrando como o ouro extraído ilegalmente das terras indígenas Kayapó, Munduruku e Yanomami passa por refinadoras e chega até grandes empresas, como Apple, Microsoft, Google e Amazon. O governo pode atuar para impedir que isso aconteça? Ou fazer uma pressão internacional para que essas empresas não comprem ouro sujo com o sangue dos indígenas?
Apresentei um Projeto de Lei para tratar do rastreamento do ouro. É preciso saber qual a origem do ouro e aumentar a fiscalização no momento de compra e venda. Há um vácuo nessa questão no Brasil. É preciso fazer uma inovação jurídica e legislativa. Eu não sei se conseguiria apoio, mas para mim é importante colocar o garimpo em terra indígena como crime hediondo. Para mim é crime hediondo, pois, além da questão ambiental, [afeta] a questão da saúde, o social, a cultura e a vida.
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Com longo histórico de atuação nas causas indígenas, Joenia Wapichana foi a primeira advogada indígena do Brasil e a primeira que fez uma sustentação oral no STF, defendendo a desintrusão dos invasores da Raposa Serra do Sol, em Roraima. Foto: Lohana Chaves