Por trás de uma história: a dor e o luto com café e biscoitos. Por Priscila Viana

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“Não tenho condições de fazer essa reportagem, eu não sei se consigo entrevistar a família de Genivaldo”, me disse um jornalista negro que também mora em Aracaju e havia sido sondado pela Ponte Jornalismo para fazer a reportagem. O racismo, essa chaga tão profunda e aberta na história da nossa sociedade, grita a todo momento.

Confirmei que poderia passar meu contato e, em alguns dias, o editor da Ponte, Amauri Gonzo, entrou em contato comigo para falar sobre a pauta. Ventilamos alguns focos hipotéticos para a reportagem, que dependiam dos resultados da apuraçãos: entender melhor a história de vida de Genivaldo, a situação financeira da família após o seu assassinato (já que o benefício dele devido à condição de esquizofrenia havia sido cortado) e os possíveis impactos daquele dia trágico na vida da população de Umbaúba.
Meu pai cresceu em Umbaúba e quando eu e meus irmãos éramos crianças, íamos uma vez por mês visitar minha avó na cidade. Desde pequena, ouvíamos histórias de conflito entre pessoas da cidade e a polícia. Há muitos anos eu não voltava lá, mas imaginei que o assassinato de Genivaldo não era um caso isolado.

Telefonei para a assessoria de comunicação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e da Polícia Federal (PF) e ambas me pediram para realizar a comunicação por e-mail, como eu já imaginava. Respostas secas e institucionais, como eu também já imaginava. Peguei o telefone de Marise, irmã de Genivaldo e proprietária da moto que ele usava no momento da abordagem, com um amigo militante dos direitos humanos que acompanha casos de famílias impactadas pela violência policial em Sergipe. Ele havia participado do protesto realizado na BR-101 um dia após a morte de Genivaldo e visitou a família na semana do acontecido.

Falei com Marise pelo WhatsApp e optei pela comunicação por áudio, para ela perceber que se tratava de uma outra mulher (o que geralmente transmite mais confiança). Além disso, ao trabalhar com comunidades de pesca e agricultura, aprendi que a fala e a escuta são as comunicações por onde as/os trabalhadoras/es se entendem e se confiam. “A nossa palavra é pela boca”, me ensinou uma vez um agricultor de 55 anos. Muito simpática e solícita, Marise disse que poderia me receber e me passou o telefone de Fabiana, a viúva de Genivaldo.

Para chegar à casa de Marise, a alguns minutos antes da entrada de Umbaúba, é preciso pegar uma estrada de areia. A residência de Marise é simples, casa de trabalhadora rural. Ela me recebeu com uma camisa que estampava a foto do irmão, e não pude deixar de observar a semelhança entre eles — o rosto era praticamente o mesmo. Marise chorava muito. Em vários momentos da entrevista, ela parava de falar para chorar, principalmente quando lembrava dos momentos em família com Genivaldo. Era impossível não se emocionar.

Quando entrevistamos pessoas em luto, é importante ter em mente que, inevitavelmente, estamos contribuindo para o acionamento de memórias dolorosas. Quando a entrevista acaba, voltamos para nossas casas, fazemos o nosso trabalho e a vida segue. Aquela dor que ajudamos a esmiuçar permanece ali. Tudo o que eu podia fazer era dar uma palavra de apoio e ressaltar que o trabalho jornalístico é importante para que casos como esse não caiam no esquecimento, além de ajudar a intensificar a pressão popular por justiça. Ao final da entrevista, ela me agradeceu por “falar do meu irmão pra todo mundo”, me ofereceu um copo de água e perguntou se eu já havia almoçado. Gentilmente, agradeci e segui para a casa de Fabiana.

Não foi fácil encontrar o endereço e tive que perguntar a algumas pessoas no caminho: “onde fica a casa de Fabiana, a viúva de Genivaldo?”. Percebi na expressão das pessoas que o assunto ainda era pauta de possíveis conversas de porta e fofocas. Elas se entreolhavam antes de apontar o caminho e silenciavam.

Fabiana mora em uma casa muito simples, numa área com pouco saneamento básico, muitos terrenos baldios e ruas estreitas,  por onde não é possível passar um carro. No momento em que cheguei, percebi que os vizinhos da frente chegaram mais próximo à calçada. Mantinham suas conversas, mas com os olhos virados para a casa de Fabiana.

A primeira pessoa que vi, na porta, foi Enzo, o filho de Fabiana e Genivaldo. Ele também vestia a camisa que estampava a foto do pai e brincava com outra criança. Aproximei-me e perguntei: “Sua mãe tá em casa?”. Ele entrou correndo e logo Fabiana veio e me abraçou com um sorriso contido. Conversamos sentadas no sofá, no primeiro cômodo. Assim como Marise, Fabiana se emocionava muito ao lembrar do marido. Ao falar de si, de como era a relação dos dois, de sua indignação com a crueldade com que o machucaram e da sua dificuldade emocional em lidar com a situação e continuar criando os filhos.

Enzo ouviu a conversa toda. Ele andava de um lado para o outro, às vezes sentava no chão com o celular da mãe na mão, mas estava perceptivelmente atento à conversa. Vez em quando ele levantava o olho disfarçadamente em minha direção e, quando eu olhava de volta, ele virava o rosto. Em momento nenhum ele chamou a mãe ou se sentou ali entre nós. A comunicação corporal dele era a de quem não queria ser percebido, mas sua presença era forte.

Naquele fragmento de tempo, refleti um pouco sobre a condição da criança. Impotente, sem poder de decisão sobre a própria vida, sempre tendo que se adaptar às situações e dependendo das explicações dos adultos. Até certo dia, via seu pai chegar em casa e, de repente, sem que ele tivesse feito absolutamente nada, simplesmente acordou e tudo mudou. E agora tinha na mãe o rumo das coisas. A mesma mãe que estava ali, diante de uma desconhecida, desabafando em lágrimas sobre o quanto era difícil estar naquela pele.

Ao final da entrevista, ela me ofereceu água, café e uns biscoitos. Fui até a cozinha com ela e enquanto tomávamos café, seu filho mais velho passou por nós. Ela o apresentou, mas ele não disse uma palavra. Apenas me olhou nos olhos e saiu com a cabeça baixa, o corpo margeando as paredes.

Tanto Marise quanto Fabiana me contaram histórias sobre abordagens abusivas por parte da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Umbaúba, confirmadas pelo prefeito do município (a quem entrevistei por telefone). Alguns dias depois, a reportagem já estava quase pronta, quando Fabiana me mandou mensagem informando que um homem, que trabalha como segurança em Umbaúba, queria conversar comigo e me passou o contato dele. Conversamos e, em uma das histórias que ele me contou, ele era uma das vítimas. Cada frase que ele falava começava com “Ói, minha irmã…” e o telefonema terminou com “Deus lhe abençoe, minha irmã”.

O trabalho de construir narrativas sobre histórias é atravessado por muitas outras histórias. Assim como muitas famílias simples moradoras da zona rural, a família de Genivaldo a todo momento ressaltava o valor do trabalho enquanto uma luta pela vida, os laços de afeto sinalizados no cotidiano e que ajudam a enfrentar as dificuldades financeiras, e a fé numa força divina. Aquela que vai operar sobre as vidas e garantir que o rumo das coisas não seja injusto com aqueles que mais sofrem.

Se, para o mundo, Genivaldo era um homem desconhecido, como qualquer outro ser humano, para elas era aquele que representava um suporte emocional e financeiro. Ao filho de Genivaldo, elas se referiam ressaltando que ele estuda “em escola particular, pelo gosto do pai”, e a profissão que o menino quer ou deve seguir, na expectativa de que o destino dele seja diferente da maioria da família — que teve que largar os estudos para trabalhar na roça. Uma criança de 7 anos que sonha em ser policial federal e que enterrou o pai, torturado e morto por policiais rodoviários federais.

Priscila Viana é jornalista; escreveu para a Ponte a reportagem A tortura cotidiana da PRF em Umbaúba, onde Genivaldo foi morto

Diagnosticado com esquizofrenia, Genivaldo foi morto aos 38 anos em uma câmara de gás imporvisada por agentes da PRF | Foto: Arquivo pessoal

 

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