Crimes contra a vida, violações sexuais e patrimoniais fizeram 474 vítimas, aponta Rede de Observatórios da Segurança; instalação de megaprojetos na Amazônia se tornou terreno fértil para crime organizado, dizem especialistas
Por Jeniffer Mendonça, A Ponte
A advogada Dandara Rudsan lembra às lágrimas quando foi obrigada a deixar sua casa após a instalação da hidrelétrica de Belo Monte no Rio Xingu, próximo à cidade de Altamira, no Pará, em 2016. “Belo Monte tirou minha casa, Belo Monte tirou minha família”, declarou nesta quarta-feira (21/6), durante a mesa Violências socioambientais na periferias brasileiras, no 17º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que acontece na capital Belém.
Ela, uma travesti negra que formalizou o primeiro movimento voltado à população LGBT+ na cidade, o Coletivo Amazônico LesBiTrans, aponta que os megaprojetos em áreas ambientais capitaneados pelo Estado atingem principalmente as comunidades não-brancas. “Os olhos do mundo são voltados para a região amazônica, principalmente por conta da necessidade do capitalismo de extrair nossos recursos naturais que trazem empreendimentos mineradores, hidrelétricas”, explica.
Segundo Rudsan, esses empreendimentos causam dois tipos de violência. Primeiro, a ausência de acesso a serviços básicos. “A gente tem uma fragilização das políticas públicas, uma fragilização territorial, são criados reassentamentos urbanos coletivos que são conglomerados sem saúde, sem assistência social, sem políticas públicas”, afirma. “E aí que eu coloco o racismo ambiental dentro do debate: as pessoas que moram nesses RUCs, os reassentamentos urbanos coletivos, nós já levantamos que 87% das pessoas que habitam são negras.”
Em seguida, vem a presença do Estado apenas por meio de sua força repressiva, as polícias. “De todas as respostas para fragilidades e insegurança provocadas por contextos de empreendimentos mineradores que provocam essas violências ambientais dentro desses territórios, a principal que nós temos no estado do Pará é o aumento ostensivo do policiamento”, critica a ativista.
Devido a esse cenário, a notificação de casos de violência contra as populações indígena e quilombola no Pará cresceu 2.477% em cinco anos, segundo estudo lançado na segunda-feira (19/6) pela Rede de Observatórios de Segurança com base em dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) do estado. Em 2017, nove vítimas foram contabilizadas. Já em 2022, esse número saltou para 232, considerando crimes contra a vida, violências sexuais e patrimoniais.
Crimes cometidos contra quilombolas e indígenas no estado do Pará
Nesse rol de um total de 474 vítimas no período, 47 delas foram mortas, dentre as quais nove por ações de agentes do Estado, e 25 tiveram as suas terras expropriadas violentamente. A maior parte das violências (40,7%) corresponde a crimes de roubo, furto e ameaça. A organização monitorou o que classifica como violências socioambientais em oito estados brasileiros.
Pesquisador da Universidade do Estado do Pará (Uepa) e coordenador da Rede de Observatórios no estado, Aiala Colares Couto revela que essa atuação do poder público fertilizou diversas dinâmicas do crime organizado que contribuem para esse ciclo de violência. “Nós temos três elementos: o avanço do garimpo, o avanço do narcotráfico e a exploração ilegal de madeira”, explica. “Como nessas regiões a segurança pública se dá de uma forma diferente, essas regiões estão mais vulneráveis e essa vulnerabilidade é que acaba colocando eles [a população] em uma condição desfavorável de defesa da vida.”
Isso porque, enfatiza Aiala, a atuação do crime organizado é diferente no interior quando comparada à capital e à região metropolitana, onde há predominância da facção Comando Vermelho (CV), que se uniu com a Família do Norte (FDN) após as lideranças terem contato nos presídios federais, e tentativas frustradas de grupos alinhados ao Primeiro Comando da Capital (PCC) em tentar dominar essa área.
“O PCC vai para locais estratégicos, chega em Itaituba, em Marabá, em Parauapebas, inclusive em condomínios habitacionais populares, enquanto o Comando Vermelho faz uma outra rota, vai para região metropolitana de Belém e para Manaus ‘fazer a festa’ com a Família do Norte”, explica. “Só que a Família do Norte não consegue [dominar] porque o Comando Classe A [criado em Altamira e que já foi aliado do PCC] surgiu dentro dos presídios. Por isso Altamira vive hoje esse inferno com o conflito entre Comando Vermelho e Comando Classe A e por isso a taxa de homicídio em Altamira subiu nos últimos anos”, prossegue.
Luis Fábio Paiva, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) e que estuda mercados ilegais e crimes ambientais nas fronteiras brasileiras da Amazônia, também ressalta a complexidade das relações envolvendo, por exemplo, o garimpo e o tráfico de drogas. “Tanto a cocaína quanto o ouro alimentam mercados e economias que são alimentadas pelas elites econômicas e que têm conexões com lojas de joias que estão sendo vendidas nas ruas mais caras do mundo”, aponta.
“Mas você vai ver fechar um garimpo numa loja, um gerente correndo desesperado para o meio do mato? Não, porque o tipo de operação que é feito não é para chegar até esse gerente, ele continuará com a sua vida totalmente impune, sem sofrer nenhum dano a partir das políticas de segurança criadas para combater o garimpo. O que você vai ver são trabalhadores pobres que estão lá muitas vezes buscando uma alternativa de sobrevivência que é ilegal, mas que precisa ser considerada dentro de um contexto específico”, explica.
Por isso, ele ressalta que os megaprojetos criaram novos problemas para as populações que vivem nos estados que integram a Amazônia e que não participam da discussão, e que o alvo do Estado deveria ser os financiadores das práticas ilegais. “As decisões que estruturam essas leis penais e os dispositivos de controle social, geralmente, não levam em consideração o interesse das populações locais nem a existência dessas populações muitas vezes”, critica.
À Ponte, Aiala Couto disse que a Rede de Observatórios, assim como outras entidades, estão buscando diálogo com o governo federal para que o tema seja tratado de maneira diferente com a mudança de gestão. “Essa pesquisa que nós fizemos mostra um caminho alternativo à guerra às drogas, à guerra ao garimpo, para que esse caminho alternativo possa fugir à regra do que o Estado costuma fazer que é uma política de militarização que quase sempre acaba reproduzida de forma violenta e que acaba atingindo as comunidades que já estão vulneráveis”, declarou.
O que diz o governo
A reportagem procurou a Segup sobre os dados do relatório e aguarda resposta.
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Imagem: Em sequência, da esquerda para a direita: Larissa Neves, da Rede Observatórios da Segurança, Dandara Rudsan, do Coletivo Amazônico LesBiTrans, Aiala Colares Couto e Thais Custódio, ambos da Rede de Observatórios da Segurança no 17º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo