Políticos, militares e traficantes: quem atrasa a expulsão dos garimpeiros da terra Yanomami?

Relatório inédito faz balanço semestral sobre operação contra garimpo e aponta caminhos enfrentar o problema

Murilo Pajolla, Brasil de Fato

“Não sei como seria hoje se Bolsonaro fosse reeleito. Eu acho que a terra Yanomami e o povo Yanomami estariam exterminados”, avalia Maurício Ye’kwana, integrante da Hutukara Associação Yanomami, principal entidade representativa do território. A liderança considera que o fim do governo de Jair Bolsonaro foi fundamental para interromper o genocídio indígena provocado pelo garimpo. O desmatamento caiu, o atendimento de saúde foi ampliado e parte significativa dos invasores já deixou a terra indígena. As fendas e crateras abertas na floresta para extrair minério já não avançam mais.

Mas um relatório inédito lançado por associações Yanomami e Ye’kwana nesta quarta-feira (2) afirma que invasores ainda persistem no território, provocando instabilidade e insegurança. O documento é assinado por Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye’kwana (SEDUUME) e Urihi Associação Yanomami. As organizações indígenas explicam como políticos, militares e facções criminosas contribuem para tumultuar e atrasar ainda mais o processo de expulsão dos garimpeiros, que se arrasta desde fevereiro deste ano. E apontam caminhos para aperfeiçoar e ampliar ações de saúde, ajuda humanitária e restabelecimento de segurança alimentar, sem as quais será impossível reconstruir o modo de vida dos habitantes que ocupam a região há mil anos.

“Talvez você possa considerar 70% de evolução positiva depois de 6 meses. Mas ainda precisa ser olhado mais para dentro da terra Yanomami. [A gestão federal] precisa ter esse diálogo com as organizações indígenas. Porque só o governo entrando lá dentro e tentando fazer algo não vai conseguir fazer. Não sem a presença das organizações indígenas que estão ali”, defende Maurício Ye’kwana.

Em nota, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) reconheceu que ainda há questões a serem resolvidas envolvendo a Terra Indígena Yanomami, mas afirmou que a reconstrução dos estragos que foram feitos ao longo de anos de descaso leva algum tempo. “Ainda assim, podemos afirmar que o tratamento dispensado não só aos Yanomami, mas a todos os povos indígenas, já mudou para melhor”, salientou o MPI.

Forças Armadas “pouco colaborativas”

Intitulado “Nós estamos sofrendo ainda: um balanço dos primeiros meses da emergência Yanomami”, o relatório lembra que o governo começou a distribuir cestas básicas para as comunidades Yanomami no início do ano, que sofriam com desnutrição severa. Em fevereiro, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) elaborou uma nota técnica prevendo a entrega de mais de 50 mil cestas no primeiro semestre.

O transporte dos alimentos ficou sob a responsabilidade das Forças Armadas, por meio de aeronaves militares. No entanto, apenas 50% do previsto foi entregue aos indígenas, conforme revelou reportagem da Agência Pública.

“Essa situação impediu, por exemplo, que algumas regiões mais remotas recebessem esse apoio. Nesse caso, a participação do Exército mais atrapalhou do que ajudou na ajuda humanitária”, avalia o geógrafo e pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA) Estêvão Senra, que atua junto aos Yanomami há uma década e deu suporte técnico à produção do relatório. Ele considera a postura das Forças Armadas “pouco colaborativa”.

Como previa o decreto presidencial que inaugurou as operações no território, o papel das Forças Armadas estava restrito ao apoio logístico. Com reações violentas de garimpeiros armados, as medidas de repressão ficaram, portanto, a cargo do Ibama, da Funai e da Força Nacional. Até mesmo a Polícia Rodoviária Federal (PRF) foi chamada para atuar dentro da terra indígena, a centenas de quilômetros da rodovia federal mais próxima.

Sem aeronaves militares para transportar os agentes, ficou mais difícil reprimir o garimpo em toda a extensão da terra indígena Yanomami, que tem o tamanho de Portugal. Só em junho as Forças Armadas foram autorizadas pelo governo federal a localizar e prender os invasores.

“Eles [militares] também não ajudaram na manutenção das pistas de pouso [dentro da terra indígena]. Apresentaram uma conta caríssima para a Funai para fazer a manutenção dessa pistas. Na pista em que eles fizeram manutenção, da região de Surucucu, demorou meses para concluir reparos. Isso atrasou a construção do centro de referência em saúde”, acrescenta o geógrafo.

Outro ponto crítico apontado pelo relatório foi a falta de coordenação entre os órgãos governamentais, especialmente da Casa Civil, responsável por convocar diferentes setores – inclusive as Forças Armadas – para ações integradas. A ausência de uma abordagem coordenada dificultou, segundo o relatório das organizações indígenas, a realização de ações conjuntas, priorização de alvos e garantia de assistência adequada às comunidades vulneráveis.

“Narcogarimpo”, o “maior medo”

Sem saber precisar a proporção exata, Maurício Ye’kwana, da Hutukara Associação Yanomami, afirma que a maioria dos invasores já deixaram o território. “Quem está resistindo agora são mais aqueles garimpeiros simples. O que nos preocupa são as facções criminosas”, diz a liderança indígena.

O “narcogarimpo” na terra indígena Yanomami já é uma realidade conhecida de agentes do Ibama e da Polícia Federal (PF) com atuação em Roraima. As relações entre mineradores ilegais e facções se estreitaram durante o governo Bolsonaro, fruto do quase total desmonte da fiscalização ambiental. A extração de minérios se tornou uma forma de obter lucro fácil e de lavar dinheiro do crime organizado.

“À medida que cresce e se expande para novas áreas, o garimpo recorre às milícias fortemente armadas associadas a facções criminosas para poder se impor e garantir o controle territorial. De modo que os Yanomami e Ye’kwana ficam impedidos de circularem livremente pela Terra Indígena sob o risco de serem assassinados. Nesse contexto, ameaças de morte e humilhações são frequentes”, narra o relatório das organizações indígenas.

“O que pode acontecer é futuramente eles [facções] aliciarem os jovens Yanomami. Eles usarem os indígenas como usuário de drogas, oferecer grandes armamentos pesados para eles. O garimpo e esse crime organizado influencia os jovens. Esse é o nosso medo maior”, relata Maurício.

Políticos ligados ao garimpo interferiram

O balanço semestral do socorro aos Yanomami lembra que parlamentares de Roraima que representam os interesses dos garimpeiros tentaram interferir na logística da expulsão. A pressão dos políticos conseguiu minar uma estratégia que, segundo as organizações indígenas, estava dando certo: o fechamento do espaço aéreo. Proibida a circulação de aeronaves, as atividades garimpeiras seriam rapidamente estranguladas pela falta de insumos.

“A Operação ‘Escudo Yanomami’, entretanto, só conseguiu manter a restrição total de voos do garimpo por seis dias, após pressão de parlamentares de Roraima associados ao movimento dos garimpeiros”, diz o documento. Um dos políticos é o senador Chico Rodrigues (PSB-RR), notório defensor dos mineradores ilegais no Congresso. Ele defendeu e conseguiu que aeronaves particulares fossem autorizadas a entrar para retirar os invasores. A aeronáutica abriu três “corredores aéreos” por três meses, para que os garimpeiros saíssem espontaneamente.

“Se por um lado essa opção reduziu os custos das ações de combate à atividade por parte do Estado, por outro, permitiu que muitos financiadores retirassem seus equipamentos da Terra Indígena, sem maiores prejuízos (veja o número total de aeronaves apreendidas e inutilizadas) e constrangimentos (com repercussões, inclusive, para as investigações sobre a ação desses grupos criminosos)”, afirma o documento elaborado pelas organizações indígenas.

“Há rumores de que alguns dos principais “donos” de garimpos tiveram perdas tímidas com as ações e que deslocaram a sua operação para a Guiana, aguardando os esforços de Proteção da Terra Indígena diminuírem para retornarem”, prossegue o relatório.

Outro lado

O Brasil de Fato procurou as Forças Armadas, mas não obteve resposta.

Veja na íntegra o posicionamento do Ministério dos Povos Indígenas:

“O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) reconhece que ainda há questões a serem resolvidas envolvendo a Terra Indígena Yanomami, mas a reconstrução dos estragos que foram feitos ao longo de anos de descaso leva algum tempo. Ainda assim, podemos afirmar que o tratamento dispensado não só aos Yanomami, mas a todos os povos indígenas, já mudou para melhor.

A ida de uma comitiva governamental para o Fórum de Lideranças da Terra Indígena Yanomami e Ye’kwana, em julho, fato inédito até então, é um sinal claro dessa mudança de tratamento. Pela primeira vez na história, o Governo Federal foi a um território indígena escutar das lideranças as suas demandas para elaboração de planos de gestão territorial e ambiental, entre outros pedidos relacionados ao acesso a saúde, educação e outros direitos.

Uma forma de quantificar essa mudança é olhar alguns dados referentes à Operação Yanomami, iniciada em fevereiro, e que envolve 18 órgãos do Governo Federal em 233 ações emergenciais e estruturais que vão até 2026. Desde o início da ação, mais de 8,2 mil atendimentos médicos foram realizados, envolvendo 765 profissionais de saúde, que foram responsáveis por distribuir mais de 3 milhões de medicamentos, testes e outros insumos de saúde. Foram distribuídas mais de 12 toneladas de alimentos.

A atuação também resulta na expulsão de garimpeiros ilegais da região e retirada da infraestrutura de garimpo, com destruição de 76 balsas, desmobilização de 362 acampamentos e mais de 50 prisões. Outra indicação de melhora na situação foi dada pela Polícia Federal, que, em junho, informou que não ocorreram mais alertas de garimpo ilegal na região, algo não registrado desde o início do monitoramento por satélite em 2020.

O MPI segue empenhado em reestabelecer a dignidade e garantir a integridade dos Yanomami e de seu território.”

Edição: Rodrigo Chagas

Imagem: Alan Chaves / AFP

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