O processo busca a nulidade da reintegração de posse da aldeia Caípe do povo Xukuru do Ororubá; “são 300 hectares encravados no meio da TI”
Por Maiara Dourado, no Cimi
Mais um pedido de vista adia a sentença que pode rescindir a reintegração de posse da aldeia Caípe da Terra Indígena (TI) Xukuru do Ororubá, localizada no município de Pesqueira, em Pernambuco. O julgamento retomado na última quarta-feira (9) já havia sido adiado no dia 7 de junho com o pedido de vista da desembargadora Joana Carolina, que, após dois meses de análise, retornou seu voto de forma favorável ao povo Xukuru.
A desembargadora manifestou-se contra a reintegração de posse litigada em 1992 pelo fazendeiro Milton Didier, que reivindica parte do território Xukuru. Segundo Caroline Hilgert, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e uma das advogadas que representa a comunidade no caso, “são 300 hectares encravados no meio da TI”. A área já demarcada desde 2001 é o centro da discussão do processo que tramita no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5).
Ingressada em 2016 pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em favor do povo Xukuru, a ação busca a nulidade da reintegração de posse da aldeia Caípe, determinada pelo TRF-5 em 2003, em decisão favorável ao fazendeiro. A área é entendida por seus moradores como “o coração do povo Xukuru”, como a definiu Nén Xukuru, liderança da aldeia Caípe.
O desfecho do julgamento da ação rescisória, contudo, foi adiado com novo pedido de vista do desembargador Leonardo Resende Martins, que diante do voto de Joana Carolina, solicitou mais um tempo para que se aprofunde no caso. “Ele apresentou algumas dúvidas, pareceu que ele queria equilibrar os direitos [dos povos indígenas] e a questão do cabimento da ação rescisória e sua efetividade. Foi aí que ele pediu vista”, relata a advogada da comunidade.
Apesar de mais um adiamento da decisão, a surpresa veio com o pedido de antecipação de voto do desembargador Frederico Wildson da Silva Dantas, que manifestou posição contrária ao povo Xukuru, isto é, defendendo a manutenção da decisão que determinou a reintegração de posse ou a indenização das benfeitorias.
O resultado parcial do julgamento é de três votos a favor da manutenção da sentença dada pela reintegração de posse ou indenização das benfeitorias e um pela procedência da ação rescisória. Ainda em curso, o julgamento tem causado enorme apreensão à comunidade, que considera o placar de 3 a 1 “desastroso”. “A gente recebeu esse terceiro voto do desembargador Frederico muito triste e apreensivo. Mas continuamos firmes e fortes tendo um entendimento de que a terra é nossa, que ela nos pertence, sempre nos pertenceu”, considera a liderança.
Marco temporal
Apesar de iniciada em 2016, a ação que busca rescindir a reintegração de posse da aldeia Caípe remonta ao processo de demarcação da TI Xukuru. Com a retomada da aldeia Caípe em 1992, o fazendeiro Milton Didier passou a reivindicar essa parte do território, por ele apossada, com uma ação contra a comunidade. O TRF-5 decidiu em 2003 pelo despejo dos moradores da aldeia Caípe ou pela indenização das benfeitorias do fazendeiro, cuja sentença os indígenas tentam reverter nesse novo processo.
Naquela ação, a tese do marco temporal foi utilizada como argumentação jurídica principal, buscando restringir o direito territorial do povo Xukuru do Ororubá. No entanto, a referência temporal era diferente da atual proposta defendida por ruralistas, determinada não pela Constituição de 1988, mas pela Constituição de 1934. Essa é uma das primeiras ações a mobilizar a tese do marco temporal contra os povos indígenas no Brasil, discutida no Recurso Extraordinário com repercussão geral que envolve a reintegração de posse na TI Ibirama-Laklaño, do povo Xokleng.
Se no caso analisado no Supremo Tribunal Federal (STF), a Constituição de 1988 é tomada como referência temporal, limitando o direito apenas àqueles que estivessem na posse da terra ou a reivindicando na data de sua promulgação, no caso tratado no TRF-5, esse suposto marco temporal também poderia ser definido pela Constituição de 1934. Isto é, 16 de julho de 1934. Ambas as propostas são consideradas inconstitucionais.
Votação
Em seu voto no TRF-5, a desembargadora Joana rejeitou a tese do marco temporal de 1934 e reconheceu a nulidade do título da terra do fazendeiro Milton Didier, reconhecendo a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em seu voto.
A ilegitimidade do documento apresentado pelo fazendeiro, que não foi reconhecido pela desembargadora, se deve à existência de uma sobreposição conflituosa de direitos. Neste caso, o direito privado de um posseiro se sobreporia ao direito coletivo e originário, constitucionalmente garantido, dos povos indígenas. Para a liderança Xukuru, é o mesmo que “não ir contra uma família, mas ir contra 44 famílias que estão aqui”, afirma.
A demarcação da TI Xukuru do Ororubá em 2001 antecede a decisão expedida pelo TRF-5 em 2003. Nesse sentido, há o que a assessora jurídica do Cimi considera “uma anacronia no comportamento do Judiciário, no sentido de que já estava estabelecida a Constituição Federal de 1988 e já havia a homologação da terra do povo Xukuru. Então, se você considerar a Constituição Federal e que ali é uma terra indígena, são nulos todos os títulos, mesmo na Constituição de 1934”, explica a assessora.
O entendimento do desembargador Frederico, no entanto, é outro. Para juiz de segundo grau, sendo o título das terras apresentado pelo fazendeiro do século passado, não caberia uma ação rescisória por não haver uma infração legal. No entanto, “o que a gente entende é que houve uma infração à Constituição, o que torna os títulos nulos”, considera Caroline.
A Constituição Federal estabelece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionalmente ocupadas é originário e determina, explicitamente, que todos os títulos incidentes sobre estas terras são nulos, independentemente da data em que foram expedidos.
Para Daniel Maranhão, assessor jurídico do Cimi Regional Nordeste, caso a ação que tramita no TRF-5 seja julgada improcedente, o tribunal estará desrespeitando uma sentença estabelecida pela Corte IDH. Em 2018, a Corte condenou o Estado brasileiro por violação dos direitos do povo Xukuru e se manifestou contra a ação de reintegração de posse da aldeia Caípe.
“A Corte entendeu que se tratava de um caso que impedia o direito à propriedade coletiva do povo do Xukuru de Ororubá e representava uma ameaça a seus direitos e uma insegurança jurídica criada para este povo”, explica o assessor.
Medo e frustração
A comunidade da aldeia Caípe saiu frustrada com mais um adiamento do julgamento que pode definir o destino das 44 famílias que lá residem. A expectativa, segundo o cacique Marcos Xukuru, “era resolver esse problema de uma vez por todas para que o povo Xukuru e as famílias de Caípe pudessem viver tranquilamente, tendo em vista que essa é uma questão que já se arrasta por mais de 30 anos”.
Neive Xukuru, liderança da aldeia Caípe, que participou da retomada da fazenda realizada em 1992, que veio a dar origem à aldeia em litígio hoje, se preocupa com a insegurança jurídica. “Como é que vão ficar nossos jovens, nossos netos, nossos idosos? Hoje em dia a gente tem [posto de] saúde dentro da área, tem a educação [escolas], se caso acontecer a reintegração de posse, onde os nossos idosos vão ser atendidos, onde nós vamos morar? Porque a morada da gente sempre foi aqui e nós lutamos muito pelas nossas terras”, relata Neive.
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Imagem: Povo Xukuru do Ororubá manifestam em frente a sede do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Foto: Thácio Coelho