A morte de Karangré Xikrin, um ancião e guerreiro da aldeia Mrotidjãm, TI Trincheira-Bacajá

Grande conhecedor da cultura de seu povo e defensor de seu território, a liderança Mebengokré-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá faleceu em 31 de outubro

Por Rochelle Foltram, no ISA

Nos últimos dias, tivemos mais uma notícia da morte de um Xikrin que abalou os corações do povo Mebengokré-Xikrin e de seus amigos. Karangré Xikrin, também conhecido como Neguinho, um forte guerreiro de olhos brilhantes e sorridente. Karangré, nos deixou 31/10/2023 pela luta contra o câncer que se espalhou e não teve jeito. Nosso Neguinho passou seus últimos dias nos cuidados paliativos em Santarém, no Pará.
O povo Mebengokre-Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá está sofrendo perdas sucessivas de sua gente, como a de Bep Tok, o Cacique Onça, em decorrência de Covid-19, Bepjàti, Karangré Neto, Mané Gavião e mais uma velhinha da aldeia Kenkro de tuberculose.

Mortes evitáveis como os casos das perdas associadas à evolução de quadros de tuberculose. É difícil processar mortes por tuberculose na Trincheira-Bacajá ou em qualquer outro território em 2023, com tratamentos eficazes disponíveis.

Isso reflete um cumulativo de problemas que assolam o território e a vida do povo Xikrin do Bacajá. O “efeito Bolsonaro” na vida dessas pessoas foi cruel ocasionando o aumento de taxas de desmatamento, invasão e grilagem de suas terras, a partir de 2019.

Também os impactos da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, como as mudanças no modo de vida e a fragilização da segurança alimentar das famílias associadas à ausência de ações de mitigação ou compensação. O desmonte de políticas públicas de saúde voltadas para atenção preventiva e diferenciada deixa essas marcas de dor, a dor das mortes evitáveis.

Importante dizermos aqui que as equipes de saúde que atuam no DSEI-Altamira são, na maioria dos casos, um exemplo de luta e heroísmo, trabalhando em condições precárias em muitas situações. A essas e esses profissionais deixamos aqui as nossas sinceras homenagens e nossa admiração.

Sem dúvida, Karangré acumulava amigos brancos e eu era mais uma amiga. Lembro a primeira vez que vi Karangré, em 2019, ele estava entoando cantos de guerra na casa do guerreiro, junto de outros Xikrin.

Desde então, voltei muitas vezes para a aldeia Mrõtidjãm, onde sempre o via sentado com sua esposa Irebô na sua casa com muitos cachorros ao redor. Nesse momento, eu levava remédios para os cachorros e, assim como em outras casas, fui aplicar injeções nos cachorros. Karangré, eu e Irebô, trancamos os cachorros dentro da casa e corríamos atrás deles até ele segurar os cachorros e eu aplicar a injeção.

Karangré sabia fazer muitos remédios do mato para animais, mas em alguns casos os remédios que eu trazia curavam mais velozmente. Foi aí que começamos nossa relação, Karangré me dizia que iria me levar no mato para me ensinar a fazer remédios para os cachorros, assim eu poderia cuidar de todos os animais da aldeia.

Logo veio a pandemia e não foi possível que eu aprendesse com Karangré sobre os remédios do mato para animais. Fui rever Karangré junto com a equipe de vacinação do DSEI em 2021.

Eu e Thaís Mantovanelli nos dividimos em uma manhã do dia 29/01/2021 para trazer os Xikrin da aldeia Mrõtidjãm na enfermaria para vacinação, depois de muitas conversas. Thaís surgia de um lado da aldeia com Karangré e Irebô e eu de outro lado da aldeia com Bepkrô e Iretô. Eles quatro foram os primeiros a se vacinar na aldeia Mrõtidjãm em 2021 e junto com eles 75 pessoas de 100 adultos.

Foi com Karangré que chorei a primeira morte de um Xikrin na aldeia, de seu neto morto com 23 anos de tuberculose, Karangré Xikrin Neto.

Karangré era feliz, gostava de falar para os brancos ouvirem, se preocupava com o mundo que deixaria para seus filhos e netos. Ter a sua terra sem invasões era sua pauta número um. Ele morreu em meio a desintrusão da TITB e pôde ver parte de seu sonho realizado, mesmo que não completamente.

Eu estou velho, mas ainda estou defendendo essa terra para meu filhos e netos. No tempo dos caciques mais velhos combatemos os madeireiros, expulsamos os madeireiros, também mandamos embora os garimpeiros e a FUNAI estava junto com a gente. Andávamos a Terra Indígena toda e expulsamos todos os brancos. Hoje em dia o assunto é grave, o pessoal vai nas invasões com os caciques, expulsam os brancos e eles voltam. Hoje temos muitas invasões na nossa terra que é demarcada e os grileiros pegam nossa terra e acabam com nossas castanheiras, acabam com nossa floresta. (Karangré Xikrin, ancião, aldeia Mrõtidjãm).

* Rochelle Foltram, doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos-UFSCar. Trabalha com o povo Mebengokré-Xikrin, no estado do Pará desde 2018. Tem experiência em trabalhos relacionados a violações de direitos humanos contra os povos indígenas e no manejo de produtos da sociobiodiversidade, que mantém a floresta em pé e contribuem para a redução dos efeitos climáticos. Além disso, luta junto do povo Mebengokré-Xikrin em todas as esferas sociais para melhoria de suas vidas e preservação de seu território.

O cacique Karangré Xikrin buscava evitar que a contaminação do rio Cateté prejudicasse as próximas gerações. Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública.

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