Aborto espontâneo e leite contaminado: o impacto dos agrotóxicos no corpo das mulheres

Pesquisas mostram que a exposição das mulheres às substâncias tóxicas tornam seus corpos lugares ‘envenenados’ para si e para seus filhos

Por Júlia Motta, Revista Fórum

Apesar das mulheres representarem um pequeno percentual do total de trabalhadores à frente da produção agrícola no país, elas desempenham outras funções fundamentais nesse meio, como no preparo e aplicação de agrotóxicos e na lavagem de roupas contaminadas de seus parceiros. Esses trabalhos, além de outros fatores, contribuem para que o corpo das mulheres se tornem “envenenados” pelas substâncias.

Estudos desenvolvidos por diferentes pesquisadores brasileiros apontam para o aumento de casos de aborto espontâneo em mulheres que realizam essas funções ou residem em locais onde o uso de agrotóxicos é intenso. Já outros estudos também demonstram a presença de agrotóxicos no leite materno de gestantes nas mesmas condições.

A relação entre agrotóxicos e abortos espontâneos

De acordo com uma pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal do Mato Grosso (Neast/UFMT), nos municípios de maior produção agrícola encontram-se as maiores taxas de abortamentos espontâneos em mulheres em idade fértil (10 a 49 anos). O estudo foi publicado no livro “Desastres Sócio-Sanitário-Ambientais do Agronegócio e Resistências Agroecológicas no Brasil”, em 2022.

Somente entre 2016 e 2018, foram registrados 2.700 casos de aborto espontâneo, sendo 47,5% em mulheres que tinham entre 20 e 29 anos. Além do trabalho direto com o manejo de agrotóxicos, a proximidade entre residências e lavouras agrícolas também impactam na saúde das mulheres.

O estudo utilizou dados dados populacionais do IBGE, internações por aborto do SUS e de produção agrícola do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea). Os pesquisadores ressaltaram que o indicador poderia ser mais alto se os serviços de vigilância em saúde fossem mais efetivos e se todos os casos de aborto fossem notificados independentemente do tipo de atendimento, se público ou privado.

Segundo a literatura sobre agrotóxicos, algumas substâncias podem ser mutagênicos, capazes de causar mutação no DNA e provocar doenças como câncer, e teratogênicos, capazes de prejudicar o desenvolvimento do feto.

A pesquisa ainda explica que as substâncias organoclorados e os piretroides têm capacidade de modificar o equilíbrio do sistema endócrino da gestante no período pré-natal. Isso altera os hormônios, evoluindo para toxicidade nos fetos e para o aumento da contratilidade uterina e gerando, além de aborto, prematuridade, baixo peso ao nascer, crescimento uterino retardado e morte fetal.

Leite materno contaminado

Já outro estudo, também conduzido pela UFMT, identificou a presença de agrotóxicos considerados Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs) no leite materno. A pesquisa analisou amostras de leite de 62 lactantes e constatou a presença de pelo menos 1 dos 10 agrotóxicos analisados.

Outra pesquisa, realizada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) também encontrou a presença de agrotóxicos no leite materno em todas as amostras de 100 mulheres residentes da cidade de Tupã, no interior paulista. A substância analisada foi o glifosato.

Nesse caso, a contaminação se deu, principalmente, pela ingestão de produtos contendo agrotóxicos do que pelo contato da substância com a pele, visto que a maioria das voluntárias residiam em áreas urbanas e não tinham contato direto com o plantio, a aplicação da substância ou a manipulação de roupas de profissionais que fazem esse trabalho.

O perigo do glifosato

O glifosato é o tipo de agrotóxico mais usado no Brasil e no mundo. Produzido pela Bayer, o produto químico foi considerado “provavelmente cancerígeno para humanos” pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) da Organização Mundial da Saúde em 2015.

A substância leva o nome comercial de Roundup. Em 2018, o Ministério Público suspendeu a comercialização do glifosato até que a Anvisa fizesse uma reavaliação toxicológica. Após o procedimento, o produto voltou a ser usado, mas com restrições. A agência afirmou que “evidências científicas existentes até o momento não indicam que o glifosato cause efeitos à saúde humana que sejam considerados proibitivos para manter o produto registrado no Brasil”.

O glifosato é apontado como um dos principais agrotóxicos a provocar desregulamentação endócrina nos estudos sobre aborto espontâneo e as substâncias tóxicas.

Uma tese de mestrado em saúde da mulher, desenvolvida pelo sanitarista Inácio Pereira Lima da Universidade Federal do Piauí, investigou a intoxicação do leite materno com glifosato em gestantes de Uruçuí. Os resultados mostraram que 83% das mães tinham leite materno contaminado com a substância.

Em 2019, o cenário para liberação do glifosato se tornou ainda mais favorável no Brasil. Naquele ano, 93 produtos com glifosato tiveram classificação reduzida pelo governo Bolsonaro, de acordo com levantamento feito pela Agência Pública e Repórter Brasil.

Atualmente, o país debate o PL do Veneno, que visa amenizar as regras para o uso de agrotóxicos. O projeto divide ambientalistas e especialistas em saúde, ruralistas e entidades do governo.

Foto: Pixabay

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