Por Monica de Jesus Cesar, no Em Pauta
É com grande satisfação que realizamos esse diálogo com Maria Emília Lisboa Pacheco(1), assistente social, assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e integrante dos Núcleos Executivos da Articulação Nacional de Agroecologia e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Destaca-se sua atuação como uma das fundadoras da Articulação Nacional de Agroecologia (Ana) e ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
Com relevante experiência, Maria Emília gentilmente se dispôs a compartilhar com a Em Pauta e seus leitores reflexões sobre a relação entre questão ambiental, agroecologia e soberania alimentar, considerando que a fome e suas manifestações revelam que as desigualdades sociais no Brasil – de classe, gênero, étnicas e raciais – são estruturais e foram aprofundadas nos últimos anos, em virtude do desmanche das políticas públicas e das medidas ultraneoliberais e antidemocráticas postas em marcha no país. Medidas estas que, a favor do avanço da exploração capitalista dos recursos naturais e humanos, incidiram fortemente no meio ambiente, nos povos originários e nas populações tradicionais, ameaçando sua continuidade histórica. No centro deste debate, portanto, estão os sujeitos que, assim como nossa entrevistada, lutam pela preservação das terras, matas e florestas e pela defesa dos direitos dos povos que nelas vivem.
Em Pauta — Você foi a primeira mulher a presidir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e é assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) há muitos anos. Gostaríamos que contasse um pouco sobre a sua trajetória, destacando o fortalecimento da participação feminina e o papel central que as mulheres ocupam hoje na discussão da questão ambiental e na luta dos povos indígenas e populações tradicionais.
Maria Emília Pacheco — Minha vida profissional teve início na Prefeitura de João Monlevade, em Minas Gerais, em 1971, como Assistente Social. Eram tempos da ditadura militar e o prefeito era do partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Eu era a única mulher chefiando um departamento, como se dizia na época. Estava no recém-criado Departamento de Serviço Social e Saúde. Como era cargo de confiança, fui demitida na gestão seguinte da Aliança Renovadora Nacional (Arena) por razões políticas. Tive uma rápida passagem pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN) quando de sua criação em 1973, também em Minas Gerais. Fui igualmente demitida por razões políticas. Já no Rio de Janeiro, a partir de 1974, segui minha trajetória cursando o Mestrado de Antropologia Social no Programa de pós-graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/ UFRJ). Fui também a primeira mulher na coordenação coletiva da organização não governamental (ONG) FASE – Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional, onde estou desde 1978. Integro, hoje, o Nú-cleo de Políticas e Alternativas. Sou também uma das fundadoras da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e a primeira mulher a integrar seu núcleo executivo. Fazendo esta rápida retrospectiva e, olhando, hoje, é inegável o crescimento da participação das mulheres, fruto das lutas por direitos, da crescente mobilização dos movimentos das mulheres e do movimento feminista. Mas o país do patriarcado e do machismo continua nos indignando com os altos índices de desigualdade, violência e feminicídio.
O papel do movimento feminista no debate da questão ambiental se exprime na contestação da visão dominante da economia, que desconhece conceitos de limites naturais, de capacidade de suporte dos ecossistemas e de equilíbrio ecológico. Desconsidera também o contexto ecológico-social e dimensões do autoconsumo dos processos produtivos, por exemplo, na agricultura camponesa. Sabemos os efeitos de destruição ambiental da chamada agricultura convencional com os agrotóxicos que contaminam o solo, a água e os alimentos; erosão genética; uso dos combustíveis fósseis. A estes efeitos que não são medidos pelo mercado, os economistas consideram “externalidades”.
A reprodução humana como processo social nunca foi considerada. Como nos diz a economista feminista Cristina Carrasco(2), para a economia dominante a sustentabilidade da vida humana não tem sido uma preocupação analítica central. Ao contrário, usualmente é também considerada uma “externalidade”.
Tanto a natureza é vista como um bem ilimitado como o trabalho da mulher. Os diferentes espaços, trabalhos e atividades são hierarquizados socialmente e não têm o mesmo reconhecimento. A crítica ao paradigma dominante da economia, feita pelo movimento feminista, quer insistir na perspectiva segundo a qual se deve levar em conta as dimensões sociais e de gênero, e integrar nesse conceito uma distribuição justa dos recursos materiais, conhecimentos e poder, bem como um sistema de valorização econômica adequado ao trabalho das mulheres e da sustentabilidade do meio ambiente. Esta perspectiva se materializa no debate e práticas do campo agroecológico e da soberania alimentar com o reconhecimento dos sujeitos de direitos, com abordagem feminista.
Merecem destaque as dinâmicas de resistência de organização das mulheres. Em pleno governo antidemocrático, por exemplo, nasceu a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) que marca a importância da luta das mulheres para a proteção das florestas e dos direitos de seus povos. Esta organização se soma à mobilização das mulheres quilombolas, às mulheres negras do campo e da cidade, às mulheres camponesas do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) e grupos de mulheres de outros movimentos da Via Campesina, dos milhares de grupos e organizações das mulheres dos campos, das florestas e das águas que se reuniram na 7ª Marcha das Margaridas em 2023.
Em Pauta — Considerando que aspectos como dependência externa, concentração fundiária e frágil democracia condicionam a estrutura díspar da sociedade brasileira, e que o Governo Bolsonaro desestruturou e desmontou ainda mais as políticas públicas, aprofundando as desigualdades sociais, como isso vem repercutindo na questão ambiental, para os povos indígenas e populações tradicionais?
Maria Emília Pacheco — Vivemos uma sobreposição de crises – ambiental, alimentar, climática, econômica, social. Elas se aguçaram no período do governo Bolsonaro. É importante registrar que não ocorreu apenas a desestruturação de políticas públicas, mas também iniciativa de novas propostas de feição profundamente neoliberais.
No contexto de desmonte ambiental, foi criado o programa Adote um Parque (Dec. Nº 10.623/2021) que representou a privatização das áreas protegidas e territórios tradicionais. Expressando um total descompromisso republicano, o presidente em exercício disse: “O Brasil é o país que mais preserva seu meio ambiente. Em muitos países não se fala em mata ciliar, reserva legal. Nós temos tudo isso. A nossa Bacia Amazônica, não pega fogo”(3) (sic). A proposta foi aberta para empresas nacionais e estrangeiras. E logo se apresentou o Carrefour para “adotar” uma unidade de conservação na Amazônia. Em 2022, o BNDES lançou um outro programa do mesmo teor: Programa de Financiamento de Concessões de Parques Naturais, que previa um amplo conjunto de garantias e condições financeiras mais flexíveis, envolvendo 35 parques e 8 florestas. Promove-se a transformação da natureza em ativos financeiros. Privatizam os bens comuns, gerando conflitos territoriais com a violação dos direitos de populações tradicionais.
Os povos indígenas vivem permanentemente a violação de seus direitos, de negação da dignidade humana. Dou um exemplo: uma comitiva do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, em 2016, após o golpe, quando eu estava na presidência, realizou uma missão junto aos Povos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul.(4) Constatamos lá a situação de insegurança alimentar grave, de fome. O governo do Estado se negava a garantir cestas de alimentos para os indígenas em áreas de retomada de seu território. Nas negociações, recorremos ao sentido da Ajuda Humanitária para que o Direito Humano à Alimentação (art. 6º da Constituição) fosse respeitado.
Atualmente temos ainda um contexto de negação dos direitos dos povos indígenas. Foi promulgada a Lei 14.701/2023, pelo presidente do Senado Federal, no dia 28 de dezembro de 2023, em pleno recesso, sobre o Marco Temporal. Lembremos que o Presidente Lula havia vetado vários artigos. Houve a derrubada dos vetos. Rompe-se com o pacto constitucional. Aniquila-se o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras e decreta o verdadeiro extermínios dos povos indígenas como denuncia o Conselho Indigenista Missionário (CIMI).(5) É urgente declarar sua inconstitucionalidade. Vamos lembrar que a Constituição afirmou “direitos coletivos” e, uma de suas cláusulas pétreas, fala do direito às terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas (art. 231). Eles também passaram a ser reconhecidos na sua cidadania e poder ingressar em juízo em defesa de seus direitos, rompendo com a tutela do estado (art.232). A referida lei já está sendo questionada junto à Suprema Corte por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em conjunto com o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e a Rede Sustentabilidade.
A Constituição também assegurou às comunidades descendentes de quilombos o direito à propriedade de seus territórios coletivos (art.68 das Disposições Transitórias). São cerca de 1.797 processos de regularização abertos. Mas até hoje, apenas 171 terras quilombolas foram tituladas e 67 parcialmente tituladas.
Incluiu-se ainda na Constituição a proteção do patrimônio cultural (art. 216) e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225), dentre outros. Foram então abertas possibilidades de reconhecimento dos bens comuns.
Falemos da reconfiguração crescente da questão ambiental. Há dimensões políticas que se entrelaçam na história das transformações capitalistas. A natureza com suas paisagens das matas e florestas, com a diversidade de espécies e variedades está mais conservada lá onde vivem historicamente povos originários, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais.
A aprovação do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS na sigla em inglês), em 1994, um dos acordos principais da Organização Mundial do Comércio (OMC), gerou impactos. Brasil e Índia lideraram naquele momento a resistência à inclusão da propriedade intelectual, mas a adesão a este Acordo passou a ser condição necessária para os países serem membros da OMC. Antes a legislação do Brasil excluía o patenteamento dos alimentos e medicamentos, por exemplo. Além da conversão dos direitos e bens comuns na propriedade privada da terra, a propriedade intelectual abriu caminhos para o patenteamento dos materiais genéticos como as sementes em benefício das grandes corporações.
Já tivemos no país a mobilização sobre as Doze razões para se dizer não ao patenteamento dos seres vivos na campanha liderada pelas entidades da Rede de Projetos Alternativos (Rede PTA). E hoje, continuamos o debate com a proposta de rever o marco legal da biodiversidade brasileira e do acesso à repartição de benefícios sobre o conhecimento tradicional associado, expresso na Lei nº 13.123/ 2015, do governo Dilma, regulamentada pelo Dec. 8.772/ 2016. Ficou conhecida, em protesto dos movimentos sociais, como “lei da biopirataria”. Isto porque a legislação fortaleceu noções questionáveis como “origem não identificável”, facilitando a apropriação privada do patrimônio genético e cultural e assegurando quase como exceção a repartição de benefícios para as populações tradicionais.
Nós do campo agroecológico e da soberania alimentar, defendemos o direito ao consentimento livre, prévio e informado dos povos e comunidades tradicionais. Eles devem ser consultados previamente sobre qualquer medida legislativa ou administrativa que possa afetá-los (art. 6 da Convenção 169 da OIT); assim como para autorizar ou não o acesso aos recursos genéticos que tenham seu conhecimento associado (art. 8 “j”, 15 da CDB).
E seguindo a história, continua se aprofundando a mudança do significado da natureza com a chamada nova economia. Na década de 2000, títulos como “a nova economia – a busca para tornar a conservação rentável” ou “a fortuna da natureza”, mostraram o debate da natureza assumindo a linguagem dos negócios: ativos, riscos e inovação. Foi essa perspectiva de financeirização da natureza, de mercantilização da vida que pavimentou os caminhos da Cúpula dos Sistemas Alimentares, em 2021, no entrelaçamento da natureza e economia a serviço do capital.
Vivemos tempos de novos cercamentos dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. São tempos, como nos diz David Harvey, de “acumulação por despossessão” que impactam as populações tradicionais, que ontem eram consideradas atrasadas, anti-desenvolvimento, e hoje estão no coração dos processos de apropriação pelo mercado do conhecimento tradicional, mercado de carbono, no contexto de privatização e financeirização da natureza que se transformou em negócio.
Em Pauta — Tomando por base que um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) é acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável, quais medidas são necessárias para que o Brasil caminhe no sentido de responder à questão ambiental e às necessidades dos povos originários e populações tradicionais? Na sua visão, essas medidas estão sendo tomadas, no país, atualmente?
Maria Emília Pacheco — O Brasil saiu do Mapa da Fome em 2015. A conjugação de várias medidas de responsabilidade do Estado com programas e políticas públicas favoreceu este cenário: valorização do salário-mínimo; aumento das oportunidades de emprego; programa de transferência de renda como o Bolsa Família. Mas quero destacar iniciativas inovadoras como as compras públicas do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), com várias modalidades para favorecer a presença de alimentos de qualidade da agricultura familiar, camponesa e dos povos e comunidades tradicionais na formação de estoques públicos e para as organizações socioassistenciais.
Esse programa foi criminalizado na Operação Agro fantasma, quando foram presos agricultores/as e técnicos/as da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) por determinação do então Juiz Sérgio Moro, criminalizando o Programa e seus executores no Paraná. Passados alguns anos, em 2016, foram consideradas improcedentes as denúncias e decretada a absolvição dos réus. A volta do programa PAA, no ano passado, depois do desmonte do governo Bolsonaro é extremamente importante. Ele vem associado com a proposta das cozinhas solidárias, defendidas pelo Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) e outros movimentos sociais.
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), aperfeiçoado pela Lei 11.947 de 2009, introduziu a inovação de Chamada Pública, sem a exigência da aplicação da lei de licitação. Incorporou um percentual de 30% da compra de alimentos da agricultura familiar e camponesa. E hoje, há uma mobilização através da Mesa Permanente de Diálogo Catrapovos Brasil, instituída pela Câmara Temática de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6ª Câmara do MPF), em 2021, para fomentar a adoção da alimentação tradicional em escolas indígenas, quilombolas e de comunidades ribeirinhas, extrativistas, caiçaras, entre outras, em todo o país. Busca-se a adequação tanto de documentação como também das normas sanitárias que correspondam às especificidades da produção artesanal para que cheguem nas escolas e valorizem as culturas alimentares em lugar dos produtos alimentícios ultraprocessados que circulam em muitas escolas. Tenho representado esta Mesa, juntamente com um Procurador da República, no grupo consultivo que reúne sociedade e órgãos públicos no espaço de participação e controle social do PNAE.
A nova proposta da Política Nacional do Abastecimento Alimentar (Decreto nº 11.820/2023) mostra caminhos de enfrentamento à fome e à má alimentação, controle de preço dos alimentos, formação de estoque etc. Essa dupla dimensão da insegurança alimentar precisa ser assumida com mais vigor. Ela se articula com o necessário posicionamento firme da sociedade contra o uso dos venenos, em defesa do Programa de redução do uso dos agrotóxicos, em acordo com os princípios do Guia Alimentar da População Brasileira. Precisamos também enfrentar e contestar a concentração tanto na produção de commodities como o poder das corporações da indústria de alimentos que incentivam o consumo dos produtos ultraprocessados que têm adoecido a população(7). Nesse momento há uma proposta do Conselho Nacional de Saúde que recomenda a inclusão dos alimentos e bebidas ultraprocessados na categoria de nocivos à saúde na Reforma Tributária(8).
Mas as medidas estruturais de desconcentração da terra com desapropriação, a afirmação dos direitos territoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais, a definição de novas Unidades de Conservação de uso sustentável, precisam ser adotadas de forma combinada com esses programas e políticas. São medidas estruturantes de caráter democrático e que incidem sobre relações de poder e são fundamentais para alcançarmos a soberania alimentar. Precisamos defender a aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que afirma o direito da Consulta Livre, Prévia e Informada quando estão em causa os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais.
Há atualmente grandes ameaças face às propostas em debate no Congresso Nacional e no Judiciário que flexibilizam ou anulam normativas, retirando limites ao acesso à terra por empresas estrangeiras e sobre as terras de fronteira. Há propostas de titulação individual nos assentamentos da Reforma Agrária que acabam desestruturando as dinâmicas socioambientais, favorecendo a liberação de terras para o mercado.
Em Pauta — Recentemente, durante um evento na Bolsa de Valores de Nova York, o Governo Lula lançou o programa de títulos verdes, como uma estratégia para proteger o meio ambiente, mediante a captação de investimentos no mercado financeiro. A proposta é aplicar esses investimentos exclusivamente para financiar ações sustentáveis e de preservação ambiental. Gostaríamos que comentasse o papel da questão ambiental na política externa brasileira, tendo em vista a busca de financiamento e os compromissos internacionais assumidos na negociação de acordos comerciais.
Maria Emília Pacheco — O Brasil foi considerado um pária no cenário internacional durante o governo Bolsonaro com desmonte dos mecanismos de participação da sociedade civil, de instituições e infraestruturas públicas, cortes orçamentários, legalização e aumento da grilagem de terras e das taxas de desmatamento, violação dos direitos socioambientais, recorde de incêndios criminosos no Pantanal e Amazônia. Uma verdadeira destruição criadora na política ambiental brasileira como diria Harvey.
Com o governo Lula, o Brasil reassume um lugar importante na geopolítica mundial. Fala a respeito da ampliação dos Brics com a incorporação de outros países, mesmo que alguns sejam extremamente fundamentalistas. Será sede da COP 30 em 2025. E no grupo do CE-LAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) participa da proposta do Plano de Segurança Alimentar e Nutricional e Erradicação da Fome em 2030, que, nas palavras do Ministro do Desenvolvimento e Assistência Social Família e Combate à Fome, dialoga com a presidência brasileira no G20 por uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.
Mas o país, sob o governo Lula, ao mesmo tempo que reinstaura políticas que incorporam setores da população, inclui-se no macroprocesso de reestruturação tecnológica e medida neoliberais. A transformação no modo de produção 4.0 implica na transformação de bens públicos e comuns em ativos financeiros, por meio especialmente do agronegócio e da valoração e integração de novos “ativos” ambientais (como carbono, biodiversidade, água) às cadeias globais de suprimentos e commodities agrícolas. Movimento que ganha força com a promoção das chamadas “finanças verdes”, que autoriza emissão de dívida (títulos verdes), novos financiamentos e créditos tendo como lastro recursos naturais.(9)
Em outubro de 2023, o Senado aprovou o Projeto de lei (PL 412/2022) que regula o mercado de carbono, a partir da criação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) para a distribuição e compra/venda de licenças de poluição no país. Há riscos para a situação fundiária. O Parecer dos Povos sobre este Sistema,(10) divulgado em setembro, também no ano passado, pelo Grupo Carta de Belém, no qual a FASE participa, traz os resultados de uma pesquisa de um escritório de advocacia. Verificou-se que dos 69 projetos disponíveis para avaliação, 11 possuem sobreposição total com áreas de uso coletivo; 22 possuem sobreposição com áreas públicas e 23 são envolvidos em áreas privadas. Os movimentos sociais do campo e da floresta expressaram protesto em relação à progressiva transformação das concepções sobre ordenamento territorial no país, cada vez mais conectadas ao direito privado, e, portanto, mais distante das diretrizes do direito consuetudinário e da Reforma Agrária.
O mesmo documento dos povos fala sobre a experiência do município marajoara de Portel (PA), descrita em um relatório conjunto do Movimento Mundial de Florestas Tropicais (WRM) e o Sindicato de Trabalhadores(as) Rurais (STTR)(11), chama a atenção pela gravidade das denúncias recolhidas. O documento mostra indícios de que empresas desenvolvedoras de projetos de carbono estariam relacionadas à grilagem digital das terras na região, além de desrespeitarem, sistematicamente, as exigências da Consulta Livre, Prévia e Informada prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
As denúncias dos movimentos sociais sobre o que se passa em Portel ecoaram no Ministério Público Federal (MPFP) e no Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), com o reconhecimento de que os empreendimentos para extração de carbono interferem na autonomia das populações para gestão dos seus territórios, uma vez que se observou a ocorrência de “processos de desterritorialização e alteração substantiva dos modos de vida das comunidades tradicionais” como mostra o documento do Parecer dos Povos.
Em Pauta — A agroecologia tem sido apontada por intelectuais e representantes dos movimentos sociais, como alternativa para uma sociedade social e ambientalmente justa. Considerando as políticas públicas voltadas para a agroecologia já implementadas e as experiências nessa área, você acredita ser possível avançar numa direção que articule o Estado e os diferentes setores da sociedade — indígenas, quilombolas, agricultores/as familiares, agroextrativistas etc. — em torno dessa proposta?
Maria Emília Pacheco — Em sua construção histórica, a Agroecologia recebeu a influência de vários campos do conhecimento como a ecologia, os estudos sobre desenvolvimento e os estudos antropológicos sobre os sistemas agrícolas de muitos povos em vários lugares do mundo. Eles mostraram-nos como muitos deles incorporavam mecanismos de adaptação às variações do ambiente natural e proteção contra predadores e competidores. O manejo agrícola incluía símbolos e ritos que serviam muitas vezes para regular as práticas de uso da terra e criar códigos para classificar os conhecimentos transmitidos culturalmente entre os povos que não conheciam ainda a escrita.
Precisamos considerar que a Agroecologia emerge no campo científico como uma resposta à crise socioambiental. Baseia-se na defesa dos sujeitos de direitos. Faz um questionamento epistemológico ao interrogar os paradigmas científicos e colocar em diálogo outras formas de conhecimento. Reafirma os saberes tradicionais contra a visão restritiva somente do conhecimento científico. Questiona os parâmetros da chamada Revolução Verde que produziu a artificialização e industrialização da agricultura e imprimiu profundas mudanças na pesquisa, educação e extensão. Defende os circuitos curtos ou de proximidade de comercialização para acentuar tanto os sentidos das culturas alimentares, o consumo de alimentos naturais, como enfrentamento das mudanças climáticas. Em sua dimensão social, precisamos entender que as mulheres ressignificam a Agroecologia tanto por contestarem o machismo como por trazerem à tona princípios da economia feminista sobre os valores de uso, os sentidos da economia da reciprocidade e solidariedade que animam a dinâmica econômica do campesinato, povos e comunidades tradicionais.
Recolocar as alternativas significa atualizar o debate sobre o caráter da questão agrária e defender a democratização do acesso à terra, com a Reforma Agrária, os direitos territoriais e o direito ao livre uso da biodiversidade dos povos indígenas, comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais e agricultura camponesa.
Estamos substituindo nossa alimentação. Consumimos mais produtos alimentícios ultraprocessados produzidos pela indústria de alimentos com impactos negativos para a saúde, aumentando o número de pessoas com doenças crônicas não transmissíveis como diabetes e pressão alta.
Foram reduzidas as áreas de produção de alimentos, sobretudo, da agricultura familiar e agroextrativista, com os desmatamentos, grandes projetos e substituição dessas áreas por monocultivos para exportação e mineração. Consumimos cada vez mais água e alimentos contaminados por agrotóxicos. Da produção ao consumo, há um processo crescente de concentração e fusão das grandes corporações.
O modelo de agricultura hegemônico no Brasil é insustentável. É um equívoco esta ideia de que é preciso grande extensões de terra, uso de agrotóxicos e transgenia para alimentar a população. A agricultura camponesa, na contramão desta lógica, tem enorme contribuição na produção de alimentos e manejo de produtos nativos. Por isso, uma das nossas alternativas deve passar pelo apoio à agricultura camponesa e agroecológica, às comunidades agroextrativistas e pelo fortalecimento da agricultura urbana.
Estamos diante do desafio de articular esse debate sob vários sentidos: políticos, técnicos, socioambientais. E as várias expressões das desigualdades nos dizem também sobre a importância estratégica de relacionar as desigualdades de classe, gênero e étnico raciais. Por isso temos a consigna: sem feminismo não há agroecologia. E estamos avançando com a liderança das mulheres comprometidas com a luta antirracista e dizemos: se tem racismo não há agroecologia.
Em Pauta — Quais mudanças você observa nos últimos anos em relação à questão ambiental, às lutas dos povos indígenas e populações tradicionais e quais as perspectivas futuras?
Maria Emília Pacheco — São tempos muito difíceis. As perspectivas futuras nos colocam no enfrentamento do capitalismo e suas novas formas de espoliação e despossessão. Precisamos aprofundar:
• A contestação do controle da cadeia alimentar por um grupo cada vez mais reduzido de grandes corporações;
• O protesto contra a legalização da privatização da vida através dos direitos de propriedade intelectual, dando lugar à biopirataria moderna
• A problematização das chamadas novas tecnologias de artificialização da vida e mercantilização da natureza.
Precisamos de regulação das questões socioambientais tendo no centro os direitos e não o mercado.
As medidas de flexibilização das normas ambientais expressas nas mudanças do Código Florestal e do Código de Mineração; as questões fundiárias e sobre o acesso aos recursos genéticos; as propostas de mercado de carbono geram processos de expulsão e expropriação que nos distanciam de caminhos de construção dos sistemas alimentares saudáveis. A defesa da democracia e os caminhos da Agroecologia e da Soberania Alimentar significam passos na luta pela justiça social e climática e pela afirmação e reconhecimento dos sujeitos de direitos.
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1.Assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE). Integrante dos Núcleos Executivos da Articulação Nacional de Agroe-cologia e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricio-nal. E-mail: [email protected].
2.Cf. CARRASCO, C. A sustentabilidade da vida humana: um assunto de mulheres? In: FARIA, N.; NOBRE, M. (org.) A Produção do Viver, São Paulo: SOF, 2003.
3.Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2021/02/governo–lanca-programa-adote-um-parque. Acesso em: 03 maio 2024.
4.Cf. Tekoha: Direitos dos povos Guarani e Kaiowá. Visita do Consea ao Mato Grosso do Sul, Brasília: Presidência da República, 2017. 5
5.Nota do Cimi: “é urgente que a Lei 14.701, decreto de extermínio dos povos indígenas, seja declarada inconstitucional”; 9.02.2024; Disponível em: https://cimi.org.br/2024/02/notalei14701/. Acesso em: 03 maio 2024.
6.Cf. Comissão Pró-Índio São Paulo. Observatório Quilombola. Disponível em: https://cpisp.org.br/. Acesso em: 03 maio 2024.
7.Alimentos ultraprocessados são formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas) derivadas de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas como petróleo e carvão (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos usados para dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes). Técnicas de manufatura incluem extrusão, moldagem e pré-processamento por fritura ou cozimento. (BRASIL, Ministério da Saúde. Guia da Alimentação da População Brasileira, 2ª. ed., 2014).
8.Conselho Nacional de Saúde, Recomendação 011 – Recomenda a inclusão dos alimentos e bebidas ultraprocessados na categoria de nocivos à saúde na Reforma Tributária, 20 de julho de 2023. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/images/Recomendacoes/2023/Reco011_-_Recomenda_a_incluso_dos_alimentos_e_bebidas_ultraprocessados_na_categoria_de_nocivos__sade_na_Reforma_Tributria.pdf. Acesso em: 03 maio 2024.
9.O Brasil na retomada verde: integrar para entregar. Grupo Carta de Belém, 2021. Disponível em: https://br.boell.org/sites/default/files/2022-02/CARTA-DE-BELEM_PUBLICACAO_RETOMA-DA-VERDE4.pdf. Acesso em: 03 maio 2024.
10.Grupo Carta de Belém, Parecer dos Povos sobre a Proposta para Criação de um Sistema de Cotas e Comércio de Poluição no Brasil 29/09/2023. Disponível em: https://www.cartadebelem.org.br/wp–content/uploads/2023/10/Parecer_Dos_Povos_GCB_final-04.10.pdf. Acesso em 03 maio 2024.
11 7 Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais. Neocolonialismo na Amazônia: Projetos de REDD+ em Portel, Brasil. 2022. Disponível em: Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais. Neocolonialismo na Amazônia: Projetos de REDD+ em Portel, Brasil. 2022. Disponível em: https://www.wrm.org.uy/sites/default/files/2022-11/REDD_Portel_PT.pdf. Acesso em: 03 maio 2024.
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