Entre área abandonada e empresas, moradores da Muribeca, em Jaboatão, temem enchentes

Estudo mostra que instalação de galpões logísticos intensificou alagamentos nas casas do bairro do município

Por Danilo Queiroz | Edição: Mariama Correia | Fotógrafo: Anderson Stevens, Agência Pública

“Eu sinto que estou num buraco que a qualquer momento a água pode soterrar.” É assim que Taciana Helena Silva, 39 anos, descreve a Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana de Recife (PE). O bairro tem a maior quantidade de áreas de risco de alagamento do município (51 pontos), de acordo com pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Jaboatão foi a cidade com maior número de mortes em Pernambuco na tragédia das enxurradas de maio de 2022, que afetou 120 mil pessoas e deixou 133 mortos no estado.

Atualmente, mais de 70 mil domicílios estão situados em áreas de risco alto ou muito alto de inundação ou deslizamento, segundo levantamento do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH) a partir de estudos do Serviço Geológico Brasileiro, obtido exclusivamente pela Agência Pública. O levantamento aponta que, desde 2012, o investimento público municipal em ações de redução de riscos e infraestrutura urbana foi de apenas R$ 38,8 milhões.

Taciana mora em uma casa com a esposa e a filha, de 14 anos, na rua Doutor Armando Tavares, rodeada por grandes galpões logísticos, como os da Polimix Concretos, Movimenta Logística e Armazéns Gerais e QLT – Quimitrans Logística & Transportes, além da Mineradora Owens Illinois Recife. O casal foi para lá depois de ter sido despejado de um prédio da Cohab na Muribeca, onde moravam desde 1985. O conjunto habitacional tinha 70 prédios, totalizando 2,2 mil apartamentos. Eles foram interditados por ordem judicial a partir de 1995, quando o primeiro prédio, conhecido como “balança mas não cai”, foi esvaziado porque apresentava falhas estruturais.

Com o passar dos anos, o conjunto de edifícios se tornou uma espécie de bairro fantasma, com ruínas abandonadas. Parte dos antigos moradores se instalou em imóveis que ficam entre o conjunto habitacional, para onde são proibidos de voltar, e os grandes empreendimentos logísticos. A expansão dessas empresas, na última década, teria aumentado os riscos de alagamentos no bairro, de acordo com um estudo técnico realizado pela Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS) e o Somos Todos Muribeca (STM), organizações atuantes no bairro em defesa do direito à cidade. As casas circunscritas entre os prédios abandonados e os galpões logísticos são as mais atingidas, segundo o estudo, e as famílias vivem com o medo constante de novos alagamentos.

De acordo com o estudo técnico, o pico das construções de galpões logísticos, que mobilizam investimentos milionários, aconteceu em 2020. Até 2023, eles já ocupavam uma área de 44 hectares, equivalente a duas Arenas de Pernambuco lado a lado, estádio construído para a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Mas novos empreendimentos continuam chegando.

Os pesquisadores dizem que, ao aterrarem uma área de várzea, historicamente alagadiça, e elevarem o nível das construções na região, essas “empresas criaram uma espécie de funil, contribuindo para que o escoamento da água da chuva, que alimenta os canais, chegue com maior velocidade na comunidade, agora localizada numa parte muito mais baixa quando se comparada ao espaço onde estão essas instalações”.

Os empreendimentos estariam “amplificando a invasão da água das chuvas nas casas porque ocupam áreas que ficam próximas a dois canais que alimentam o curso do Rio Jaboatão, o Canal Vila Mariana e o Canal Três Carneiros”. Ambos cruzam a área habitada. Também porque teriam reduzido regiões de mata, que ajudam a escoar a água.

Por que isso importa?

  • Moradores do bairro da Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, vivem com medo de novos alagamentos. Parte deles foram expulsos de prédios condenados pela prefeitura, mas os novos locais de moradia são mais vulneráveis a alagamentos, que estão piorando com a chegada de grandes empreendimentos logísticos na região.

Emanuela Fernandes, 47 anos, moradora da Muribeca desde os seis, enfrentou todas as enchentes que atingiram o bairro, entre 2004 e 2022. Ela também foi despejada da antiga Cohab da Muribeca, onde, lembra, os alagamentos até “aconteciam, mas de forma mais pontual”. No lugar onde passou a morar, que é perto da casa de Taciana, os alagamentos são mais intensos, diz.

“Desde que esses empreendimentos passaram a ocupar áreas próximas a nós, da comunidade, a quantidade de alagamentos aumentou bastante. Hoje a água rapidamente fica no joelho quando chove, porque a água vem arrastando tudo, já que estamos numa parte muito mais baixa do que as empresas. A sensação é de encurralamento, porque o lado onde a gente hoje mora alaga, e do outro não se pode morar.”

A partir de imagens de satélite, o estudo técnico aponta que a instalação dos galpões logísticos foi responsável por “acentuar um dos maiores desastres climáticos ocorridos na cidade, em 2022”.

“O que as empresas fizeram foi justamente alterar o curso do rio, criando uma área irregular que antes não existia, somado a concentração de chuvas em um certo período. Agora, a comunidade é vítima de um racismo ambiental autorizado pelo poder público. O que Muribeca virou senão um buraco?”, questiona Diogo Galvão, doutor em geografia pela UFPE e um dos coordenadores técnicos do estudo.

Famílias encurraladas

No fim de 2019, seu Lula, como é mais conhecido Luiz Cláudio Gomes de Melo, 48 anos, foi despejado do apartamento na Cohab e se instalou numa casa, com a esposa e os filhos, na rua Cabo, próximo ao Centro de Saúde Alternativa da Muribeca (Cesam). Um ano depois, uma decisão judicial determinou a demolição do Cesam e de cinco casas no seu entorno. O centro foi fundado em 1998 por mulheres do bairro e atua na produção de medicamentos à base de plantas medicinais, distribuídos para a comunidade, sob supervisão da Fiocruz e da UFPE.

A Justiça decidiu também que toda e qualquer construção num raio de seis metros dos prédios interditados na Cohab da Muribeca também fosse demolida, ampliando o raio da área inabitada. “Ao sair dos prédios da Cohab, pensávamos que o sufoco havia passado. Porém, o medo veio quando descobrimos que o Cesam teria que ser demolido e as casas próximas a ele também, inclusive a minha”, conta Lula.

Tanto o Cesam quanto a igreja Batista que atua no local e as casas do entorno permaneceram depois de uma nova decisão judicial, em fevereiro de 2020. A regularização fundiária desses imóveis, entretanto, ainda está sendo realizada.

Após a migração dos moradores da Cohab, por decisão judicial, a área continuou vazia e virou um grande depósito de entulho. No processo de despejo, consta que o terreno de mais de 210 mil metros quadrados seria “destinado a um parque municipal e outros equipamentos públicos, sendo proibida a construção de novas unidades habitacionais ou comerciais”. Na época, em 2019, o então prefeito Anderson Ferreira (PL) se reuniu com o presidente do senado, na época Davi Alcolumbre (União-AP), para tratar do assunto.

Dois anos depois, ele lançou um plano de regularização fundiária, prometendo que durante sua gestão 800 casas do bairro da Muribeca teriam o título de legitimação. Mas, até agora, segundo moradores ouvidos pela Pública, nenhum imóvel foi regularizado. “A prefeitura veio aqui e recolheu os documentos necessários apenas nas casas da quadra um. Continuamos sem resposta, mesmo cobrando por isso, tão importante para nós”, conta seu Lula.

Hoje, Ferreira é presidente do PL no estado e Jaboatão é gerida pelo seu antigo vice-prefeito Mano Medeiros (PL), que é candidato à reeleição. A área dos antigos prédios segue sem função social ou registro de obras para implantação do parque municipal. “Retira famílias inteiras, derrubam prédios e deixa a área morta, sendo que essa área da Cohab era a mais propícia para morar por ser a mais plana e a que menos alaga, em comparação com a área de entorno, para onde as famílias migram, empresas se instalam e agravam os alagamentos na comunidade”, explica Manoela Jordão, uma das coordenadoras da CPDH.

Alagamentos são rotina no bairro

Para conter os alagamentos, que são constantes no bairro, os moradores passaram a adotar algumas estratégias. Alguns aumentaram a altura da base das casas ou construíram até uma laje. Seu Lula e Emanuela mostram móveis estragados, marcas da água nas paredes e o estoque de tijolos no quintal de casa, que são usados como um suporte para subir os eletrodomésticos e móveis, quando a água invade. Mas nenhuma dessas estratégias foi suficiente para impedir inundações das casas que ficam próximas aos galpões logísticos e foram muito atingidas nas enxurradas de 2022.

“Eu não consigo mais dormir em paz. O cheiro do rio engolindo minha casa não sai da minha mente, mesmo lavando 15 vezes a casa em um único dia com sabão em pó e água sanitária”, diz Emanuela. Ela conta que, desde 2022, quatro vezes precisou tomar ansiolíticos e remédios para síndrome do pânico por conta do trauma das enchentes. No ano passado, a água tomou conta da casa dela mais uma vez.

“Tive que deixar de pagar algumas contas para colocar uma mureta na frente de casa, como um sinal para saber o nível da água, se vai invadir ou não. Não deveria ser uma obrigação minha, já que o que temos passado foi causado pela prefeitura e as empresas. É por conta deles que a água engoliu minha casa e até hoje.” Atualmente sua família ainda divide um guarda-roupa com madeira que amoleceu totalmente nos alagamentos.

Desde 2016, a Muribeca passou a integrar uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis) reconhecida pela Defensoria Pública do Estado. Mas “o Plano Diretor mais recente de Jaboatão dos Guararapes alterou o bairro da Muribeca de uma função domiciliar para uma função logística”, explica Annelise Campêlo, uma das líderes da Comissão Ambiental de Jaboatão. Essa mudança, que não poderia acontecer em uma Zeis, segundo Campêlo, demarca a posição da prefeitura em contribuir para a expulsão dos moradores.

A comissão já realizou algumas reuniões com a Secretaria Executiva de Meio Ambiente da cidade. Nos encontros, Campêlo levou propostas que a secretaria poderia adotar e mitigar esse impacto provocado pelas empresas. “O que a gente ouviu da secretária Ana Paula Pontes é um argumento muito pífio: ‘Não temos controle sobre isso’. Nas reuniões já justificaram que as mudanças climáticas é algo quase inexistente e que não impacta tanto assim a comunidade, porque está escrito na Bíblia que Deus não permitiria um novo dilúvio na terra”, diz. A reportagem questionou a prefeitura sobre a declaração, mas não obteve resposta.

A comissão também tem feito denúncias em parceria com a CPDH e o Somos Todos Muribeca. Uma delas chegou ao Ministério Público (MP), que notificou, em 2016, a empresa de engenharia SAM por desvio irregular do curso do canal Mariana para facilitar sua instalação. Com o desvio, a empresa evitava alagamentos na sua área, mas prejudicava a comunidade vizinha, a Sapolândia, que seria mais atingida. Além disso, “a empresa foi flagrada construindo um aterro numa Área de Preservação Ambiental (APP), suprimindo a vegetação nativa, que funciona como uma esponja quando há extravasamento hídrico”, diz o MP.

Ainda de acordo com o MP, o empreendimento, que ainda está em construção, não teria licença ambiental ou licença prévia emitida pela prefeitura. Por conta das irregularidades, em 2013 o MP expediu um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) entre a empresa SAM e a prefeitura, assinado em 29 de dezembro de 2016. No TAC ficou estabelecido que a obra deveria executar um serviço de drenagem. Foi obrigada também a apresentar termos de compensação na recuperação da mata ciliar, tendo que plantar mil mudas nativas de espécies da Mata Atlântica. Em 2020, a prefeitura paralisou as obras da empresa SAM, já que esta se recusou durante quatro meses a repassar um levantamento topográfico da área de instalação.

O descumprimento das medidas resultaria em multa de R$ 120 mil. A Pública questionou o MP sobre o cumprimento da TAC, mas ainda não teve retorno. A reportagem  solicitou também a licença do empreendimento à prefeitura e questionou a empresa sobre os pontos levantados na notificação do MP, mas não obteve resposta. O Secretário Executivo de Saneamento e Elaboração de Projetos de Obras Alex Ramos do município cita que o “assunto não pode compartilhar informações, tendo em vista encontrar-se em processo tramitando no MP”. A obra continua avançando.

Em junho deste ano, os conflitos territoriais na Muribeca chegaram à Comissão de Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe), presidida pela deputada estadual Dani Portela (PSOL), que é candidata à prefeitura de Recife. O debate foi solicitado pelo deputado João Paulo (PT). Na ocasião, os deputados Renato Antunes (PL) e Nino de Enoque (PL) defenderam a conclusão da barragem do Engenho Pereira como uma alternativa para os problemas de alagamentos na região. A obra está paralisada desde 2014, mas para especialistas não é considerada a solução.

Na ocasião, o secretário-executivo de Saneamento de Jaboatão, Alex Ramos, justificou que a “solução para o contorno dos alagamentos em Muribeca é a elevação de altura provocada pelos aterros instalados”, contrariando o que apontam os estudos técnicos.

“A requalificação da drenagem deve ser pensada a partir de um sistema, não apenas no trecho que as empresas estão instaladas, inclusive, roubando área que pertence aos bairros. Enquanto Jaboatão considerar a solução em outros pontos senão na interferência direta da atuação das empresas, comunidades passarão a ser extintas”, critica Diogo Galvão, doutor em geografia pela UFPE e um dos coordenadores técnicos do estudo sobre alagamentos na Muribeca.

As entidades que trabalham com direito à moradia e proteção ao meio ambiente em Jaboatão dos Guararapes dizem que o problema dos alagamentos no município não é restrito ao bairro da Muribeca e adjacentes, como Nova Muribeca, Marcos Freire, Loteamento Nova Prazeres, Jardim Muribeca, além de Santo Aleixo e Dois Carneiros, e criticam a política ambiental da gestão atual da prefeitura como um todo. Eles denunciam irregularidades na estruturação e funcionamento do Conselho do Meio Ambiente da cidade. Criticam também a falta de transparência das informações do conselho, como atas de reunião, que não são disponibilizadas em meio digital.

Imagem: Somos Todos Muribeca/Cortesia

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