Para Marcelo Lavenère: o Poder Judiciário no Brasil ainda reflete as origens de um Brasil patrimonialista e submetido às oligarquias locais
Por Lizely Roberta Borges
Da Página do MST
Em entrevista ao MST, o advogado autor do pedido de impeachment de Fernando Collor, em 1992, e apoiador da ação dos movimentos populares, Marcelo Lavenère, analisa como o Poder Judiciário atua progressivamente, articulado com outros setores, na criminalização dos movimentos e dos defensores de direitos humanos.
Para ele a recente prisão a militantes do MST de Goiás, sob argumento de pertencimento à organização criminosa, é “absurda e inaceitável” e revela a intensificação do Estado Penal brasileiro contra aqueles que ousam atentar contra o patrão, o chefe, o proprietário.
Como o Poder Judiciário criminaliza a ação dos movimentos populares e de defensores de direitos humanos?
Lamentavelmente o Poder Judiciário no Brasil ainda reflete as origens de um Brasil patrimonialista e submetido às oligarquias locais. O juiz, na sua Comarca, no seu gabinete, lá no município no interior do país reconhece a força e poder político do prefeito, do deputado da região, do latifundiário que predomina na área, do empresário que tem indústria na região e imagina que a estes ele deva render homenagem.
Por essa ligação do Poder Judiciário – do juiz e do promotor de justiça, junto com a polícia civil, militar, federal, delegados – esse complexo de repressão nos estados tem, historicamente, uma dependência e reverência às estruturas e elites políticas e econômicas que atuam na região.
Por força disso, qualquer movimento popular, especialmente de trabalhadores rurais sem-terra, é visto como agressão à propriedade e, como a propriedade está ligada umbilicalmente à essa estrutura repressora e elitista, qualquer forma de atentado e crítica à propriedade, ao empregador, ao patrão é vista como uma atitude ilícita, de delinquente e que tem que ser reprimida. Portanto, criminalizam-se estes movimentos por força da ligação do Poder Judiciário, na sua base, com estas estruturas das elites, econômicas e repressoras.
Por força deste compromisso histórico, cultural e ideológico das bases do Poder Judiciário com o latifúndio, com o coronelismo, as decisões da 1ª Instância terminam por influenciar na 2ª Instância, nos Tribunais Regionais Federais, especialmente nos Tribunais de Justiça em que se encontra uma mentalidade praticamente igual ao da 1ª Instância. Os desembargadores dos diversos Tribunais de Justiça, por exemplo os de Goiás, Maranhão, Bahia, locais em que há um conflito maior com movimentos, estes Tribunais refletem uma mesma posição, o de criminalização dos movimentos populares, de decidir sempre contra o camponês, o agricultor, o militante dos movimentos populares.
Vimos a situação de Goiás como inédita e inaceitável, que o Poder Judiciário do Goiás, tanto da 1ª Instância como o Tribunal de Justiça, criminalizar a tal ponto o MST que o considerar como organização criminosa, enquadrando o Movimento dentro de uma lei destinada à repressão ao narcotráfico, ao primeiro comando da capital, terrorismo, e não um movimento social, de reivindicação política, de direito que está assegurado na Constituição Federal. Esse exemplo inédito, absolutamente absurdo e inaceitável mostra o Poder Judiciário na atuação para a repressão e criminalização dos movimentos. A fiscalização dos militantes, o monitoramento pelos órgãos de inteligência como ocorreu com o Valdir, no estado de Goiás e que foi localizado no Rio Grande do Sul, mostra que os movimentos sociais estão na mira da inteligência da polícia civil e militar.
(O agricultor Luiz Batista Borges e o militante pela Reforma Agrária José Valdir Misnerovicz foram presos nos dias 14 de abril e 31 de maio, respectivamente. Em ação articulada entre Poder Judiciário de Goiás, Secretaria Estadual de Segurança, setores econômicos locais e polícia militar, com base na Lei 12.850/2013, sustentam o encarceramento dos militantes sob argumento de integrarem uma organização criminosa.)
Como que as diversas instâncias que compõe o Sistema Judiciário – Ministério Público, Poder Judiciário, polícia – atuação coordenadamente em favor da criminalização dos movimentos populares?
Quem está na ponta da repressão dos movimentos populares é a polícia, que executa as ações de repressão. Essas ações não são feitas pelo Ministério Público ou Judiciário. É a polícia que invade os acampamentos dos agricultores militantes, quem planta armas nas mãos dos trabalhadores rurais, quem acusa o agricultor de cometer roubo por furto de equipamentos, quem identifica nos movimentos de ocupação das terras destinadas à Reforma Agrária como sendo de atividade de cárcere privado quando um jagunço de um latifúndio destes não tem acesso a plantação dos camponeses. A destruição de lavouras é um recurso muito comum pela polícia e pelos próprios proprietários, e atribuído aos trabalhadores rurais.
Outra forma de repressão pela polícia é assassinar um trabalhador e dizer que foram mortos porque reagiram. Isto aconteceu de forma muito clara no Paraná quando assassinaram Teixeirinha (Dirigente do MST, Bento da Silva, o Teixeirinha, foi torturado e morto por policiais, na ocupação realizada pelo Movimento na Fazenda Santana em Campo Bonito, região oeste do Paraná, no dia 08 de março de 1993). Ele se entregou para salvar alguns companheiros e foi sacrificado. Os bandidos que o mataram fizeram um filme e levaram para o governo do estado afirmando que Teixeirinha tinha sido morto num tiroteio provocado por ele. Todas essas são maneiras ilícitas pelas quais a polícia agride, ataca os movimentos populares.
Ao Ministério Público compete a ação penal. Com extrema facilidade age rapidamente contra os militantes que são presos pela polícia, não com mesma rapidez que age contra os criminosos do colarinho branco; e providencia denúncias. O MP encontra no Código Penal e na legislação repressora uma quantidade enorme de artigos em que capitula, por exemplo, quem faz um comício ou de quem ocupa uma terra destinada à reforma agrária, e na denúncia consta que as pessoas praticaram esbulho possessório, cárcere privado, porte ilegal de armas. Muitas vezes um facão, uma enxada é considerada “arma branca” para efeito da denúncia. Muitas vezes plantam arma de fogo no local do conflito como se fossem dos trabalhadores rurais. Agora o Ministério Público está se juntando com o Poder Judiciário, com magistrados, juízes para, todos juntos, considerar o MST e qualquer outro movimento como sendo uma organização criminosa.
O Poder Judiciário não fica longe do que faz a polícia e o Ministério Público porque, com uma atitude extremamente repressora, recebe estas denúncias e se torna desinteressados e imunes a qualquer tentativa em mostrar que os argumentos de crime não procedem. Um exemplo é habeas corpus propostos pelos advogados dos movimentos populares que são desaprovados sem fundamentação necessária. Somente quando o processo chega ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a situação tem uma atitude mais isenta em relação aos movimentos populares. Não é isenção completa porque a pressão do Poder Judiciário sobre o STJ é grande, mas como o STJ está afastado do quadro geral de operações e dos conflitos que se dão na área rural podemos dizer que ainda tem uma atitude mais isenta. Todavia, como a legislação tem se tornado cada vez repressora e tem dados mais instrumentos de uma mão pesada, então no STJ a dificuldade também é muito grande para se fazer a prova e demonstração de que estamos diante de atuações políticas e de movimentos sociais de reivindicação e não de movimentos que devam ser reprimidos pela polícia.
Como que a aprovação de leis como a Lei Antiterrorismo (13.260/2013) e de definição da organização criminosa (12.850/2013) oferece ricos à ação dos movimentos populares e na luta pela efetivação de direitos?
O endurecimento da legislação que assistimos, estas que mencionamos [Lei Antiterrorismo e de Organização Criminosa] e outras que estão no mesmo quadro, como a tentativa de redução da maioridade penal e a decisão do STF que manda executar sentenças antes que elas terminem o seu ciclo judiciário – todo esse quadro de endurecimento legislativo é extremamente preocupante e censurável.
Esse endurecimento, esse aparato está na contramão do moderno direito penal que hoje visa mais a recuperação, a aplicação de penas que não seja apenas a restrição de liberdade, tem visão mais aberta dos movimentos sociais e não uma visão policial. Essa era uma visão do direito penal em todo o mundo até o endurecimento do terrorismo, no 11 de setembro de 2001, nos EUA – no mundo inteiro houve um retrocesso das convicções do Direito penal. O que não afetou o Brasil porque não somos um pais que esteja sendo atacado por terrorismo, pelo menos até agora que começa o terrorismo de direita, mas não temos o terrorismo que se pratica no resto do mundo. Mas a tendência do direito era o ser mais garantista e flexível e substituir as penas de restrição de liberdade por penas alternativas.
Vemos que com a edição destes instrumentos normativos mais recentes no Brasil tomamos o mesmo bonde equivocado de criminalização. Mesmo que haja divergência com a ação dos movimentos populares, é preciso o espaço da divergência e não o do tratamento como criminosos, delinquentes, como se fossem pessoas fora da lei.
Como o Poder Judiciário reverte, na opinião pública, o local dos movimentos populares – de defesa de direitos para ameaça à democracia e à manutenção da ordem?
A atitude do Judiciário se reveste de apoio muito grande da grande mídia que faz tabula rasa da condenação do bandido, fazendo eco a uma atitude de repressão em que chegam a dizer que bandido bom é bandido morto.
Essa cultura de repressão encontra eco nos retratos da mídia comercial – a de considerar que os movimentos de trabalhadores que ocupam propriedades destinadas à reforma agrária, fazem greves e contestam a ordem vigente, o latifúndio, o coronel, as elites que muitas vezes são as maiores violadoras de direitos. Então o Poder Judiciário no Brasil encontra respaldo em suas decisões já que tem demonstrado uma extrema permeabilidade à opinião publicada, à opinião majoritária, imposta pelo setor dominante. No entanto, o Poder Judiciário deveria ser contramajoritario, deveria atuar para que os direitos das minorias sejam efetivados.
O que vemos é as decisões do Judiciário são, com apoio da mídia, geralmente bem recebidas, e muitas vezes até com comentários de que as medidas aplicadas são leves demais porque o que se pretende é colocar na cadeia e num regime de encarceramento desumano todos aqueles que são acusados de atentar contra estes ícones do sistema capitalista burguês – a propriedade privada, a rural, finalmente a autoridade que é alguém que é inquestionável. Assim, o Judiciário se sente muito confortado pela repercussão de suas decisões.
Este estado de conforto tem relação com a articulação entre poderes e setores. Como que o Poder Judiciário, para manutenção deste estado patrimonialista, conservador, concentrado, estabelece relações com poderes Executivo, Legislativo e setores empresarial e da mídia privada?
Todos estes setores no nosso pais, infelizmente, estão ligadas às elites econômicas. Nos estados, 80 a 90% dos deputados estaduais são ligados ao setor rural, ou à agroindústria. Um exemplo é Alagoas, os deputados são ligados à agroindústria do açúcar. No sul da Bahia, ligados à antiga produção de cacau. O recrutamento dos juízes, dos deputados, do poder executivo – prefeitos, governadores – é feito nesta área. São todos oriundos destas categorias dominantes da sociedade brasileira.
O Brasil é pais extremamente desigual, ocupa o 80° lugar no mundo em desigualdade, um por cento da população, os ricos, detém a maioria das riquezas de todo o país. Todo esse sistema de concentração econômica também se torna um sistema de concentração política, especialmente, como se sabe, que nosso modelo eleitoral só permite que se eleja quem tem muito dinheiro, quem recebe dinheiro de propina ou tem caixa dois. Os candidatos populares têm uma dificuldade extrema para se eleger porque os poderes são compostos por pessoas oriundas da mesma fôrma – uma elite econômica, de uma economia muito concentrada e que é, portanto, extremamente comprometida com a visão direitista e repressora dos movimentos sociais
Algumas análises estabelecem paralelo entre a intensificação da criminalização dos movimentos populares dos tempos atuais – com a aperfeiçoamento do Estado Penal acompanhado de aumento da violência mais bruta, como nos despejos ocorridos nos últimos meses e assassinatos a sem-terra e povos indígenas, – com o contexto repressor presente na ditadura militar. Esse paralelo faz sentido?
Temos resíduos muito fortes do período da ditadura em muitos destes meios de repressão. Especialmente nas polícias militares, ex-integrantes das Forças Armadas e setores da inteligência migraram para setores da polícia militar. No estado do Paraná, quando foi assassinato o Teixeirinha, havia um grande contingente na polícia de pessoas oriundas da ditadura, e que foram absolvidas dentro dos quadros da polícia.
É certo que hoje muitas pessoas não estão mais presentes, já que temos 40 anos da ditadura, mas a filosofia e cultura da ditadura continuaram, seja nas polícias, seja no Ministério Público, no Judiciário, de forma que podemos dizer que ainda pagamos o preço deste período autoritário. O subversivo, fosse um militante estudantil, um defensor da reforma agrária, era censurado na ditadura da forma mais dura possível, a ponto de se dizer naquela época que, ao matar uma pessoa, falavam que não era uma pessoa morta, mas um comunista, retirando toda a condição de ser humano desta pessoa. Claro que esta mentalidade não ficou totalmente afastada destes meios de repressão, e como cultura ainda se faz presente em alguns setores da sociedade brasileira que destilam hoje o autoritarismo não somente para esta área [de luta pela terra, contra as elites econômicas], mas também para comunidade LGBT, de cultos africanos, de ocupantes de prédios e edifícios na luta pelo teto. Direcionam sua cultura repressora e de intolerância não somente na área rural, mas está chegando ás áreas urbanas.
Diante da criminalização da luta por direitos, como os movimentos populares devem atuar frente a este contexto de um Judiciário de poder tão cristalizado?
No estado de Alagoas a polícia tem um comitê plural formado por advogados populares, polícia e movimentos. Quando ocorre um conflito, uma ocupação, este comitê é chamado e antes mesmo de uma ação repressora ele funciona como canal de comunicação. Seria bom que esta experiência fosse replicada nos estados.
Os movimentos populares, através de setores de comunicação e de direitos humanos, por meio de organismos como a Ordem dos Advogados do Brasil, redes de advogados populares, juízes pela democracia, pode fazer um trabalho para diminuir a atitude extrema repressora e intolerante com os movimentos. Outra frente importante é se nós tivéssemos uma pedagogia nas escolas, com a juventude, mostrando a importância dos movimentos populares para a sociedade. A luta dos movimentos é dura. Precisamos contar outras histórias sobre a atuação dos movimentos populares.
* Essa entrevista é a primeira de uma série que abordará a criminalização dos Movimentos Populares em todo o país.